Leituras


Serviço: "Depois que o sol se põe", Romance
Secult/Funcultura  - Ed. Cousa-Patuá, 2019
preço: R$ 40,00
Link vendas "online" Ed Cousa
https://cousa.minestore.com.br/produtos/depois-que-o-sol-se-poe


“Depois que o sol se põe”

Segundo romance de Danyel Sueth, “Depois que o sol se põe” segue caminho bem diferente do primeiro, “Os Dalmarco”, em vários sentidos. Talvez o mais marcante esteja na percepção de que, enquanto o livro de estréia constrói uma narrativa ora cinematográfica, pela referência predominantemente visual do espaço da ação, ora teatral  pelo desenrolar mesmo da própria ação em sua dinâmica de conduzir falas e personagens valorizando nesse processo muito mais os diálogos que as extensas elaborações argumentativas tão comuns ao gênero, “Depois que o sol se põe” navega por outro caminho, abandonando o ambiente típico de um filme de ação, a imagem trazida pelos "Dalmarco", para abraçar a solidão existencial de uma vida que se coloca em retrospectiva quando precisa urgentemente achar  o sentido que a faça persistir justo no momento mais tênue, quando a velhice insidiosa vai se apropriando dos corpos, das sinas, das memórias.

A  sempre desafiadora narrativa em primeira pessoa e seu condão mágico de trazer bem próximo ao leitor a experiência do texto como leitura-vida mesmo quando envereda pela experiência ambivalente da morte, que é simultaneamente o fato mais universal e certeiro da nossa trajetória  e  guarda também esse outro significado precioso de ser único, intransferível.  Sobre a mudança de forma narrativa nesse segundo trabalho, importante ressalvar que existe não apenas uma transição, mas um desafio, ao deixar-se de lado a confecção de enredos de duas das formas comuns ao gênero romance : a definição de personagens pela trama em movimento, ferramenta usual  na dramaturgia, uma das veias deste autor que também é ator e dramaturgo, ou as extensas argumentações típicas dos clássicos, onde tantas vezes a idéia, o conceito, a definição mais rígida da essência do personagem estabelece e predispõe o que está por vir como um desenvolvimento mais ou menos previsível diante da sua natureza explicitada -- mesmo que isso seja feito tantas vezes de forma sutil . Ao buscar aqui uma outra forma para trazer à luz sua criação, o autor opta por um mergulho mais radical na linguagem.

Bom, mas isso é o que até aí me dizia o discurso racional de leitor, que no fundo nada mais é que a mediação das primeiras impressões depois de passarem  -- e sobreviverem -- à dura barreira do intelecto, essa coisa que nem sempre é tão confiável. À falta de total confiança na razão, deixemos a sinestesia primitiva então, a primeira impressão, tantas vezes portadora de maior verdade, dar sua versão dos sentidos sobre o que lê, vê, ouve, cheira e toca nessa vida. O livro traz como pano de fundo a queimação no estômago de uma ferida ainda não bem cicatrizada, toda a ambientação da segunda grande guerra na Europa e os traços trágicos e a sombra heróica da participação brasileira, como as situações tão presentes na lembrança dos contos de Hemingway ou, mais próxima de nós, a visão tão vívida do mestre Rubem Braga em suas “Crônicas da guerra na Itália”. Contudo, por dentro dessa ossatura, há um corpo afetivo e existencial, quando a suavidade narrativa do autor, a introspecção dos personagens e seus ricos diálogos -- às vezes realistas , às vezes internos em retórica nostálgica -- lembra o Fitzgerald de “O curioso caso de Benjamin Button”.

É quando surge mais fortemente a via poética em vez do simples narrar o fato – seja real ou imaginado, quem sabe um real imaginado ao se atribuir um sentido necessário ao que se foi para que o mundo não desmorone de vez --, uma nova via surgida pela evocação de imagens, e nesse caminho a procura de objetos e sensações que ainda não existem para dar o sentido inusitado de situações incomuns e ricas, esse fazer literário o sintoniza a com a melhor literatura portuguesa contemporânea no trágico-lúdico de lidar com as palavras. Tal proposta deixa o texto mais vívido, mais rico, porque recusa-se terminantemente aos chavões e ao lugar-comum para particularizar as situações vividas. E isso sem abrir mão da originalidade e senso de caminho próprio, ao expor seu próprio viés, seja com a experiência do vivido ou, arte recorrente na literatura, com a riqueza do imaginado, que jamais será menor quando a arte vem à tona.

Há quem diga que, no fundo, nossas maiores narrativas são sempre ficção, mesmo as denominadas “realistas”, uma vez que o real jamais pode ser descrito “em si mesmo” de forma absoluta e tudo o mais é aproximação , olhar, dar o nome, ato feito de apropriação e subjetividade. Nesse sentido, é nítido o enorme esforço desta narrativa na apreensão do mundo pelas outras vias, abandonando a forma comum e racional de todo pós-evento em tentar racionalizar demais o passado e alcançar aí, a posteriori, o fio mágico de sua história.

O autor abandona essa triste idéia e parte para outra via, buscando os fragmentos possíveis  e tentando compor com eles um quebra-cabeças que está no presente mas monta peças no passado e que sobretudo não responde de forma objetiva ao que foi, mas põe um bonito quadro de vida sob os olhos do que é e assim faz valer o que se viveu. É como se as narrativas paralelas portassem de si uma verdade maior que a própria verdade e fossem no caminho torto legando um traçado inteiramente pessoal de estar no mundo através das palavras, tornando o que existiu  verbo próprio para o trânsito que se necessita no presente, e  eventualmente criando o espaço necessário quando ele não surge naturalmente e o rabiscador de palavras precisa fundar o seu próprio reino.