Guerra dos mundos
No começo, ninguém desconfiava de nada. Vieram assim, sorrateiras, esgueirando-se por pequenas frestas, povoando nichos de sofás, camas, forros de geladeiras e armários de roupas e sapatos. Com presenças mais discretas e silenciosas durante as estações mais frias, tornavam-se contudo explícitas e corajosas nos dias quentes, anunciando uma nova ordem de terror. Em algumas épocas, tudo silenciava, e inusitadamente passávamos alguns incríveis dias de paz. Mas no decorrer de dois ou três meses, logo estavam novamente em toda parte, multiplicadas como se durante o suposto período de hibernação tivessem não apenas acumulado força e estratégia, mas também copulado compulsivamente e se reproduzido em batalhões à exaustão durante cada precioso segundo de tempo disponível, dada a quantidade assustadora que a cada ano só aumentava.
Minha mãe se estressava com aquelas criaturas mais do que com qualquer outro tipo de problema em casa. Não tinha questão com vizinhos, orçamento curto no fim de mês, filho com perna braço cabeça quebrada, situação política do país ou fraco desempenho escolar de criança que a aborrecesse tanto como lutar contra as invasoras. Uma mulher de muita fé, positiva e geralmente feliz na vida e dinâmica de suas coisas, sempre arrumando milagrosamente dentro desse balaio de tarefas algum tempo para ler, escrever e fazer suas palavras cruzadas, atividades que adorava, e ainda nos ajudava nas tarefas escolares além de cuidar do meu pai, de mim e mais três irmãs, mais uma casa nada pequena no alto do morro. Mas nada a desesperava tanto como a luta perpétua contra aquelas criaturas dos infernos. Meu pai, engenheiro por profissão, acionado frequentemente com certo desespero e ordem militar para reunir esforços na luta, pesquisava saídas, consultava a revista “Seleções”, coisa mais lida na época, comprava venenos, estudava técnicas, ferramentas, mas no fim nada adiantava, e o caso geralmente era resolvido na chinelada mesmo, ou vassourada, dependendo da arma que estivesse mais próxima nas ocasiões onde aconteciam os ataques à queima-roupa.
Malgrado todos aqueles esforços, as criaturas continuavam em campanha. “Olha, lá vai uma! Subiu atrás da estante. Mata! Mata!”. “Me acode, que entrou no cabelo”, gritava alucinada minha irmã. Agora ocupavam também outros espaços onde antes não havia sido detectado nenhum sinal, encampavam armários de vasilhas, gavetas, e praticamente dominavam o banheiro com seus nichos sombrios e antigos. Nós, os filhos, a essas alturas também já estávamos na luta, cada um colaborando com seu melhor talento. O mais velho, querendo demonstrar amadurecimento e valor, bem que tentava sair na chinelada com suas novas rivais querendo dominar a estante de livros e a sapateira do quarto, mas a maioria das vezes sem sucesso. Elas tinham o poder da invisibilidade, invocado sempre que a batalha estava quase perdida. A irmã do meio fingia que estava à caça dos insetos, mas corria de volta para o quarto quando a coisa apertava na cozinha. A pequena, meu deus, subia em cima da cama e depois de chorar por horas ainda precisava ser consolada até conseguir dormir.
Até agora isso talvez tenha parecido mais uma ópera bufa de classe média sem coisa melhor pra fazer, mas se o toque definitivo de terror ainda não surgiu até aqui, dando conta da real situação, foi porque eu não havia mencionado ainda uma outra espécie de inimigo, ou melhor, uma variação mais evoluída dentro da espécie do inimigo e é claro, uma outra categoria de luta que só então surgiu e se mostrou necessária como reação à medida em que a guerra ia fazendo novas vítimas, guerra em que nós, obviamente, em menor quantidade e qualidades bélicas, íamos assustadoramente perdendo terreno. Trata-se das inimigas voadoras. Essa nova variedade, que depois de algum tempo, principalmente com a chegada definitiva do escaldante verão e da umidade começar a molhar o ar e as janelas começarem a ficar a maior parte do tempo abertas, começou a dominar o campo de batalha. Geralmente sua chegada não tinha hora marcada, mas elas tinham um terrível gosto particular pela hora da novela das oito, logo depois do jornal, quando todos estavam por ali mesmo, de bobeira na sala ou na varanda, e sua chegada era percebida assim, com um zumbidinho característico, cessado abruptamente, e muitas vezes com aquele ventinho perto demais dos ouvidos para que não fosse sentido o arrepio da morte subindo lá do fundo da espinha dorsal. Se suas familiares inferiores de subespécie rasteira, embora também fossem muito feias, e algumas até bem grandes, geralmente eram criaturas um tanto patéticas, previsíveis e na prática, não era difícil cercá-las e extingui-las num estouro de chinelo ou de sapato, numa varrida ou vassourada brusca víamos logo aquele caldo branco viscoso escorrendo seja da parede, do chão ou do móvel de madeira, sensação seguida de uma mistura de asco com algum tipo de pena com aqueles seres miseráveis que certamente como alguns políticos só vieram ao mundo pra infernizar a vida alheia, agora a coisa mudava de figura. Munidas não apenas de asas, arma mais letal do ponto de vista físico, pois desafiava as leis da gravidade como os melhores bombardeiros americanos da segunda guerra mundial, diferentemente dos poderosos aviões ainda desenvolveram um complexo sistema de vôo aleatório que as tornava simplesmente imprevisíveis. Elas intencionalmente e como estratégia altamente elaborada, não produziam um vôo em linha reta, ou qualquer ação previsível de movimento, o que tornava quase impossível atingi-las no alto. E quando baixavam ao solo, eram terrivelmente rápidas, o que fazia meu pai especular sobre as novas experiências atômicas de que ouvira falar no jornal das oito, e seus prováveis efeitos multiplicadores de poderes, igualzinho a história do Hulk. Após ouvir aquele tenebroso zumbido e um rufar de asas sinistro, ninguém sabia ao certo onde estavam, e era o tempo de acender uma luz ou buscar atrás de um sofá, para que elas, rápidas e extremamente elétricas, levantassem vôo novamente, infalíveis e certeiras para cima do alvo-rosto de suas vítimas, ocasião em que o terror instalava-se em definitivo, com cabelos, chinelos, gritos e um show de pernas e braços esparramados não demonstrando bem se era um ritual de fuga, abominação de algum demônio incorporado ou de enfrentamento das poderosas inimigas.
E de onde vieram esses seres infernais? Reuniões de família eram dedicadas em boa parte a discutir o assunto. Nas outras casas em que moramos, não havia sinal desse bicho nessa magnitude invasora, e se houve, era apenas aleatório, passageiro, caso fortuito resolvido na velha porrada e afirmação humana sobre a Terra. A situação atual era devida a alguma caixa de gordura mal cuidada? Mas isso era sempre visto e revisto, e não havia sinal de qualquer tipo de quartel-general instalado nas imediações ou algo que o valha. Eventualmente ainda eram adotadas dedetizações genéricas, com fortes produtos, daqueles que faziam a gente ficar fora de casa por uns dias e ainda tossir uma semana depois que voltávamos. Alguma compra, pacote de entregas suspeito, algum vizinho desmazelado, algum bueiro na rua? Tudo era sondado, pesquisado, anotado, e nada. Não havia solução. Acho que isso foi um consenso a que chegamos, depois de tantas e delongadas tentativas fracassadas. Acho que, pra não pirar, minha mãe já não se importava mais, fingia que não via. Resignava-se apenas a apontar, para meu pai e pra nós: “Tem uma barata no banheiro”, “Tem uma barata na cozinha”, e por aí afora. Corríamos todos. Meu pai tentando localizar e exterminar, minhas irmãs sumindo pra rua, eu fingindo que não era mais comigo, voltava a minhas leituras com ou sem barata. Minha mãe sentada no sofá, focada na novela. Meu pai ainda espalhava seus venenos, alertava-nos a todos diariamente que não era para levarmos comida ou bebida para os quartos, eles mantinham sempre uma higiene impecável na cozinha e agregados, tampava os ralos de pias, sanitários e áreas abertas, mas nada disso adiantava. Ameaçava uma trégua em determinado período do ano, mas no fundo, eu mesmo já sabia de cor que aquele interregno era apenas o período da reprodução infatigável e fortalecimento do inimigo, que certamente estava nos ouvindo agora em nossas risíveis táticas de guerrilha e voltaria muito mais forte depois de tudo. Eu quase conseguia ouvi-las, as malditas, segredando e fuxicando nos entrevãos de paredes e debaixo de camas e dentro de armários de banheiro combinando o dia do juízo final. E era dito e feito. Terminava rapidinho uma fase de estação fria e sempre chegava o verão novamente, e com ele as inimigas. E numa certa temporada, além de toda aquela campanha militar e estratégia de invasão com os quais já estávamos acostumados, surgiram novas notícias no front. Minha avó descobriu, com a avó da casa vizinha e mais umas outras vós que estavam sempre confabulando enquanto tomavam seu solzinho da manhã na frente das casas da rua, que por morarmos apenas uma rua abaixo do cemitério da cidade, havia muito mais sobre a possível origem daquelas baratas do que qualquer mortal poderia ter imaginado. Tudo isso ganhava conotações góticas daí pra frente. Ora, pois veio à baila nada menos do que a informação de que se tratava, na verdade, de um grande ninho de baratas instalado bem debaixo do cemitério da cidade, apenas alguns metros acima da nossa casa, e isso em definitivo era o que não apenas alimentava essas monstras com essa força imbatível, como trazia suspeitas metafísicas para esses seguidos e intermináveis ataques. Não disse nada ainda, mas esse mesmo cemitério fora diversas vezes noticiado tempos atrás como palco de eventos extraterrestres durante décadas na cidade. Histórias de abduções, de aluamento, pessoas que falaram com seres brilhosos e cabeçudos, e tal. Mas e quanto às baratas, afinal, elas eram do além? Alguma coisa começava finalmente a fazer sentido. Ora, essas criaturas simplesmente não morriam. Alguma coisa tinha que estar muito errada.
Testemunhávamos uma invasão, no estilo “Guerra dos mundos”? A criançada já tinha pesadelos com as baratas, minha irmã caçula vivia pedindo pra dormir no quarto dos meus pais, com medo das voadoras, e nós, a essas alturas, não sabíamos sequer se tínhamos o controle da situação, humanos amargurados tentando eliminar uma praga, ou ao contrário, éramos nós os reais invasores num mundo ampla e inafastavelmente dominado por baratas? O fato é que a idéia plantada, turbinada pela capacidade inata de amplificação e contextualização que possuem as avós contadoras de histórias, começou a se alargar com um certo pânico entre a vizinhança, depois da descoberta paralela de que o problema acometia também todas as demais casas da rua veio à tona. Especialistas foram chamados, testemunhos foram colhidos, novos venenos mencionados, casos emblemáticos e alguns dramáticos foram registrados com ata e circunstância, para posteriores averiguações in loco. Estávamos, sim, sendo invadidos pelas baratas. Havia outros relatos mundiais, em diversos países principalmente na zona dos trópicos, que noticiavam eventos análogos pelo mundo afora. Ora, e pensando bem, não é assim algo tão esdrúxulo de se imaginar. Veja bem, olhe de perto, se conseguir, uma criatura dessas em primeiro plano como objeto de estudo. São pequenos monstros, horrendos e malcheirosos. Sua estrutura lhes favorece o esconderijo fácil, a arte de se camuflar, a capacidade de se reproduzirem na velocidade da luz e se alimentarem absolutamente de qualquer coisa que lhes caia nas garras. E ainda, ora , eu não precisava dizer, mas existem, sim, as exemplares aladas! Todo mundo já viu uma: sua tática de guerra superior, seu vôo terrivelmente aleatório, o zumbido tonteante das asas sempre perto do ouvido, mesmo quando elas estão lá na outra parede do lado contrário do quarto, e a capacidade terrível e precisa, de ocorrência cem por cento das vezes em que foi testada: ela sempre conseguia voar diretamente rumo ao rosto de suas vítimas, que assim se colocavam em estado de pré-delírio, síncope incontrolável e total capitulação da batalha, com grande número de baixas e desertores já computados pelo mundo afora. E como se não pudesse ser piorado um quadro que já não era nada bom, havia rumores científicos de que na hipótese (bem realista, por sinal), de uma guerra nuclear, apenas aquelas criaturas herdariam o mundo, sobrevivendo até mesmo à insuportável radiação.
Por esse motivo ou por outros, ocorre que nos mudamos daquela residência pouco tempo depois das últimas baixas no front. No novo lar, felizmente não tivemos mais o problema em larga escala, da forma como nos assolara na casa anterior. Apenas casos isolados. Contudo, hoje, anos depois, décadas mesmo, eu diria que ao menos temporariamente, parece que as invasoras resolveram suspender seu plano de domínio total. Deveria dizer que fiquei e ainda fico muito mais sossegado depois de perceber essa espécie de trégua prolongada, sem data pra acabar, mas confesso que ainda não me convenci por completo. Afinal, a superioridade declarada em campo era delas, e não nossa. Se não dominaram, foi porque não quiseram, no fim. E se não quiseram, foi por quê? Fica a pergunta. Afinal, não valíamos a pena? Não há qualquer dúvida de que elas tinham, afinal, as invasoras, todos os elementos necessários para uma total e arrasadora conquista definitiva do nosso planeta, a se tomar pela experiência de campo. Por que será que subitamente desistiram, assim, sem mais?
texto publicado originalmente no blog "Aleph", em 02-05-2014 - reg AVCTORIS jul-2016