A laje (delírios covidianos I)






Jobson é a lagartixa
que disputa comigo
diariamente, no quintal
a laje do sol matinal
nestes tempos de quarentena

Nas manhãs frias, já reparei
que ele nem dá as caras
assim como eu
mas basta ameaçar
um calorzinho
que ele logo se estatela
na plataforma de cimento
com aquele olhar zombeteiro
do tipo: cheguei primeiro

E fica de lá, sacudindo
a cabeça pra confirmar
seu domínio . Parece
querer me lembrar
--- não sem um certo sarcasmo --
a famosa história dos seus primos
que mandaram na porra toda
durante milhões de anos

Em silêncio,  é como se dissesse:
Olha lá, hein!! Também leio jornais
e sei que tudo pode estar
por um fio.

Calma aí, Jobson!
Segundo o Goooooogle
o prazo desse passe livre expirou
em algum lugar entre o Jurássico
e o Cretáceo-Mesozóico

E talvez apressado (dizem)
pelo tal meteoro

No período Covidiano,
tempo atual, trata de ir baixando
a bola e voltar pra sua parede
enquanto um novo meteoro não vem

(Juro que o flagrei
dando risadas um dia desses)

Na dúvida sobre o gênero
das lagartixas e outras
particularidades
que (ainda)não
pesquisei no goooooogle
percebi que não sabia na verdade se
Jobson era realmente Jobson
ou acaso não seria Roberta ou Gertrudes

Me ocorreu daí que o certo seria
atribuir-lhe um nome neutro
ou chamá-lo apenas lagartixs
mas na falta de paciência
que por vezes me acomete
com o politicamente
correto, deixei assim

Ora,
no fundo tem mesmo cara de Jobson
ainda que com muito menos pompa
e circunstância
que o Wilson do Tom Hanks
embora para mim venha
ganhando seu papel aos poucos

O fato é que quando chego com
meu colchão, boné
e livros, Jobson racha fora
e não sei exatamente no
conjunto, o que é que
o assusta mais

Se minha sombra,
os montes de panos e espumas
ou os volumes de papel
encadernado de Proust
e Tolstói

Uma vez ou outra
dou-lhe um susto
com uma vassoura velha
Não pra machucar, apenas
como figuração
pra lembrar quem
é que manda

Ele poca fora e fica de lá,
da caverninha entre as frestas
do muro velho e aquela mudinha
úmida de samambaia
Uma plantinha tão tenra
e eloquente  em seu silêncio
que toda vez que a vejo
me dá vontade de morder

A única samambaia conhecida
que também gosta de sol

Como todo bom dinossauro
Jobson também é territorial
Basta eu me arredar
um pé para beber água,
ou qualquer outra coisa
e ele corre de volta pro
seu local preferido
(que coincide com o meu)

Mesmo que isso signifique
avançar perigosamente
sobre meus domínios
situação em que o flagrei
mais de uma vez

Despachado sobre o lençol branco
como se estivesse na Côte D'azur
esperando um drink
enquanto curte as garotas de top less

Da última, antes do seu sumiço
repentino
cheguei uma bela manhã
e ele estava lá
de boca aberta
e nenhuma compostura
sobre um certo livro
instigante de Henri Miller

Desconfiei então  que Jobson
era Jobson mesmo
Não era Roberta nem Gertrudes

Mas a certeza só veio quando,
depois de umas
três semanas sumido,
me aparece ele todo prosa
trazendo consigo mais
um punhado de Covidianos
filhotes

Andou aprontando hein, Jobson?

Daí não teve jeito. Diante do
argumento mais forte,
acabei cedendo a laje

e hoje, enquanto vou torrando
a cara e o cérebro nesses Tolstoi aqui
esparramado do meu lado do muro
o Jobson fica de lá, tirando onda

Eu não ia confessar,
porque ele já se acha demais,
mas a verdade é que essa turma toda
deu um ar novo às manhãs de confinamento