Antropofagia contra a doença da época
Trabalho magistral de Maria Augusta Fonseca,
nessa belíssima biografia, pela Record
O interlaçamento entre homem, obra e época
sem se perder nenhuma poesia no caminho
A relevância desse autor genial, a essência
do modernismo em um de seus expoentes
[modernismo cuja gênese, entranhas,
movimento e combustível ainda está entre nós]
O resgate da Antropofagia, a melhor metáfora
em mais que oportuna leitura,
como antídoto ao mal destes tempos
Devorar, devorar, devorar
signos, desatinos, violências
metabolizar histórias
valores, tendências
digerir os movimentos
porque é só assim que o novo vem
Não impedir os fluxos, celebrar
e não cerebrar excessivamente
o que não nasceu para
A vida não é algo que se reduza ao cerebral
nem as mágoas e ressentimentos são suficientes para contê-la
Imaginar -- como Schopenhauer ,
ainda tão budista --
que o caminho das dores é soberano
Mais que isso, que a dor é a única cor
é empobrecer demais o devir
e estar completamente surdo
às outras potências
Abandonar a doutrina massacrante da beleza
Abandonar as limitações da estética, que mesmo éticas
ainda sofrem uma segunda sangria nas mãos
de teorias embotantes
Alertar às vozes que se enveredam pelo triste caminho
Pujantes, encantadoras em seu pulso de vida
Tão cheia de razões -- verdadeiras razões --
A maioria delas reais e válidas
e capazes de fazerem seguidores ao ímpeto
Vozes movidas de dentro, orgânicas, sem qualquer pulso de hipocrisia
vozes que lutam, que se angustiam, que dão
a cara a tapa com tamanha força e determinação
Vozes bonitas e capazes de fazer-se questionar
ao próprio azul se ele realmente possui em si a cor
E que assumem eventualmente posições
das quais não percebem a malícia estrutural
O equívoco do conceito danoso à vida
em um sentido mais largo
Sou o antropófago agora, como Oswald
e serei a carne em alguma outra refeição
Absorver tudo, mesmo os movimentos
contrários, como os Tupis aprendendo
com os inimigos
Falo sobre o índio e se ainda não sou
me torno um pouco índio no caminho
porque há poder de transmutação na palavra
Há algo de transcendência na forma do humano existir
não a transcendência chula, tacanha, dos doutrinadores da fé
mas é porque o humano não se reduz à mera materialidade
E a palavra é a pedra-de-toque
Quando falo do índio, minha voz enuncia um estado
de coisas que não existia antes, o falar põe outros elos às coisas
Destroça a solidez da pedra bruta para reconstruí-la habitação
num outro lugar
O ser-índio, então , deixa de ser a simples história
não é mais um lugar-tempo, uma materialidade
e passa a ser a essência de algo apropriado
que tem o potencial de -- e tantas vezes faz --
contagiar como flama o que nãó é
Porque ninguém desautorizou ainda o status
da imaginação, do onírico, do não palpável
e é nesse estado, tipicamente humano,
que as outras construções invisíveis se fazem
Ver é se apropriar do mundo
Falar é construir um outro mundo
É o ser-índio que perpassa minha fala
que permite criar, de um estranhamento inicial
qualquer nicho futuro possível de identidade
e é nesse outro, justo, que até então desconhecia
que agora, permitido pela fala e pela apropriação
imaginativa de seu mundo, é aqui que surge
a humanidade -- uma mera abstração
que se tornou coração, nervos, sangue
Falo sobre a mulher, e sempre
trago comigo um tanto da mulher, essa presença
inafastável para que o mundo não se apequene
Falo sobre o negro, o tempo inteiro
e sua luta é tanto da minha história
embora não a substitua
porque vivo não só o que me acomete
mas vivo também o que vivem
os outros tão próximos a mim
A transcendência do humano
Não sou anão e nem mais sou criança
mas falo sobre o garoto anão que sofreu amargo Bullying na escola,
esse cotidiano sofrível e cada vez mais comum,
falo sobre a queima incessante das florestas
extinguindo a vida, o agronegócio estúpido
que massacra os índios com um padrão
insustentável de crescimento, o tiroteio
constante na favela atrás de casa ,onde em sua
larga maioria vidas negras -de peito pelado ou
fardado, atiram e morrem
de ambos os lados do revólver--
Minha voz não calará outras lutas,
todos lutamos,
mas a estreita visão de gueto
numa luta que em si traz um convite
à amplidão é nada além de visão turva
com diploma ou sem diploma
[ o que é a vida senão a guerra diária contra o fado?]
Minha voz não concorrerá no espaço onde e quando
essas outras vozes , por uma questão específica de estratégia
e organização da força que não se pode esmilinguir,
se põem como intenção e projeto, consciência e movimento
Minha voz não ceifará em nenhum instante
seu direito de ser, suas motivações de existir
Nem aceitarei que o latido ensurdecedor dos
cães fascistas venha sufocar a todos com
sua barbárie. Lutaremos juntos, sempre
Desde que não me venham apontar o dedo no nariz,
gravando no frio mármore de uma racionalidade tosca
uma outra segregação que se deveria combater
O que é que eu posso ver, sentir, mover, dizer
se autoriza também por outros parâmetros que não se dobram
a um simples desvio de intensidade
ou foco de um olhar que não amadureceu,
um olhar míope
Antropófagos, digerir e metabolizar
as adversidades. Extrair uma força
da soma dessas fraquezas
Fazer arte dos cortes
Essa essência não estanca
Apropriar-se de tudo que anda, vive, respira
O fluxo da criação perpassa toda forma de vida
Depende dela, em última instância, para existir
Apropriar-se da essência da coisa
não é necessariamente disputar a sua posse
Vou até a coisa, vou sendo, vou ser, estou nela também
o ato de me sair de mim é o desvelar-se no outro
cuja presença é essencial nesses espelhos de dizer
e o seu espectro não me deve ser tolhido
A esperança do que se denomina humanidade
visceralmente está ligada à empatia da percepção,
que pode surgir do susto
É do estranhamento inicial que surge toda antropologia
Não da semelhança
É do estranhamento -- e nunca da dominação do mesmo -- da replicação de bolhas--
que surgem o amor, o desejo, a pulsão de se mover. Todo movimento é intenção,
é criação, mesmo quando seus fins ainda não são claros
Se sou artista, sou homem, sou índio, sou mulher
sou negro, amarelo, vermelho como o sangue
Sou criança, velho, sou até bicho quando preciso
O índio me ensinou como todos somos meio plantas
E todas as dores e alegrias me pertencem igualmente
porque faço parte da história alegre e triste da humanidade
É do humano se apropriar do real ao seu redor
É do humano fantasiar e enriquecer o real
ao seu redor, quando ele se mostra pífio
É assim que o índio faz com as outras tribos
Apropriando-se do seu modo de fazer, modo de sentir,
modo de cultuar os deuses, de pintar o corpo, de esticar os cabelos,
de fazer suas tatuagens, de obter suas tintas, de conservar seus deuses
O índio se apropria da onça, torna-se em vida meio onça,
pinta a cara de onça, finca-se bigodes com espinhos,
mutila-se com artefatos, faz barulhos de onça, sua voz, seu som,
suas palavras imitam sons de rios, chiados de animal, cantar de araras
e quando morre, ele pensa que se transforma num bicho qualquer
O índio não os massacra porque vê
neles um igual, não há hierarquia entre vidas
não há limites estanques entre os mundos
O filho do cacique que se foi pela febre
é agora o passarinho que canta no galho de manga
A menina índia que não nasceu porque veio morta
é o som que chora na beirada de rio na nascente
É assim nessa co-relação de forças estruturantes
que antecedem ao humano no próprio ciclo
que a vida tornada grande se faz
Nenhum dominador está imune ao vírus do conquistado
porque as forças se interpenetram no fim da história
O império romano, uma vez instaurado pleno
foi aos poucos se absorvendo os bárbaros
e fragmentando-se em novos mundos repletos de sentido
em si mesmos, tornando-se menos romano a cada dia,
nas vilas nas províncias
e absorvendo outras linguas e costumes,
seus modos próprios de falar,
de se vestir, de comer, de valorar a vida
Antropofagia como Vida, a metáfora
Preservar o anárquico instinto das liberdades criadoras
Instrumento poderoso pela cassação
do absurdo autoritário do lugar de fala
Uma situação particular, de contexto menor
que deve ser sim, compreendida, mas
dentro dos limites necessários para que
não se torne uma nova tirania
igual ou maior aos domínios que quer combater
Lugar-de-fala
como se as falas nãó fossem todas essas formas caóticas
um olho torto que o vivente põe na vida
-- uma vez que é coisa própria do humano --
que sobre ela sequer tem algum poder absoluto
Palavra de ordem tão mal usada, mal compreendida
e instrumentalizada para se tornar o novo suplício
nas costas de quem não se submete ao óbvio
Antropofagia, porque preciso do outro
Sua experiência , seu olhar, a forma como
ele me vê, tirando-me temporariamente
dessa solidão de ser humano
em um Cosmos mineral, impessoal e frio
Devorar, absorver, incorporar,
A transformação gigante do processo
Todo conhecimento é um ato expropriatório
em sentido lato, há algo de nós que voa
em direção ao mundo e dele se apropria
Antropofagia, deixar-se imiscuir-se pelo fluido de vida
pelos músculos, pelas veias
Pelas vidas entronizadas em nós, mente e corpo abertos
Ceifando pensamentos rasos, regurgitados, doutrinados
que mal são pulverizados sobre uma multidão em polvorosa
e já são referendados, homologados, distribuídos
por uma outra espécie de massa ignara
Antropofagia como remédio
Devorar mais este ato impositivo e acusatório
contra as liberdades
ato acobertador de ódio, recalques
e todo tipo de defeitos que supostamente
diz combater
mas assume o lugar do verdugo
e fustiga, e atua como o capataz
cumprindo as ordens cegas do novo patrão
Antropofagia, um dizer sim à vida
Um dizer não a toda essa insanidade
que -- destilando suas amargas escaras --
quer se passar por um excesso de civilidade
de razão histórica, ou outra droga qualquer
e vai, aos poucos, criando mais motivos
para afastamentos, incompreensão,
distanciamento do que sempre deveria
ter estado próximo
A defesa da saúde criadora, da liberdade do conteste
do direito à não concordância, da reverberação
o sim à vida
em sua incomensurável força plástica incontida, mesmo
quando o que se assente é o pulso contra o mundo
no exato instante que o mundo ameaça
tornar-se menor