covid season, may, 01. 2020
Quarenta e cinco dias do ano Covid-19, oficialmente sem eu botar os pés na rua. Sim, porque andar de carro não conta, e mesmo assim foram poucas as saídas em quatro rodas, sempre fechados dentro da célula mecânica, apenas fotografando o universo fragmentado ao redor. Vidros herméticos, ar-condicionado na posição círculo interno de ar, máscaras. Ver como a vida ia lá fora, longe da tv.
Pra dizer a verdade, imaginei que o universo visual ao redor estaria mais dissolvido e fragmentado a essas alturas, imaginava ver alguma coisa entre a situação do Will Smith em "A Lenda" e do Mel Gibson no primeiro "Mad Max". Pessoas brigando por água e gasolina, calangos disputando a sombra na seca depois do grande cogumelo de luz no céu, todos com armas e engenhocas misturando a técnica com a pré-histórica luta pela sobrevivência, edifícios rachados e abandonados, plantas tomando as ruas, bichos felizes habitando um maior espaço e a erva pocando calçadas para reaver o que na verdade sempre foi seu, uma parte do mar cansado de ser contido invadindo tudo e sequestrando de volta a beira-mar como avenida submarina definitiva para peixes e plâncton. Não cogitava em nenhuma hipótese ver as vias ensolaradas cheias de gente como se fosse um dia normal. Ou mais. O primeiro impulso é lembrar como tem gente estúpida no mundo. Daí estreito bem os olhos e vejo que a maioria é de trabalhadores, ambulantes etc. Estúpidos, no fundo, mas movidos pela sobrevivência. Outro que julgue. Eu não. Mas Acho que ainda é cedo para Mad Max, pelo jeito.. Mas uma hora chega. Ah, se chega.
Me lembro por que estou aqui, em pé, em silogismos de céu aberto olhando nuvens. Outra vez a campainha.Sim, o portão! Nesses dias, mais que em outras épocas, as compras on-line se tornaram, além de passatempo tão alimentado por mim e outros incautos para turbinar o sistema nas horas vagas , uma espécie de necessidade e não necessidade em virtude da falta de alguns gêneros -- e substâncias -- que você não mais encontra ali na loja da esquina. Eu sou suspeito pra falar, porque nem roupa já não comprava em lojas, a impaciência e o sem-jeito da coisa toda, e nos últimos tempos ainda descobri que o preço compensava de sobra, daí que a maior parte já vinham há tempos em caixas e sacolas aqui pra casa, pelo menos as minhas.
Saio no susto pra atender, os caras do correio têm estado mal-humorados por esses tempos -- pudera, também depois de seus dirigentes e funcionários se tornarem bozominions de carteirinha de uma hora pra outra, dentre os maiores patrocinadores do golpe de 2016 que depôs um governo legítimo e por fim serviu à instauração do estado de terror messiânico que ora nos polui, e ainda não fosse isso, suas carreiras, em ato contínuo, desabando do status década atrás de uma das boas carreiras do serviço público para uma espécie de subcasta mal paga e maltratada continuamente pelos déspotas no comando. Já era previsível o mau-humor de quem perdeu (muito) no processo de insistir em ser ovelha num mundo dominado por lobos.
Corro ao portão, tropeçando em havaianas. Do quintal onde estou dando alpiste aos passarinhos e dialogando com as pequenas samambaias recém-surgidas no muro úmido e ainda portando a beleza daquela sua película úmida do orvalho noturno -- porque sou desses, agora --, saio apressado com meu quase-pijama, quase-roupa apresentável para receber a entrega. Nos quartos, todos ainda dormem. Benzam os deuses, eles ainda parecem tranquilos por aqui. Por acaso ou sorte, não nos falta comida nem teto, nem algum conforto possível dessa vida material cuja ausência a tantos assola lá fora. Tempos de guerra. Parece , para quem de certa forma acompanha política, história, movimento mundial, a constatação que mais vem ao espírito não é bem "Deus! o que aconteceu com a gente?! para onde vamos? quem podia esperar uma desgraça dessas?", parece que seria muito apropriadamente transposta para seguinte questão: "Deus?! aonde? se existir, diga oi. Ao menos uma vez, Vai. Como foi que demorou tanto pra chegar onde chegamos, considerando que diante da natureza humana e das ações reiteradas no planeta, considerando que diante de toda a desgraça que sobeja em nossa trajetória coletiva só agora é que vieram esses boletos com atraso?" deus?!...
Ok, isso é nada além da tentativa de manter algum humor diante da pandemia, que ainda permanece mais ou menos saudavelmente cético e esperando que desse buraco de ratos sempre possa sair qualquer coisa de pior, que não será demais em vista do que é a raça. Quarenta e cinco covidias e ate´agora apenas os horários e costumes foi o que mais mudou em casa. Os humores também, é claro, e tirando os altos e baixos previsíveis, ainda tá bom diante do quadro lá fora. Não me lembro direito se tomei o café ou almocei agora há pouco. A janta , por outro lado, parecia ter sido servida há uma semana. Ou seria ceia? Pontuo meus horários dividindo trabalho, leituras e atividades domésticas, como quase todos, mas nem mesmo a escrita pode servir como cronograma certo, aleatória como está, truncada e um tanto quanto desmotivada.
Corro ao portão, tropeçando em havaianas. Do quintal onde estou dando alpiste aos passarinhos e dialogando com as pequenas samambaias recém-surgidas no muro úmido e ainda portando a beleza daquela sua película úmida do orvalho noturno -- porque sou desses, agora --, saio apressado com meu quase-pijama, quase-roupa apresentável para receber a entrega. Nos quartos, todos ainda dormem. Benzam os deuses, eles ainda parecem tranquilos por aqui. Por acaso ou sorte, não nos falta comida nem teto, nem algum conforto possível dessa vida material cuja ausência a tantos assola lá fora. Tempos de guerra. Parece , para quem de certa forma acompanha política, história, movimento mundial, a constatação que mais vem ao espírito não é bem "Deus! o que aconteceu com a gente?! para onde vamos? quem podia esperar uma desgraça dessas?", parece que seria muito apropriadamente transposta para seguinte questão: "Deus?! aonde? se existir, diga oi. Ao menos uma vez, Vai. Como foi que demorou tanto pra chegar onde chegamos, considerando que diante da natureza humana e das ações reiteradas no planeta, considerando que diante de toda a desgraça que sobeja em nossa trajetória coletiva só agora é que vieram esses boletos com atraso?" deus?!...
Ok, isso é nada além da tentativa de manter algum humor diante da pandemia, que ainda permanece mais ou menos saudavelmente cético e esperando que desse buraco de ratos sempre possa sair qualquer coisa de pior, que não será demais em vista do que é a raça. Quarenta e cinco covidias e ate´agora apenas os horários e costumes foi o que mais mudou em casa. Os humores também, é claro, e tirando os altos e baixos previsíveis, ainda tá bom diante do quadro lá fora. Não me lembro direito se tomei o café ou almocei agora há pouco. A janta , por outro lado, parecia ter sido servida há uma semana. Ou seria ceia? Pontuo meus horários dividindo trabalho, leituras e atividades domésticas, como quase todos, mas nem mesmo a escrita pode servir como cronograma certo, aleatória como está, truncada e um tanto quanto desmotivada.
Na prática, não me lembro ainda nem se hoje já escovei os dentes. Banho, com certeza tomei, ao menos ontem. O sabonete ainda está cheiroso na pele. Não? acho que isso é cheiro de álcool gel, depois que algum infeliz teve a infeliz idéia de aromatizar a substância. Mas a roupa que uso agora não é a mesma de ontem. Isso é certo. Suspeito que tomei sim, banho. Da última vez que me olhei no espelho, duvidei do cogito, duvidei da existência preceder a essência, duvidei do tornar-te o que és, só não duvidei nem duvidarei mais de que , quando falamos de coletividades, a economia segue sendo o motor da história, eu que segui à risca esse preceito, um dia.
Na mecânica diária, depois de uns dias de baque desconcertante, confesso que há algo em mim capaz de estar gostando mais da quarentena do que devia. Óbvio que não pelas perdas humanas e o desespero experimentado por algumas pessoas em angustiantes quebras de rotina. Nesse ponto, não me enquadro. Depois que decidi de vez dedicar a maior parte da minha força útil, criativa ou destrutiva -- pois sim, ambas são mais que irmãs, de uma forma até promíscua, e jamais andam separadas -- para a leitura e escrita, é como se os covidias em desolamento impusessem a boa parte da humanidade mais ou menos o que se vive numa rotina de escrita, quando alguém leva a coisa a sério. Inconformado com a constatação, corro à biografia dos que mais gosto. É como se vivessem eternamente em covidias, sem data pra acabar. Alguns inclusive, suportando mais que isso durante monstruosas guerras.
A velha história da dor como motor? desconfio da criação univocacionada. Não há. As pessoas e histórias são únicas, absolutamente incomparáveis a rigor, e seus processos criativos universos em aberto sem definição. Se a alguns a picada estimula, a outros o fumo e a fumaça, uns terceiros a boa mesa ou passeios ao ar livre, e boa parte o sexo, em qualquer de suas práticas ou variantes. A presença, a sugestão, a imensurável fantasia é o que mais lhes fornece material. De outro lado, para atribuir única e exclusivamente à via material o pulso criativo, cairíamos num velho paradoxo: tantos homens ( e mulheres) de ação, relevantes e até inafastáveis de sua luta ou presença no mundo, jamais escreveram uma linha, pintaram um quadro ou compuseram uma música, sequer tocaram um instrumento. Não fosse assim, outros gigantes escritores e poetas mais ou menos confinados, ou como Kant, o filósofo, que jamais saiu de sua cidade natal e ainda assim escreveu a mais importante obra do pensamento contemporâneo. Como Borges lembrava, sem a imaginação somos nada. O meio do mundo é apenas estímulo para que outras forças entrem em ação.
Na verdade, parado em frente ao espelho de manhã e olhando bem fundo naqueles olhos estatalados ali no reflexo luminoso, duvidei hoje até da minha própria existência, talvez uma remota identidade um dia havida e agora ultrapassada por uma outra criatura, com aparência misturada de Elvis se tivesse sobrevivido a tudo, trinta anos depois, talvez pela cara inchada, os quilos a mais, a voz já rouca depois de tanta música, e ainda mais pelo topete indomável e crescido para muito além da conta nesses tempos de sumiço dos salões com uma barba sábio-chinês esticando-se por sabe-se lá mais quanto tempo, portadora de uma tal branqueza que assustaria até meu avô em seus últimos anos.
Ah, o tempo! Se ao menos trouxesse alguma compensação. Não melhorei com o tempo, acho. Certeza. Perda de tempo. literalmente, sem trocadilho. Enchendo a cara de vitaminas que na propaganda dizem que combatem até o capeta, e não sei se combatem o capeta, mas me dão uma fome dos diabos, além de fazer mijar verde. Um tantim mais pesado, portanto, sem remorso. A bem dizer, deveria orgulhar um homem a sua dificuldade adquirida de passar -- de frente -- numa porta . O problema é se a coisa evoluir a ponto de não passar mais de lado. Querido diário, preciso trabalhar nesse ponto fraco, na promessa de malhação que fiz no início de tudo, lá atrás.
Não melhorei com o tempo, certeza. Diferente do vinho. Vou estragando, compassadamente sem precisar olhar no relógio. Além do mau humor, algumas dores, pra dizer a verdade. As conhecidas, já ,e sempre surgindo alguma nova querendo disputar espaço. O aumento notável do mau-humor e das irritações cotidianas. A necessidade cada vez maior do café, em maior quantidade, e o efeito colateral do café, é claro. Enquanto isso, a barba cada vez maior e mais medonha, sábio-chinês na aparência e desfruto apenas a barba, diga-se, o restante anda decepcionando em critérios de alguma sabedoria. Como tudo na era digital, tão liquefeita como o guru Baumann já lembrava citando o mestre, as grandes certezas seguem intocáveis e as pequenas se evaporam em pouco tempo, uma vez (quase) firmadas, enquanto na idade média elas duravam séculos, na modernidade décadas, e na era atual é o tempo de chegar uma mensagem mais nova e mais destrutiva no zap.
Parecendo no domingo, quando depois de um tempo, resolvemos pedir comida pelo I-food. Uma desgraça, a inconstância das certezas na era digital. Ainda mais pra mim, que trabalho, vivo, dedico tanto tempo da vida a lidar, pensar, resolver hipoteticamente questões diretamente ligadas à esfera do trabalho. A gente nem sempre sabe até que ponto ajuda ou maltrata. O sistema confunde, irmão. É por isso que não caiu até hoje. Dissimula, dissolve, dissuade. Durante tempos, entendi que era uma espécie de crueldade usar desses serviços de grandes franquias ou entregas que tratam como cães seus empregados entregadores, tantas vezes denominados "parceiros", no eufemismo sanguinário do dia-a-dia das novas velhas relações trabalhistas que ceifaram miraculosamente tudo de bom que veio depois da revolução francesa, das greves, da essencial demanda socialista que mesmo não vingando impôs nova consciência aos trabalhadores e forçou aos patrões mudanças perenes até o momento de dez minutos atrás, antes do desastre total e absoluto da nova onda conservadora (e imbecil, diferenciando-se de outras ondas de direita conservadoras inteligentes que ocorreram décadas atrás) no planeta, chefiada por Trumps & cia, além dos lambe-rabos bozonaros.
Depois, como quase todo mundo, acabei cedendo a algumas comodidades e parti também pra demanda de I-food, Rappi, Uber Eats etc, a máquina que remunera o trabalhador depois de ralar um dia inteiro num Spoletto, McDonalds ou Burger King da vida com no máximo 30 coronas, coisa que mal dá pra comprar uma unidade-comida (hamburguer, prato de macarrão ou promoção do dia) e alimentar esses trabalhadores nos seus respectivos locais de trabalho. 30 CV$, acabei de criar a cifra-moeda-mundial, que vai acabar pegando uma hora. Porque o som e a imagem dessa praga acabam tomando a gente pelos poros, pelos ouvidos, (pelos olhos e nariz não pode) e de uma hora por outra, você se pega falando, numa sintaxe qualquer, fulano sicrano beltrano --covid-- eu acho que vou ligar pra minha mãe no seu aniver-covid, ou então vou pedir esse rango-covid aqui pelo aplicativo, ontem à noite-covid assisti a um filme-covid e fui dormir a tantas horas-covid. Não sai mais do ouvid. E olha que não assisto tv.
Depender dessa tristeza de serviços de entrega da galera que é estripada todos os dias pela máquina é, por conceito ,algo brutal. E mais brutal ainda, quando você vê, não concorda, e ainda assim acaba participando uma hora. Achei que era coisa de gente descerebrada (e ainda acho) mas passei a usar uma vez ou outra, diante das alternativas ou fala delas , isso quando chegava a usar, e caprichava na gorjeta em mãos para tentar compensar ao menos a ponta do iceberg. Nem sei se um dia compensou para eles os entregadores, enfim. Acho que não. Mas são as pequenas contradições que nos colocam nas mãos ou na mente para confundirem qualquer tipo de ideal ou maior movimentação de algum propósito mais sólido e que transcenda individualidades, sedimentando uma liga potencialmente mais poderosa.
Como no paradoxo do usar ou não usar canudos de plástico. A ingenuidade das boas almas que, mesmo com bons intuitos, se perdem em superfícies obsedantes, sem qualquer efeito real no âmago dessa cortante máquina do mundo. Que adianta evitar aquele canudinho na barriga da tartaruga se em breve não teremos mar e as últimas tartarugas terão virado sopa há muito tempo? A noção budista tão difundida mas completamente superficial de que, fazendo trabalhos de formiguinha, tudo estará resolvido por alguma espécie de ordem cósmica. Sinto muito informar, caros, mas o universo é puro caos em constante e incessável movimento constrói-destrói tudo a cada segundo e a suposta ordem apenas defeito dos olhos que vêem. Ora, formiguinhas, e se a porra desse formigueiro for nada além de uma fábrica conduzida por forças muito mais poderosas que transcendem sua pequena e simplória consciência espacial e você for mais uma formiga carregadeira-cortadeira pisando na cabeça das formigas menores e armazenando os melhores provimentos para os formigões que mandam em tudo mesmo que nunca venha a saber?
Neste primeiro de maio, inspiração para esta quebra de silêncio inoportuna como todas, desafiando o conceito fundamental de João Gilberto, ocasião que me reverbera alto por motivos pessoais. É que ainda fico besta como o próprio sistema pode hoje celebrar "o dia do trabalho", uma entidade,essa força, uma constante social tão poderosa e teoricamente emancipadora como o trabalho humano, fazendo tão pouco caso disso tudo. É como se aproveitasse da data para negá-la. A figura do trabalhador desaparece no evento, derrete em função da capa enganadora da ideologia qud valoriza a entidade abstrata e formal em detrimento dos corpos que a compõem.
Diante da perda gigante do potencial negociador da força de trabalho espalhada pelo deserto i-mundial, diante do esmagamento dos sindicatos, diante da passivificação dos indivíduos por essa COISA repugnante que passou a ocupar noventa por cento da espiritualidade formal de boa parte do país e que impede absolutamente qualquer movimento de revolta , consciência ou virada de mesa satisfatória contra tudo isso que desgraça o planeta, o país, o ambiente ao redor, já se sabe que
não houve época na história -- alguns autores chegam a afirmar que, talvez não na questão da liberdade formal, é claro, por ausência de critérios humanos de comparação -- mas a escravidão clássica tinha mais em conta a vida dos escravos do que a esfera plenamente consolidada capitalista, como é o neoliberalismo atual que vomita a ausência do Estado para sugar o sangue do mesmo estado, sustentado por nós, trabalhadores.
Sim, porque por lógica irrefutável, havia um interesse dos senhores pelos seus escravos , querendo ou não, eles precisavam em algum momento se preocupar com suas vidas , seus próprios patrimônios, uma vez que escravos eram coisas. De acordo com a idéia, no sistema capitalista, pela excessiva proliferação das periferias e exército de reserva de trabalhadores, não há qualquer preocupação real dos donos do sistema com a vida pessoal de qualquer um situado nas inferiores esferas, aqueles que não são os donos da porra toda, ou seus capitães-do-mato. Necropolítica é coisa antiga, amigo.
Mas é que esse desolamento tem outros efeitos, para além da coisa big-brother de tudo. Efeitos sobre o individual, que transcendem o coletivo. Aqui no que toco, percebo aos poucos uma selvagerização de eu no meu olhar sobre mim, talvez de todos que se encontrem em processos semelhantes. O tal do outro, -- esse inferno, como bem lembrou o francês -- vai se distanciando, de alguma forma, ao menos na sua presença-limitadora-de-espaços-quadradinhos que me levam a retornar ás vezes de volta ao meu, dizendo quem eu sou e qual minha amplitude. Na sua relativização em presença, uma quase-dissolução porque as vias digitais nem de longe ocupam esse mesmo papel em intensidade e prospecção, desse distanciamento meu olhar selvageriza-se em direção a mim, e resgata coisas e estruturas nos espelhos espalhados pela casa que antes pareciam perdidas. Bom, isso. Tô gostando, no fim. Tudo bem que a cara fica meio estranha, e os olhos vão saindo um pouco das órbitas, mas acho que isso faz parte.
Duvidava já, bastante, do quê-mesmo-que-eu-era apenas como resposta e reação ao que o outro esperava de mim, desde o nascimento. Faço uma careta de dentes arreganhados diante do espelho quando me lembro disso. É tudo, no fim, uma corda de abismo sobre esses pontos, já disseram isso em algum lugar. A corda ora vai mais pra um lado, vai pro outro, e de algum jeito vamos equilibrando sem perder totalmente de vista que abaixo está um poço sem qualquer esperança de fundo. O desolamento -- relativo ainda, não absoluto por tantas razões -- serviu, serve para retomar de um lado uma nova perspectiva do que é mesmo que la´fora valeria a pena tentar dinamizar como forças e energias convergentes para a vida. E ao mesmo tempo, entender como é que essa cara de primeiro homem no espelho andava precisando mais aparecer com suas barbas desgrenhadas, seu sorriso debochado e os dentes pontudos para desafiar o que lhe impuseram de fora para dentro por tanto tempo.
Na mecânica diária, depois de uns dias de baque desconcertante, confesso que há algo em mim capaz de estar gostando mais da quarentena do que devia. Óbvio que não pelas perdas humanas e o desespero experimentado por algumas pessoas em angustiantes quebras de rotina. Nesse ponto, não me enquadro. Depois que decidi de vez dedicar a maior parte da minha força útil, criativa ou destrutiva -- pois sim, ambas são mais que irmãs, de uma forma até promíscua, e jamais andam separadas -- para a leitura e escrita, é como se os covidias em desolamento impusessem a boa parte da humanidade mais ou menos o que se vive numa rotina de escrita, quando alguém leva a coisa a sério. Inconformado com a constatação, corro à biografia dos que mais gosto. É como se vivessem eternamente em covidias, sem data pra acabar. Alguns inclusive, suportando mais que isso durante monstruosas guerras.
A velha história da dor como motor? desconfio da criação univocacionada. Não há. As pessoas e histórias são únicas, absolutamente incomparáveis a rigor, e seus processos criativos universos em aberto sem definição. Se a alguns a picada estimula, a outros o fumo e a fumaça, uns terceiros a boa mesa ou passeios ao ar livre, e boa parte o sexo, em qualquer de suas práticas ou variantes. A presença, a sugestão, a imensurável fantasia é o que mais lhes fornece material. De outro lado, para atribuir única e exclusivamente à via material o pulso criativo, cairíamos num velho paradoxo: tantos homens ( e mulheres) de ação, relevantes e até inafastáveis de sua luta ou presença no mundo, jamais escreveram uma linha, pintaram um quadro ou compuseram uma música, sequer tocaram um instrumento. Não fosse assim, outros gigantes escritores e poetas mais ou menos confinados, ou como Kant, o filósofo, que jamais saiu de sua cidade natal e ainda assim escreveu a mais importante obra do pensamento contemporâneo. Como Borges lembrava, sem a imaginação somos nada. O meio do mundo é apenas estímulo para que outras forças entrem em ação.
Na verdade, parado em frente ao espelho de manhã e olhando bem fundo naqueles olhos estatalados ali no reflexo luminoso, duvidei hoje até da minha própria existência, talvez uma remota identidade um dia havida e agora ultrapassada por uma outra criatura, com aparência misturada de Elvis se tivesse sobrevivido a tudo, trinta anos depois, talvez pela cara inchada, os quilos a mais, a voz já rouca depois de tanta música, e ainda mais pelo topete indomável e crescido para muito além da conta nesses tempos de sumiço dos salões com uma barba sábio-chinês esticando-se por sabe-se lá mais quanto tempo, portadora de uma tal branqueza que assustaria até meu avô em seus últimos anos.
Ah, o tempo! Se ao menos trouxesse alguma compensação. Não melhorei com o tempo, acho. Certeza. Perda de tempo. literalmente, sem trocadilho. Enchendo a cara de vitaminas que na propaganda dizem que combatem até o capeta, e não sei se combatem o capeta, mas me dão uma fome dos diabos, além de fazer mijar verde. Um tantim mais pesado, portanto, sem remorso. A bem dizer, deveria orgulhar um homem a sua dificuldade adquirida de passar -- de frente -- numa porta . O problema é se a coisa evoluir a ponto de não passar mais de lado. Querido diário, preciso trabalhar nesse ponto fraco, na promessa de malhação que fiz no início de tudo, lá atrás.
Não melhorei com o tempo, certeza. Diferente do vinho. Vou estragando, compassadamente sem precisar olhar no relógio. Além do mau humor, algumas dores, pra dizer a verdade. As conhecidas, já ,e sempre surgindo alguma nova querendo disputar espaço. O aumento notável do mau-humor e das irritações cotidianas. A necessidade cada vez maior do café, em maior quantidade, e o efeito colateral do café, é claro. Enquanto isso, a barba cada vez maior e mais medonha, sábio-chinês na aparência e desfruto apenas a barba, diga-se, o restante anda decepcionando em critérios de alguma sabedoria. Como tudo na era digital, tão liquefeita como o guru Baumann já lembrava citando o mestre, as grandes certezas seguem intocáveis e as pequenas se evaporam em pouco tempo, uma vez (quase) firmadas, enquanto na idade média elas duravam séculos, na modernidade décadas, e na era atual é o tempo de chegar uma mensagem mais nova e mais destrutiva no zap.
Parecendo no domingo, quando depois de um tempo, resolvemos pedir comida pelo I-food. Uma desgraça, a inconstância das certezas na era digital. Ainda mais pra mim, que trabalho, vivo, dedico tanto tempo da vida a lidar, pensar, resolver hipoteticamente questões diretamente ligadas à esfera do trabalho. A gente nem sempre sabe até que ponto ajuda ou maltrata. O sistema confunde, irmão. É por isso que não caiu até hoje. Dissimula, dissolve, dissuade. Durante tempos, entendi que era uma espécie de crueldade usar desses serviços de grandes franquias ou entregas que tratam como cães seus empregados entregadores, tantas vezes denominados "parceiros", no eufemismo sanguinário do dia-a-dia das novas velhas relações trabalhistas que ceifaram miraculosamente tudo de bom que veio depois da revolução francesa, das greves, da essencial demanda socialista que mesmo não vingando impôs nova consciência aos trabalhadores e forçou aos patrões mudanças perenes até o momento de dez minutos atrás, antes do desastre total e absoluto da nova onda conservadora (e imbecil, diferenciando-se de outras ondas de direita conservadoras inteligentes que ocorreram décadas atrás) no planeta, chefiada por Trumps & cia, além dos lambe-rabos bozonaros.
Depois, como quase todo mundo, acabei cedendo a algumas comodidades e parti também pra demanda de I-food, Rappi, Uber Eats etc, a máquina que remunera o trabalhador depois de ralar um dia inteiro num Spoletto, McDonalds ou Burger King da vida com no máximo 30 coronas, coisa que mal dá pra comprar uma unidade-comida (hamburguer, prato de macarrão ou promoção do dia) e alimentar esses trabalhadores nos seus respectivos locais de trabalho. 30 CV$, acabei de criar a cifra-moeda-mundial, que vai acabar pegando uma hora. Porque o som e a imagem dessa praga acabam tomando a gente pelos poros, pelos ouvidos, (pelos olhos e nariz não pode) e de uma hora por outra, você se pega falando, numa sintaxe qualquer, fulano sicrano beltrano --covid-- eu acho que vou ligar pra minha mãe no seu aniver-covid, ou então vou pedir esse rango-covid aqui pelo aplicativo, ontem à noite-covid assisti a um filme-covid e fui dormir a tantas horas-covid. Não sai mais do ouvid. E olha que não assisto tv.
Depender dessa tristeza de serviços de entrega da galera que é estripada todos os dias pela máquina é, por conceito ,algo brutal. E mais brutal ainda, quando você vê, não concorda, e ainda assim acaba participando uma hora. Achei que era coisa de gente descerebrada (e ainda acho) mas passei a usar uma vez ou outra, diante das alternativas ou fala delas , isso quando chegava a usar, e caprichava na gorjeta em mãos para tentar compensar ao menos a ponta do iceberg. Nem sei se um dia compensou para eles os entregadores, enfim. Acho que não. Mas são as pequenas contradições que nos colocam nas mãos ou na mente para confundirem qualquer tipo de ideal ou maior movimentação de algum propósito mais sólido e que transcenda individualidades, sedimentando uma liga potencialmente mais poderosa.
Como no paradoxo do usar ou não usar canudos de plástico. A ingenuidade das boas almas que, mesmo com bons intuitos, se perdem em superfícies obsedantes, sem qualquer efeito real no âmago dessa cortante máquina do mundo. Que adianta evitar aquele canudinho na barriga da tartaruga se em breve não teremos mar e as últimas tartarugas terão virado sopa há muito tempo? A noção budista tão difundida mas completamente superficial de que, fazendo trabalhos de formiguinha, tudo estará resolvido por alguma espécie de ordem cósmica. Sinto muito informar, caros, mas o universo é puro caos em constante e incessável movimento constrói-destrói tudo a cada segundo e a suposta ordem apenas defeito dos olhos que vêem. Ora, formiguinhas, e se a porra desse formigueiro for nada além de uma fábrica conduzida por forças muito mais poderosas que transcendem sua pequena e simplória consciência espacial e você for mais uma formiga carregadeira-cortadeira pisando na cabeça das formigas menores e armazenando os melhores provimentos para os formigões que mandam em tudo mesmo que nunca venha a saber?
Neste primeiro de maio, inspiração para esta quebra de silêncio inoportuna como todas, desafiando o conceito fundamental de João Gilberto, ocasião que me reverbera alto por motivos pessoais. É que ainda fico besta como o próprio sistema pode hoje celebrar "o dia do trabalho", uma entidade,essa força, uma constante social tão poderosa e teoricamente emancipadora como o trabalho humano, fazendo tão pouco caso disso tudo. É como se aproveitasse da data para negá-la. A figura do trabalhador desaparece no evento, derrete em função da capa enganadora da ideologia qud valoriza a entidade abstrata e formal em detrimento dos corpos que a compõem.
Diante da perda gigante do potencial negociador da força de trabalho espalhada pelo deserto i-mundial, diante do esmagamento dos sindicatos, diante da passivificação dos indivíduos por essa COISA repugnante que passou a ocupar noventa por cento da espiritualidade formal de boa parte do país e que impede absolutamente qualquer movimento de revolta , consciência ou virada de mesa satisfatória contra tudo isso que desgraça o planeta, o país, o ambiente ao redor, já se sabe que
não houve época na história -- alguns autores chegam a afirmar que, talvez não na questão da liberdade formal, é claro, por ausência de critérios humanos de comparação -- mas a escravidão clássica tinha mais em conta a vida dos escravos do que a esfera plenamente consolidada capitalista, como é o neoliberalismo atual que vomita a ausência do Estado para sugar o sangue do mesmo estado, sustentado por nós, trabalhadores.
Sim, porque por lógica irrefutável, havia um interesse dos senhores pelos seus escravos , querendo ou não, eles precisavam em algum momento se preocupar com suas vidas , seus próprios patrimônios, uma vez que escravos eram coisas. De acordo com a idéia, no sistema capitalista, pela excessiva proliferação das periferias e exército de reserva de trabalhadores, não há qualquer preocupação real dos donos do sistema com a vida pessoal de qualquer um situado nas inferiores esferas, aqueles que não são os donos da porra toda, ou seus capitães-do-mato. Necropolítica é coisa antiga, amigo.
Mas é que esse desolamento tem outros efeitos, para além da coisa big-brother de tudo. Efeitos sobre o individual, que transcendem o coletivo. Aqui no que toco, percebo aos poucos uma selvagerização de eu no meu olhar sobre mim, talvez de todos que se encontrem em processos semelhantes. O tal do outro, -- esse inferno, como bem lembrou o francês -- vai se distanciando, de alguma forma, ao menos na sua presença-limitadora-de-espaços-quadradinhos que me levam a retornar ás vezes de volta ao meu, dizendo quem eu sou e qual minha amplitude. Na sua relativização em presença, uma quase-dissolução porque as vias digitais nem de longe ocupam esse mesmo papel em intensidade e prospecção, desse distanciamento meu olhar selvageriza-se em direção a mim, e resgata coisas e estruturas nos espelhos espalhados pela casa que antes pareciam perdidas. Bom, isso. Tô gostando, no fim. Tudo bem que a cara fica meio estranha, e os olhos vão saindo um pouco das órbitas, mas acho que isso faz parte.
Duvidava já, bastante, do quê-mesmo-que-eu-era apenas como resposta e reação ao que o outro esperava de mim, desde o nascimento. Faço uma careta de dentes arreganhados diante do espelho quando me lembro disso. É tudo, no fim, uma corda de abismo sobre esses pontos, já disseram isso em algum lugar. A corda ora vai mais pra um lado, vai pro outro, e de algum jeito vamos equilibrando sem perder totalmente de vista que abaixo está um poço sem qualquer esperança de fundo. O desolamento -- relativo ainda, não absoluto por tantas razões -- serviu, serve para retomar de um lado uma nova perspectiva do que é mesmo que la´fora valeria a pena tentar dinamizar como forças e energias convergentes para a vida. E ao mesmo tempo, entender como é que essa cara de primeiro homem no espelho andava precisando mais aparecer com suas barbas desgrenhadas, seu sorriso debochado e os dentes pontudos para desafiar o que lhe impuseram de fora para dentro por tanto tempo.
Não sei quanto tempo levo pensando isso tudo parado em pé no quintal. Se for ler o texto, leva uma eternidade. Mas quando penso, tudo isso passa mais rápido que passarinho. O homem na porta. Sim. Bom, estou vestido, ao menos, e em condição de atender alguém na porta. Importante sempre verificar isso, depois da notícia daquele cara que apareceu na porta do seu apartamento pelado e com a cara cheia de espuma de barbear. Depois da quarentena, e possivelmente após rarear o primeiro estoque de roupas de casa, diz a matéria, ele decidiu andar pelado em casa e usar roupa só para o extremamente necessário. Sabe lá deus o que isso quer dizer. Eu até há pouco continuava mesmo com minha elegância quase inglesa de fazer a barba sempre, pentear a cabeleira, malhar uma vez por mês etc etc etc. Bom, mas acho que isso foi até a segunda ou terceira semana. O olhar do outro sobre meu olhar sobre mim anda raleando, daí é claro que diminui a pressão. O olhar do outro. O olhar. Se não se turbinar logo na sequência, vou adotar logo logo a tática do peladão italiano.
Vou lá atender. O carteiro aqui tocou umas cinco vezes a campainha, até acabar a pilha. Ela sempre falha se ficar com a mão direto no botão (E ele sempre fica, desconfio que é o mesmo carteiro sempre). No caminho até o portão, saindo do quintal, preciso passar pela copa e pela sala, sendo que nesse trajeto parei três vezes para lavar as mãos, variando entre sabão no primeiro posto, álcool gel setenta no segundo posto, e pra confirmar, sabão de novo no último posto, próximo da ante-sala de desinfecção. A ante-sala de desinfecção -- conhecida nas antigas civilizações como varanda-- é onde ficam as caixas e bagulhos descartáveis que vêm da rua e precisam passar por um banho de Kiboa antes de adentrarem os outros cômodos. De tempos em tempos, precisa ser esvaziada de toda aquela tralha.
Vou lá atender. O carteiro aqui tocou umas cinco vezes a campainha, até acabar a pilha. Ela sempre falha se ficar com a mão direto no botão (E ele sempre fica, desconfio que é o mesmo carteiro sempre). No caminho até o portão, saindo do quintal, preciso passar pela copa e pela sala, sendo que nesse trajeto parei três vezes para lavar as mãos, variando entre sabão no primeiro posto, álcool gel setenta no segundo posto, e pra confirmar, sabão de novo no último posto, próximo da ante-sala de desinfecção. A ante-sala de desinfecção -- conhecida nas antigas civilizações como varanda-- é onde ficam as caixas e bagulhos descartáveis que vêm da rua e precisam passar por um banho de Kiboa antes de adentrarem os outros cômodos. De tempos em tempos, precisa ser esvaziada de toda aquela tralha.
Me aproximo do portão, não sem antes afastar os cães de guerra, que vociferam próximos às grandes plataformas de metal fundido, espantando a capa do inimigo visível que enxergam em tudo que se aproxima dos seus domínios. Espantando também a essência fluida aerossol do inimigo que não podem ver mas pressentem, cheiram, sabem que existe. Os cães sempre sabem tudo pelo cheiro.
Jà no portão, com máscara e circunstância, pergunto o que vai do outro lado, lá rua, sem ainda abrir. Não vejo o que está do outro lado, mas uma voz meio áspera e insegura confirma encomenda para mim, diz que é do correio, está ali em pé há um tempão e subitamente um braço peludo tendo na ponta uma luva médica se alevanta trazendo um pacote da EBCT pequeno sobre a cerca elétrica e pontuda de vinte mil volts que estrategicamente foi desligada nesse instante e em geral durante o dia para evitar processos criminais contra inocentes.
Pergunto se quer que eu abra o portão e assine algum papel, mas a voz do outro lado, rapidamente diz que tá tudo bem não precisanãosenhor e antes que eu me decida -- ainda em pé na frente do jardim -- observo que o carro bate rapidamente a porta e sai em arrancada comendo pneu.
Na volta, faço todo o processo invertido, sem me esquecer de retirar a casca das embalagens com uma tesoura de jardim, não sem antes dar uma boa borrifada numa solução aquosa de água sanitária sobre tudo. Abro o pacote, descarto o papelão e plásticos, e levo pra dentro de casa apenas o miolo, seja lá o que for, parando na primeira mesa para o banho de álcool gel setenta. Depois disso, claro, lavar a mão mais duas vezes no caminho de volta ao quintal.
A televisão na saleta está ligada, acho que dormiu ligada pelo jeito, não lembro. Acho que tudo fica permanentemente ligado por aqui nos últimos tempos. Não há uma noção clara de quando termina um processo e outro se inicia. Dormi às cinco da manhã em alguns dias, outras vezes acordei no meio do sono achando que era dia, e me preparava para trabalhar, quando abri o blackout e vi que era noite mesmo, três da manhã -- em teletrabalho percebi surpreso que trabalho muito mais do que na forma presencial. Sim, o sistema até nisso se beneficia e engorda. Sem distrações, foco aumentado e uma certa dose de conforto, net rápida, tudo acaba rendendo mais. Há outras questões aí, ainda dormindo, que serão percebidas logo logo, e não creio que serão boas para qualquer tipo de nós-trabalhadores-uni-vos do mundo. É só aguardar. Mais cedo teve pronunciamento da criatura que ocupa o espaço inexistente da presidência da nação inexistente. Chego perto da tv pra assistir. Logo eu, que dispensei a tv da minha vida há cinco anos, sem nutrir qualquer saudade, abrindo raras exceções para dois ou três programas humorísticos aleatórios.
A tv ligada, pronunciamento da besta-coisa nascida para nos mostrar o quão desprezível pode ser o homem , não só por ele próprio ,mas pela certeza imediata tão ao redor das pessoas que o colocaram lá nesse lugar, e algumas que ainda o defendem. Somos uma raça perdida -- e a gente sempre sonhando alto demais -- pequenos diante da vida. Aumento o som, focalizo a figura. Não consigo entender o que ele fala, algo por dentro aqui parece ter se desconectado da tradução de conteúdos quando ele faz pronunciamentos, uma tecla SAP, um tradutor automático ou algo do gênero que me falta e agora se põe bloqueado diante de tudo que vem dali. Uma gastura sem fim, um sofrimento ver aquela boca de calango velho, a língua sibilando feito cobra de um lado pro outro sem eu compreender os sons. E daí, diante da incapacidade absoluta de compreender aquela fala sem conteúdo ou direção, as mesma tentativas assassinas de píada que tanto matam a cada risada tosca, a pronúncia desprezível da nobre língua pátria e o gesticular que envergonharia um sapo, vou mesmo é tentando absorver pelas beiradas e análises de terceiros o que é que a criatura agora veio dizer. Nada. Como sempre, disse nada. Das raras hipóteses na vida em que uma fala em termos absolutos nada diz.
Enquanto isso, depois de um tempo pensando sobre o assunto: já vou antecipando. Coitado do Zizek. Tudo bem que ele hoje vive da própria fama e do glamour de ser um popstar da contrariedade, usando a cada cinco minutos jargões usados pelos pensadores clássicos do séc XVIII e XIX e ainda tornou-se famoso no mundo inteiro com isso, e pelo que tudo indica, ao menos no discurso ele passa uma cara de ingênuo confiante mesmo e vive esperando pela hora em que o sistema dará uma estrebuchada e entregará os pontos para a "nova ordem", que fatalmente nascerá das suas próprias contradições-entranhas tão vituperadas, em soberba dialética retumbante. Foi assim que ele comemorou Trump no poder. "quanto pior , melhor, disse". Putz!. Mais realista o Byung Chul Han, que desde o começo anunciava que mudaria porra nenhuma, que isso já faz parte da coisa toda, a plasticidade quase infinita do monstro-sistemático em se desfazer de carcaças apodrecidas e se vitaminar em nova ordem, feito cobra trocando casca, e logo logo se pondo novamente na linha de guerra, com corpos e mentes reprogramados para novos modos de produção que na verdade são sempre aqueles mesmos ditos lá atrás pelo velho barbudo. O próprio teletrabalho, tão frisado pelo coreano mesmo antes da quarentena, sendo uma forma esperta do monstro desarticular possíveis conchavos anti-sistema, pelo distanciamento dos agentes entre si, e fragmentação tanto do espaço de trabalho quanto do impacto de sua força conjunta.
Mudam também as técnicas -- sempre , como pressuposto de existência da ordem -- mas não muda a essência. E a exploração continua a mesma, cada vez mais impondo e infernizando as formas de intervenção e manipulação da raça humana sobre si própria e o ambiente, e ao mesmo tempo, fazendo com que os possíveis mecanismos de subversão dessa ordem cada vez mais se confundam e contendam-se entre si, disputando o sexo dos anjos enquanto cá embaixo o veneno engrossa.
Surgem novas formas de valorização dos produtos, só pra arrebentar com tudo que foi teorizado nesse sentido, criando novos desafios pra qualquer inteligência média que não concorde com o andar da carruagem -- algumas empresas como a Amazon duplicaram seu valor no mercado depois da quarentena mundial, trazendo no rastro uma porridão de assemelhadas. Internet amplia e aprimora formas de comércio. As bolsas , depois do susto, é claro, agora jogam com a mudança com uma facilidade incrível. Disputa-se, neste exato momento, em ao menos seis grandes frentes distintas, a paternidade (ou a maternidade, nesses tempos difíceis, pra não perder a chance de não discriminação) da nova vacina que vai salvar o mundo por mais meia hora enquanto enriquece de trilhões as pharma-nutra-imperialistas-cêuticas matadoras-de-crianças-sírias-e-africanas mundo afora, todas elas juntas e somadas e incluídas as filiais que fabricam armas e venenos, com dois terços de todo o PIB mundial nas mãos.
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REG AVCTORIS/ abr 2020
REG AVCTORIS/ abr 2020