Café
I.
Toca mais à frente, que nosso lugar ainda
não é aqui -- ele disse -- e do Alto Calçado
chegou: pouca herança, o braço forte
pés pisando duro, peito cheio de esperança
e um sentido seguro para os negócios
Vinha assim o velho, e subia a montanha
com olhos de amanhã, nas mãos o menino
baixando a meio caminho a visão sobre o vale
a saudade e o sumo do que deixou para trás´
"quero é mais: terra nova, vento frio batendo no rosto"
"Verde, tudo verdim, rio não longe, mina d'agua
eeeh, ôoooa boi! quase tudo a meu gosto!!"
o altiplano bom para o cultivo da planta
a junta de malhados ralando casco na pedra
a mulher de lenço branco na cabeça
Serenou-se feliz no território da Água Limpa
-- um quadro em sépia na sala junto aos santos --
o espaldar dos filhos penteados e enfileirados
como o olhar pedagógico do pai na cadeira
em volta, as madeiras de lei, o solar e o terreiro
Gaiolas e mais gaiolas de passarim nas paredes
esse gosto pela criação que legaria aos herdeiros
ouvido apurado, horas a fio só escutando os cantos
os santos que, como dizia, se escondiam nas matas
ssshhh!, ele pedia, Deus em sonata sussurrando segredos
Rodrigues, daqueles que um dia estiveram em Espanha
campeando a sorte nestas terras de desvalência
a ciência? cultivar a planta, apostar
os vinténs, gerenciar os trocados
no pequeno armazém
II.
Uns anos à frente, e lá está o jovem José, capataz de fazenda
aprendiz de coronel , bornal de moedas, galante seu chapéu
no alforje a garrucha pro desaviso em beira de estrada
cabelo em brilhantina, bigode Valentino, a bota lustrada
alinhado em paletós sobre a mula preta marchadeira
Toda prata, todo ouro, comércio posto em lonjuras
as agruras diárias em tempo de dificuldades
o passar-sem- ter para mais-tarde-poder
a guerra no além-mar, dominó sem domínio
notícias e cantigas de noite ao redor do rádio
O pai, homem santo a receitar curas e falar com espíritos
a mãe, sanguínea, temperamento dos infernos, a doma dura
o menino ativo, jeito decidido, topete alto e coração bravio
a dar porrada em porco-do-mato com as próprias mãos
cortar mata no facão e nadar sem bóia em ribeirão fundo
"Pai, pra que lado fica o mundo?" suscitava sem saber
o menino pouco ia à escola, mas teimava em não esquecer
matemática descobriu sozinho, e foi bem antes de aprender a ler
já ajudava o pai na roça antes dos dentes terminarem de nascer
cismava que a vida era um livro, só faltava ele escrever
III.
O sangue quente pra cima das moças
semeando lavouras em úteros receptivos
colhidos em ramalhetes pelos caminhos
prendadas ou não prendadas, prenda é pele
prenda são olhos, é o cheiro da cor que fica
A mula preta grande arriada, perfume no cangote
o dia inteiro de labor era nada diante do amor
noite afora, com ou sem lua, o sangue ardendo
por outra verdade nua, a prenda, o encanto
cavaleiro em cruzada destinado ao mundarão
Sem senão, sem muita regra de tocar a vida
o básico, o comum, seguido sempre à risca
trabalhar, trabalhar, trabalhar, sol a sol a sol
no paiol apenas o decomer mais comezinho
e debaixo do lençol de linho, os mérréis
Guardados na sofreguidão e renúncia continuadas
comprar a primeira terra, plantar a primeira safra
aguardar os santos na chuvada boa, sol na medida
a paciência na tenacidade estendida, administrar
os grãos verdes tornados vermelhos e torrados-pó
IV.
Cultivar a obra, esperançar a lavra
adubar a terra, alimentar a safra
regar bem a muda para dar estatura
depois colher, lavar, secar, torrar
da torra o sabor, o aroma, a vitalidade
A substância, a química acidental
a nos remostrar o sabor da vida
o efeito da magia, a senda da bebida
a beleza da lavoura hirta, verdoenga
toda de pé, os grãos avermelhando tudo
População em polvorosa, pilões preparados
peneiras a postos, trabalhadores engajados
compradores e empresários lotando os armazéns
da derriça à pila, da lavagem à torra
os grãos embarcados nas costas do trem
Eita! a colheita que trazia os sorrisos
famílias com viagem marcada pra fora
moças correndo às lojas da cidade grande
catando novidades em ofícios de moda
marmanjos em riste, de bota nova e espora
A semente que reinventou o ocidente
pó-de-deuses-africanos, a negra mistura quente
substância envenenando os novos nervos
alimentando a audácia, expulsando
a quieteza ao inspirar toda força
O poder da planta impondo mercados
as cidades vendo crescer a barriga
praças, coretos, locomotiva apitando
fumegando na recém-inaugurada estação
políticos e políticas em combustão
Dançava-se, e muito se comia nas grandes festas
aniversário da Vila, São João, quermesses
casamento dos filhos dos novos barões do café
uma pequena eldorado nessa terra distante
carrossel toante de uma nova verdade
Como o ciclo da borracha, na selva amazônica
ou a cana-de-açúcar no coração do nordeste
gringos nas praças discutindo os tostões
razões sofismando os motivos da guerra
enquanto a terra, profícua, gerava outro grão
As sacas, aos milhares, rumo à exportação
potência de terceiro mundo querendo seu palco
nada mais segura o celeiro , nada mais cessa
a energia na xícara, a substância que atravessa
em rotas de navio, colonizando miragens
Londres, Nova Iorque, Paris ou Montreal
a sociedade industrial impelida pelo grão
as veias se aceleram, tanto muda o chão
o peito quase não cabe quando a vista se abre
é a substância que segue ampliando a noção
A vertigem desses caminhos cada vez mais distantes
a expansão alucinante das lavouras a perder de vista
a quebra, o baque, os imprevistos a mitigar o pulso
veio a crise, a fome, veio Getúlio, o homem
a acabar com tudo, todo verde que virou pasto
V.
Quem é da terra e a terra sabe, nunca-em-tanto se apavora
cessada a lavra, enterrado o pranto, é aí que tudo se renova
em preces, outra lavoura aonde a antiga se viu secar
as ramas de uma cova rasa, que demoravam a vicejar
ficou a fé, e a migração forçada para o ramo dos armazéns
O Arraial do Café, que depois virou Vila, o lugar onde a fruta
dava o nome, aonde o ciclo louvava a importância, perdeu
a força e a graça do cultivo, mas na curva surgiam outros motivos
porque a vida é assim, quando ameaçada: em vez de seguir
derriçada, revira-se em improvisos, clarando o caminho
Filhos e mais filhos surgindo desses plantios
pela estrada, germinados aonde houvesse ventre fértil
a acolher a semente, inconsequente toada reverberando
desafino, que se há de fazer se a vida é assim
feito roupa amarrotada, que não tem ferro que passe
Não tem sermão que endireite, não tem reza que conserte
nem palavra que, vencida a lógica, não se empenhe derrotada
tocando em frente, família crescida, mudança pra cidade
com a molecada, a roça como em tantas outras empreitadas
expulsando do campo a verdadeira razão da sua existência
VI.
Não há reza, razão ou fado que implique negar o passado
mesmo que em sua origem tenha sido a vida mais simples
porque pra quem vive no campo, à falta de outras vaidades
o que mais vale é a liberdade, o sossego em volta
no cair das tardes, comida farta, a saúde pra tocar a roça
Filhos de tudo que é mister, na nova forma de vida
empresário, fazendeiro, doutor de fina acolhida
moças bonitas e desposadas cedo, cessando todo medo
de qualquer solidão. Familia multiplicada, onde antes
eram nada, agora eram quinze, e trinta logo serão
Os Rodrigues, de veio oriundo da Espanha, o sangue quente
de latinizar a terra, cultivar os pastos e não menosprezar a guerra
Os Rodrigues, essa raça, a não temer desgraça, não cultivar
sofrimento sem haver necessidade, nem celebrar impunidade
sem noção maior de justiça
Os Rodrigues, gente sistemática a se apaixonar pela música
encerrar o cenho no barulho da enxada, apreciar passarinho
como companhia, gente pra gostar de fumo e evitar bebida
evocar espíritos dos antepassados como o velhinho patriarca
em suas curas sobre o morro em trovoada noite escura
VII.
Na cidade, quatro filhos nascidos do mesmo ninho
rebentos futuros aguardando a hora certa
três filhos a mais nascendo pelo caminho
e as surpresas tais que só a vida, então liberta
foi trazendo à consciência: a vida, a vida, a vida
Desfazida o primeira casa, dos quatro primeiros
o mais velho, no pulso do pai, fazendeiro, empresário
o segundo, doutor, lavrando os ossos na lei
das moças, uma contadeira de histórias, fumante contumaz
a última, princesa de pele branca e olhar sagaz
A mais nova se casou, e para a cidade grande se mudou
perdia o caminho da roça, mas a terra estava nela
e jamais a abandonou. Foi, mas deixou para trás
um séquito de memórias mágicas, pretendentes frustrados
coronéis de pulso forte, poesias a desafiar a morte
"Sou filha de coronel, mas eu caso com quem eu quiser"
amuava-se o homem, avantajava-se o poder da mulher
recusava o noivo encomendado, noivava o forasteiro
que na verdade tinha pouco dinheiro, mas saúde
pro trabalho e coragem para o que der e vier
Que ainda tão nova, mudada às pressas para a casa da avó paterna
caminhava quilômetros com as próprias pernas apenas para estudar
filha rebelde de coronel, os problemas da administração da vida
vindos como bomba e sem ter como arregar, caminhava, lia, estudava
e repetia a cada dia a saga de sofrer sem querer deixar de amar
Sem ter como correr, o melhor era enfrentar. Toca a vida, nova escola
professora, cuidar de casa, cada ano mais um novo filho para embalar
dente quebrado, choro dobrado, a menorzinha pirraçando para mamar
corre, chama a mãe pra ajudar, vem a avó, e traz seu paiol de memórias
outras velhas e ricas estórias, a chave de ouro a ensejar o sentido
Um mundo sortido, folclore bonito, as noites repletas de tantas
estórias, releituras de imaginação por outros olhos e memórias
e repassava, assim aos filhos, com talento e um grão de delírio
maravilhas herdadas , maravilhas inventadas, todas as estórias
no seu curso natural , o desafio ao mundo por uma garota lida
VIII.
Em realidade cambiável e flutuante, a maior riqueza
é a terra. A estabilidade, a fertilidade, o potencial da planta
Água Limpa, Bom Jardim, Areial. Cercino, Monteiro, Pica-Pau
sítios e fazendas a perder de vista. O prêmio pelo sofrimento.
Os louros da conquista. Mas problema que é problema
Jamais tem fim. É quando o homem mais se apega aos seus bens
que as coisas assim lhe aferram o caminho e acorrentam o desejo
já iam bem distantes os tempos de carestia, a ameaça da fome
o nome do jogo agora era gerenciar o ânimo dos homens
oriundos de uma partilha ainda sem partir. Semeava-se o ódio
Esses Rodrigues, tão passionais e amorosos no raiar do dia
tão rancorosos e beligerantes ao cair da noite
os títulos da terra, os espólios da guerra, a previsível sina
se, negociada em surdina, nem todos teriam a ganhar
família é coisa estranha, mesmo portando um mesmo nome
E apenas por um acaso, quando perdido o fio da esperança
impedia-se por ora a desavença que se avizinhava no porvir
a terra, sempre a terra, tantas vezes cantada em versos viscerais
a terra, e cada vez mais, arraigada, disputada sofrega e
cegamente, por razões tão fora de alcance, por motivos ancestrais
Lançou-se mão da partilha, pelo incidente no jogo dos deuses
e depois de alguns meses chegaram a um acordo razoável,
e sorriam , os novos herdeiros, enfim à luz dos cartórios
a gana, a disputa, (o meu primeiro), senão vai ter luta, o olho
sobre a verve da vida humana: Homero previu o desperdício
Na saga de mais uma de muitas famílias emigradas da terra
a guerra, agora, era outra, e mais difícil pra fazer a sorte
porque se era Rodrigues, então era o pulso ou a morte
a cidade estreitava as visões, apequenava em si o movimento
e retornaram ao campo, alguns, quando bateu o sentimento
IX.
A princesa de alma sonhadora e olhar sagaz
embrenhava-se cada vez mais no árduo -doce de ser mãe
às vezes saía-se bem, às vezes enfiava-se no chuveiro
de roupa e sapatos, de corpo inteiro às duas da tarde
quando o quarteto arteiro não parava de chorar
Professora, abandonava novamente tudo que fez na vida
para dar acolhida à estranha coisa etérea que chamam de lar
não adiantava reclamar, era menino querendo merenda
menina de uniforme sujo, menina pequena pé machucado
e os trocados, no fim do mês, ameaçando o possível
Não se sabe exatamente do que é feito o olhar materno
quando, lidando com o inferno cotidiano de se dissipar
ele toca a agenda do mercado, da padaria, a montanha
de roupas pra lavar, hospital com criança nos braços
e ainda passa nas camas à noite para contar estórias
Mas das memórias que são possíveis a uma mãe legar
não há beleza maior nem outro presente , a bem da verdade
(nem de por si as próprias histórias, as lendas de se narrar)
do que ver o dia regido em suas tantas variações de tom
harmonias e compassos por uma mãe que se põe a mãezinhar
X.
A quem nasceu no campo, a cidade lhe parece sempre
essa coisa emprestada, porque ele só vive realmente
é com o ar fresco na cara, barulho de passarim e pé bem cedo
na estrada , não há Cristo que faça mudar no ouvido sedento
a necessidade de sentir a chuva, o sol, o barulho do vento
A saudade de botar os pés descalços na terra escura
enfiar as mãos nas nuvens, mergulhar a cara na fartura
e, como peixe, nadar pelado em cachoeira cristalina
a nostalgia clandestina dos ossos buscarem seu lugar
essa felicidade de tornarem ao elemento que os fundou
E com isso seguia a saga dos homens oriundos da terra
e que apenas com ela pactuavam querelas em segredo
homens sem medo, de algum valor, perdidos em irrazões
quando a terra surgia com uma nova safra, em seu esplendor
restabelecida a paz, porque sem ela não há vida nem amor
Que seria desse mundo sofrido se não se pudesse narrar? Contar é
superar o aspro do terreno árduo, imaginação é água que vem molhar
com folga nas atrocidades, recria o homem na reformatação do mundo
simboliza, num segundo, a inversão das forças que o sufocavam sem parar
antes, o indevassável. Ora conto e tudo se faz habitável no meu contar
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poema editado, pub origin jun-2019 "O Aleph" - reg AVCTORIS jul2019