Ciclos





Contrariando um pouco minha natureza
ultimamente ando me apegando às coisas
Botei no quarto minha bicicleta
porque andava remoendo saudades dela
Assim, meio esquecida há meses, no porão
Dependurei na parede, como quadro-troféu
de inconteste beleza

Os guidons curvados na agressividade das velas
(lembrando a genial tirada de Picasso e o touro)
O formato leve e ágil, a cor roubada à escuridão
Os câmbios embutidos, metal infenso à corrosão
(como pode ser boa a tecnologia, quando não erra)

Agora, todos os dias, estou indo e vindo
da sala pra cozinha, do quarto pra copa
da copa pro quintal, do quintal pra sala
Nesses caminhos de andar que a gente faz
quando está trancado dentro de casa

E sempre dou aquela chegadinha mais perto,
arrumo logo um paninho pra dar um brilho, um óleo
admiro a arte, peça por peça, a trava firme da corrente
o suporte perfeito dos freios, as pastilhas embutidas

O câmbio silencioso e extremamente eficaz e rápido
(a velocidade inusitada que se atinge nas retas de asfalto)
todo esse andamento da história humana que
tanto fez, tanto se esticou para chegar até aqui

E, como tudo que é artefato feito com arte e graça
no decorrer de toda nossa história, traz em si
uma condensação de vidas, destinos, conhecimentos
Há peças aqui, ao alcance das minhas mãos
que foram concebidas no aço-base de duzentos anos atrás
outras ontem mesmo estavam em carros de formula um
ou no casco de foguetes voando pra lua

Condensado nestas peças, sinto o vento que ainda virá através delas
Toco a liga leve de metal que me levará no pedal
Vejo no conjunto um Ícaro que talvez a sonhasse aérea, em suas formas delicadas 
Vejo as mãos dos trabalhadores nas fábricas que a produziram
e fizeram soar e crescer e chegar até aqui para poder voar comigo

E a coisa, assim em forma e designação, na parede
deixa de ser ela mesma, -- todo objeto é mais que sua 
função imediata -- e passa a ser o momento asas
em que saio em disparada morro abaixo, rumo à praia

Olhando bem de perto, o mundo guarda 
uma transcendência inevitável e o conceito
de objetos inanimados deixa de existir

o mundo é anímico - as coisas têm história

-- e falam , pra quem sabe ouvir.