Das pequenas memórias de ser



Dia desses mandei fazer um carimbo
com meu nome gravado e a profissão
de escritor

Na minha imaginação, gosto sempre de
sentir que sou, na verdade, um escritor
que, ,como tantos, não consegue viver de livro
e que preciso me valer de uma outra atividade
para garantir a pena, e não o contrário
como inúmeros o fizeram antes de mim

É bom, isso. Admitir uma paixão como vida
Acho que o mundo sempre dói menos
porque tudo o mais parece coisa menor diante
do pulso criador e a existência de um objetivo

Essa coisa meio Flaubertiana,
desde que o mundo é mundo, e a escrita
não bastando ser a mais profunda e complexa arte
entre as artes, sempre sendo das
mais difíceis, não por critérios técnicos
mas por razões da intangibilidade física
do seu objeto

O moço dos carimbos  estava quase jogando fora
quando, três meses depois, fui lá buscar
Ele me disse, na ocasião, me encarando
de repente com um olhar curioso
que em cinco anos de loja
eu era o primeiro a pedir
esse tipo de carimbo

Ele imaginaria com melhores efeitos
um carimbo de escultor, de pintor,
os tradicionais de médico, advogado
talvez músico, ator, dançarino, retratista

Entendi logo, mas não quis argumentar
(até porque eu acho que tava concordando)

Mas ficou bonito, pra dizer a verdade
ainda que saltasse aos olhos
a inutilidade de uma convicção
na qual nem sempre se acredita

Ou talvez convicções sejam mesmo coisas
que devem ser perdidas e mais tarde
reencontradas, não sei, parece que o
processo de ganhar e perder acrescenta
muita coisa no fim de toda arte

Dessas coisas bestas que a gente faz
pra tentar se lembrar, lá na frente,
das escolhas que a gente fez no caminho
quando percebeu, ainda pequeno,
que não sabia desenhar nem pintar
não era assim lá tão bom com a bola
e em algum momento tocava alguma coisa
mas só para alívio da própria ansiedade

Se eu seguisse na vida Rilke, a quem
tanto admiro na poesia, me estarreceria
aceitar que, uma vez duvidando por um segundo
sobre se a arte é ou não uma opção válida de vida
Isso, por si só, o fato de perguntar, de duvidar,
ao contrário de me trazer as bênçãos cartesianas,
me faria de pronto perder uma espécie de dom divinal
a que só os obstinados têm vez, aqueles que não duvidam

Porra, Rilke! Não tenho absolutamente nada
contra ser bancado por princesas e donas ricas
vivendo de viajante e inquilino de castelo em castelo
(aliás, confesso que de certa forma era um sonho meu)
mas também não precisava passar a faca

Pra deixar de sofismar, passei à prática
Carimbei umas folhas em branco, pra pegar gosto
mirei bem pra acreditar no letreiro em itálico
carimbei meia dúzia de livros aqui em casa
e já fui parando logo, porque bateu o paradoxo

Volta e meia todo ano faço a doação de livros
E quer coisa pior que receber em mãos um livro
usado, ganhado, ou comprado nas filas do sebo
e já ver logo de antemão a quem pertenceu?

Inferno.

A não ser que fosse um livro anotado pelo Sartre
pelo Camus, quem sabe Cortázar. Mas o resto
é sacanagem

É semelhante a algum tipo de morte
A melhor coisa é pegar um livro anônimo
onde a imaginação não possa ser tolhida por
uma história, uma genealogia, uma posição social
uma existência qualquer a poluir os sentidos em aberto

Se vier algo escrito, perfeitamente anônimo, tudo bem
Rabiscos (dos quais eu mesmo encho meus livros)
receitas de bolo (que vi uma vez
na contracapa  da "Montanha Mágica",
que acabei comprando num sebo)
poemas e declarações de amor, que vi em vários
marcações personalizadas de textos, grifos
ou anotações de referências de todo tipo nas margens

Hoje, na era digital, a coisa mais sem graça do mundo
seria ver logo de cara a quem pertenceu o livro em mãos
Basta correr no goooooooooogle, que tudo sabe sobre todos
Quando não isso, stalkear as redes dos viventes mundo afora
e em questão de minutos ou segundos até, a mágica terá se perdido
ao se descobrir que a criatura ex-dona é alguém assim como a gente
com uma vida mais ou menos boa mais ou menos sofrida
mais ou menos cheia ou vazia de coisas especiais e banais
enfim, a morte da imaginação e expectativa idílica sobre o outro

Na verdade, olhando agora para o carimbo, as folhas em branco e
as carimbadas e já amassadas, pensando na situação toda
me vem novamente á lembrança a razão de eu ter feito um carimbo
A sensação extremamente abstrata e perdida de alguém se dedicar
de alma, corpo e cacos durante uma existência para apostar na escrita
e ainda sentir que, depois de tanto trajeto, o objeto ainda é fugaz
e no fundo, no fundo, nem tão fundo assim, não se tem nada nas mãos

Joguei o carimbo na gaveta, depois da meia dúzia de livros estragados

Continuo rabiscando tudo, anotando à margem, fazendo considerações
estratosféricas sobre tudo que me cai na vista

mas não carimbo mais nem assino nem deixo marcas pessoais

os sortudos leitores no futuro que se regozijem

(ou não)