Motivo, forma, conteúdo (grunhidos pretensiosos sobre a subjetividade em "Os Passos em volta", de Herberto Helder)


Senão uma das maiores justificativas
do fazer artístico, sem dúvida
a mais bonita é a certeza do
olhar que é unico, insubstituível
e confere a cada história particular
o direito de ser contada

Mesmo quando as experiências
em tantos aspectos parecem iguais em espécie
Sendo tão diferentes na forma de serem vividas

O saber que cada voz tem seu tom

O tema, recorrente pra mim,
me cai novamente nas mãos
depois de uma desafiadora leitura
onde o autor, um dos maiores,
teima em falar de coisas banais
em sua rotina de alguns anos
rodando por aqui e ali
sem rumo

Os lugares e situações,
impossível ser mais lugar-comum
de qualquer viajante em qualquer lugar
Os objetos, as rotinas previsíveis
mesmo diante da continua mudança
de ares, de pessoas, de país,  de hotel
ou dos quartos de pensão
Mas a forma como ele falou disso tudo
Intencional, premeditada,
convidando à irritação do jogo
e da construção não-obvia de
outros espaços e olhares
Isso jamais sairá da minha mente

Na sequência,  vindo de roldão
em minha memória
o filme "O cavalo de Turim", do
Bela Tarr, e o Eterno Retorno
um dos conceitos mais difíceis
e polêmicos de Nietzsche
-- também o mais mal interpretado
por correntes desvirtuadoras --

 O livro foi seguindo,  embarquei
na  forma como o espaço se alinhava
com uma percepção onírica de memória
o vocabulário inusitado, exótico,
O uso terrivelmente incomum
que ele faz do sentido das palavras
na mediação da realidade vivida
(uma riqueza que virou sua marca registrada)

Ora forçando-as
no limite da tensão , ora
deitando-as em sua cama, lânguidas
Ora arrancando-lhes pedaços
ora sendo maltratado e cuspido por elas
O questionamento de um duvidoso
fio racional capaz de chegar á verdade
A certeza da inexistência da verdade

Lembrança oportuna
numa época onde
o excesso de informações
esgota e confunde a percepção
pasteurizando sentidos

Na literatura
como de resto, na arte
em geral
a forma com que se fala
 -- objeto estético
como resultado da subjetivação
do artista sob o fluxo dos
estímulos que o atingem --
é muito mais importante
do que a transmissão
ou mera reprodução
do conteúdo em si,
seu objeto exterior

A desobjetificação do mundo ao redor
é uma das maiores armas de toda arte
E em geral, o verdadeiro legado do artista

Mesmo para os mais renitentes
que enveredaram pelo equívoco
do realismo -- cujo pressuposto
é falso--
e mesmo sem querer
corroboram essa tese

A pretensão de que na arte
como aplicado ás ciências
a mesma concatenação de sentido
lógico civilizador-desmistificador
poderia ser bem sucedida
torna-se um verdadeiro desastre
por tender a limitar o olhar
sobre o que alguém (uma entidade,
uma pessoa, uma força politica,
um Estado,  uma ideologia)
estabeleçam anteriormente
como real e objetivo

O realismo na arte impõe a necessidade
do observador-certificador
de uma verdade, tudo que o artista
deveria se empenhar em combater

Seu estilo intencionalmente
mais cru, e supostamente
mais objetivo porque cinza
a ausência de uma maior
elaboração ,  a simplificação
dos termos,  o desornamento
das palavras, o desnudamento
algumas vezes brutal
da condição humana
tudo isso ainda é uma estetizaçáo
como outra qualquer
e como tal, sem qualquer privilégio
de oráculo
e ainda entra no mesmo pacote

Não fosse assim, deixaríamos
de ler Proust, Kafka, Saramago
Tolstói

Escreveríamos
panfletos políticos
e leríamos apenas os roteiros
de viagem espalhados pelo mundo
Relatórios de estatísticas
Contemplaríamos somente fotos
em vez de pinturas
os sons e movimentos da natureza
no lugar da música

Não existe, universalmente, um
processo idêntico, para o corpo
que experimenta, em molhar
um biscoito no chá antes de comer
e ainda assim comparar o disparo
da consciência,  memória e afetos
surgidos em cachoeira pelo gesto simples
Como a narrativa de Proust

Em relatar o cotidiano pequeno-burguês
tecnocrata de uma família alemã
em meio aos seus afazeres mesquinhos
tão bem conhecidos por Kafka

Em retornar no tempo, séculos atrás
e se dispor como personagem
a vivenciar aventuras -- o trabalho
da imaginação não se mede
Imensa, em Saramago

Em enumerar e discorrer
sobre os pressupostos e desdobramentos
das grandes guerras Napoleônicas na Europa
e o efeito disso sobre os indivíduos, sobre a vida, no legado brilhante de Tolstói

 As vivências das guerras
as diferentes espécies de beleza
as diferentes navalhas do terror
figuras e momentos históricos
escritas, descritas, metaforizadas
cantadas, tocadas ou pintadas
em infinitas disposições por
diferentes artistas e correntes
dão conta de exemplificar a idéia

A mais corriqueira tarde no campo
ganhou imagens completamente
diferentes sob a paleta grega
dos renascentistas ,
na busca da perfeição em luz de Renoir,
no soco do estômago de Van Gogh ,
na destruição criadora dos modernos
no ceticismo quase absoluto
e cheio de armadilhas e contradições
do contemporâneo

As situações humanas possíveis
enquanto experimentação, em si
não são ilimitadas
[Temos um único corpo
falível, histórico, mortal]

As formas de vivencià-las, sim
Depois que se tornam, pela forma,
um conteúdo estético
e isso porque inexiste qualquer
objetividade no processo

É tudo sentir-pensar-sentir
E tudo subjetividade, no fim

Por isso acerta o contemporâneo,,
embora seja um acerto contundente
e que por vezes tanto desagrada
Arte é mais o processo que
o resultado em si mesmo
E processo é coisa que tem começo
mas nunca termina

Daí o artista como intervenção
atividade,  transformação,  tarefa

O objeto-arte que resulta,  nesse
sentido,  seja livro, quadro,
música (aqui indo contra todo
o culto da personalidade que
nos infesta), é quase que um
acidente, um supérfluo
o efeito de uma atitude
realizada como vida

E é na lida  de tentar descobrir
e trabalhar sua diferença de ver
tantas vezes o mesmo, o comum
o cotidiano
que reside o maior desafio
de qualquer criador

O Cavalo de Turim
segue dando seus coices