Menino do mato, menino do morro
Nascido e criado no mato
entre pedras e quedas d'água
depois de tanto tempo ainda
reflete na alma a falta que
tudo aquilo faz
não adianta
a gente não se acostuma mais
se um dia esteve lá mergulhando
no rio, lavando riso
entre as pedras verdes e frias
empurra com a barriga, depois
e vai habitando entre os concretos
imprensa daqui, se amarga de lá
tentando achar que tá tudo bem
e que tudo é assim mesmo
mas não é. a gente finge
e enquanto segue inadaptado
vai se apegando a qualquer raminho verde
que salta aos olhos entre as calçadas
disputando o sôfrego sol com os tons de cinza
a gente finge que se esqueceu ou que não liga
mas mesmo sem querer vai correndo para
os espaços abertos disponíveis, alguns
com talento cultivam a mata atlântica em casa
tudo isso pra tentar manter-se vivo e pertencendo
depois de tentarem umas três vezes
desta feita os homens cortaram a mangueira
no terreno atrás do meu quintal
não sem aquele estardalhaço típico
de quem conta piadas enquanto mata
para cada mangueira cortada neste mundo
num mundo paralelo um menino perde a vida
a árvore imensa, copada e lenhosa
sombra para churrascos, esconderijo de pássaros
e de um certo mico-leão amigo
nem sei bem por que cortaram
não era velha, não estava caindo
não estava podre nem atrapalhava o caminho
de mais ninguém. inadvertido me corrijo:
como se o homem precisasse desculpas
no espaço banguelo da copa antiga
agora só existe a vista atravessada para o morro
um sempre-verde nos meses de chuva
carregado de mato seco e fogaréu no inverno
ao lado da enorme quantidade de habitações
olho pro céu, numa dessas tardes de confinamento
e um pouco antes de findar a luz, vejo muitas pipas
um festival, e apurando o ouvido nesse silêncio exótico
dá pra ouvir o som da gurizada se divertindo com a coisa
correm sobre as lajes e no limiar do campo alto
e vão riscando o céu de uma profusão de cores
pipas de todo jeito e tamanho, as manobras radicais
(quem já soltou pipa sabe), os gestos, a disciplina, o foco
a expectativa da criatura ganhar altura e pegar vôo
descobrindo seu natural, como a arte dos samurais
alguns descem na corrida para recuperar a pipa cortada
-- é de quem pegar -- não tem dono certo, já sabem
e antes que o sol suma, as últimas ainda brilham altivas
no laranja-em-luz que só existe por detrás dos morros
verdes, amarelas e azuis. a mais bonita é a do Flamengo