Impostor
E foi assim que fui parar num sarau, a convite de
um amigo e cronista de primeira hora, aqui da capital. Noite de plena quinta-feira,
o fim de semana ainda estava apenas apontando no horizonte. Curioso com as
apresentações literárias prometidas no evento. Apesar de considerar os saraus
importantes fomentadores e divulgadores da boa literatura, nunca senti que
tivesse muito o perfil necessário para frequentá-los. Em parte pela timidez ou
total inépcia em ler meus próprios textos, e de outra mão, pra ser bem
sincero, porque não consigo entender muito bem literatura falada, verbalizada,
sem ter tido algum contato com o texto ou o autor, mesmo breve. Uma heresia, é
claro. Admiro quem consegue, mas é um dom que me falta. Reconheço a
importância, mas sou meio ortodoxo e surdo em face da palavra falada, e isso
muito a contragosto. Acho que é um defeito de nascença, ou quem sabe, tenha
havido algum possível passado onde um germe educacional mal plantado ou
malcriado impediu que meus ouvidos tivessem talvez o necessário desenvolvimento.
Também há outro motivo mais sinistro e mais oculto, que eu não deveria revelar,
mas revelo em total segredo: eu invariavelmente sinto o efeito dos versos de
forma diferente: diante da revelação poética, o corpo, a voz, o texto e todo
seu impacto, em vez de me colocarem em sintonia com o ambiente e os demais, têm o
poder metafísico de me arrastar para a mais completa solidão. Sei lá porque
isso ocorre, mas o fato é que preciso "ver escrita" a palavra, para
que ela entre de fato na minha alma sem causar tanto estrago. Borges sem dúvida
me daria algumas boas lições em contrário, se ainda estivesse vivo.
De todo modo, considerando que sarau também é festa, tem bebida e gente
boa, abrindo mão temporariamente desse sentido letárgico de inadequação e despertencimento
que todo introspectivo conhece, e principalmente como forma de prestar
homenagem a meu amigo, lá vou eu, pra um saguão elegante de shopping, com
direito a recital de piano, barzinho movimentado e um colorido blend de pessoas
de todas as idades e perfis.
Perdido como sempre fico em qualquer ambiente coletivo,
e após uma breve saudação a meu amigo escritor, que estava na fila para leitura
ao microfone e vinha se programando metodicamente para a declamação no pequeno
palco armado ao lado do piano, encosto-me mais no barzinho e, infelizmente e obrigatoriamente
travado pelas antigas leis éticas e as novas leis de trânsito que impedem
qualquer graça na mistura de álcool e direção, me contento com uma Coca-Cola
super gelada e limão, enquanto observo o ambiente. Mal estalei a tampinha da lata
de Coke, com aquele barulhinho bom, quando me abordou uma senhora que estava
atrás de mim, num dos sofás, pedindo-me pra tirar uma foto com ela, como recordação.
De pronto, não entendi muito bem, posto que eu nunca a vira antes, e fui logo
negando educadamente, dando aquele passinho lateral apontado para a primeira mesa
livre alguns metros à frente. Daí ela logo se adianta, pega no meu braço
simpática e diz que gosta muito de literatura, e sempre que pode, tira fotos com
os escritores para o "album virtual" da sua página no facebook. Disse
ainda que eu a lembrava muito o ator***** da Rede ****, ou da novela
**** . Daí a minha ficha finalmente caiu. Eu, todo de roupa social,
pose de James Bond barriga de chopp sem o Smoking, encostado melancolicamente
com meu refrigerante no bar (pena que não tinha nas mãos um martini duplo
com gelo, "mexido e não batido"), de alguma forma aquilo deu-lhe a
impressão de que eu seria um dos ilustres escritores convidados para palestrar
no evento. A tia dizia que eu tinha "cara de escritor" e ela percebeu
aquilo logo assim que cheguei no bar (meus óculos, talvez? finalmente essas
malditas e pesadas lentes que carrego há décadas na frente do rosto serviriam
para alguma coisa nessa vida?). Pensei logo que minha mãe na certa teria uma ótima
parceira por aqui, nessas alturas, com essa história de "galã de novelas
mexicanas". Pra todos os efeitos, desconsideremos essa história de opinião de mãe,
porque é invariavelmente o que todas pensam sobre seus filhos. Entretanto, registrei isso na minha memória orgânica, porque
se tivesse um propósito para ser reconhecido como escritor em público no
futuro, quando houvesse publicado "oficialmente" minha poderosa
dezena de livros (mesmo com edições limitadas e artesanais com tiragens
de 50 cópias cada uma para distribuir para os amigos mais chegados), eu certamente
deixaria a barba crescer mais um pouco e tentaria fazer de novo essa cara de
cão sem dono, perdido no meio da multidão, porque agora eu finalmente percebi
que isso podia colar.
Captadas as nuances da situação, e retomando minha
natureza ancestral introspectiva, fiquei logo acuado e estava tratando de
dissuadir delicadamente a Dona Benta da metrópole a deixar isso pra lá, e
tentando dizer enfim que eu não estava na lista de palestrantes ou declamadores
do sarau, e que eu jamais saberia declamar qualquer poema de minha
autoria ou de outrem, sem suar, tremer, dar branco ou gaguejar logo no primeiro
verso e botar tudo a perder, quando sua neta e acompanhante surgiu
repentinamente dos arbustos ao fundo do barzinho, reiterando o pedido da vó para
eu reconsiderasse e tirasse uma foto, porque seria realmente muito importante pra
ela, e tal. Digamos que a garota e seus longos cabelos ruivos também tinham
fortes argumentos em favor da arte literária clássica e eu acabei cedendo, meio
sem jeito, todo quadrado. Afinal, não há nada de errado em atender ao pedido
humanitário de uma doce velhinha para seu álbum de fotos.
A essas alturas, viajante do espaço sideral, eu
tentava justificar para meu próprio governo e a tal consciência de que
afinal não se tratava de nenhuma espécie de charlatanismo de minha parte quanto
à situação existencial de "ser escritor". Logo eu, que sempre me
achei até excessivamente sério com essas coisas da vida. De fato, eu não era um
dos escritores palestrantes da noite, tudo bem, mas de todo modo, não deixava
de ser algum tipo de rabiscador de pensamentos anônimo, visto que começara a
escrever ainda cedo, aos oito anos de idade, e como tantos infantes espalhados
por esse enorme continente Brasil, ganhara alguns elogios e prêmios simbólicos por
redação, escrevera muitas letras de músicas que nunca foram gravadas e escrevi
meu primeiro livro de poemas aos vinte e poucos, distribuído para os meus cinco
amigos. Pensando bem agora, isso não era lá muita coisa. Ainda procurando
ver a metade cheia do copo, somavam-se aos meus argumentos mentais saber que
a essas alturas eu tinha aquilo que eu denominava "um romance policial"
em andamento, já em fase de finalização, havia participado (como ouvinte,
devo dizer) de dezenas de cafés literários, debates ao vivo e virtuais, trocas
de textos e centenas de e-mails com amigos escritores sobre a atividade da
escrita, em todas as nuances que a compõem, e contava com pelo menos umas
mil páginas de versos, crônicas, ensaios, delírios e contos curtos espalhados em
blogs, cadernos perdidos, sites de escritores, um ou outro artigo de suplemento
literário de pequena circulação, sem contar ainda dezenas de besteirol e pseudoanálises
tragicômicas das eternas questões de "facebook" a meu favor.
Nada, isso me pareceu muito pouco convincente
para o embate com a realidade sólida do mundo, com sua famosa materialidade
física. Afinal, ainda não havia minha publicação oficial. Embora o "livro
de poemas' já escrito tivesse formato papel, não foi "publicado"
oficialmente, por assim dizer. Era alguma coisa que me fazia -- sem o mesmo talento ,mas com os parcos
meios físicos disponíveis – assemelhar muito com a geração mimeógrafo, só que
no tempo do disquete e do PC. Quem dera. E a bem da verdade, depois que um dia decidi
dar publicidade ao que escrevia, calhou de eu resolver fazer isso muito mais
pela via digital que a analógica.
No mais, fora a "oficialidade" da coisa
toda, ainda restava no fundo esse lance do papel. O papel, sempre o papel. Bendito
papel. Pegar, tocar, cheirar o livro, torná-lo o objeto de culto ou chutá-lo
longe das vistas na primeira decepção. Vivíamos já na era digital, mas nossos espíritos
(felizmente, hoje penso) continuavam analógicos, amantes do papel. Eu não podia
culpar ninguém. O livro de papel: legar aquele objeto mágico às futuras
gerações ou utilizá-lo numa noite fria na lareira como boa lenha, bom, isso eu não
tinha feito. O papel e sua magia, ainda inédito! Sorrio pra dentro, meio
desconsolado, sem querer que a boa velhinha percebesse meus altos conflitos existenciais.
Minha contribuição era totalmente, pois, abstrata. Virtual! Putz! Pois
assim, desanimado, murcho, foi que ia saindo logo de cena com aquele famoso
sorriso amarelo quando me lembrei, no fio da esperança condenada à morte,
de uma senha reveladora. Nem tudo estava perdido. Meu bloco de notas!! Pois sim...
aquele meu amigo inseparável de todas as horas, de todos os lugares,
de todas as viagens.!! eis o passe da redenção! Quer coisa mais clássica e
visceralmente reveladora da atividade em-si para-si de uma profissão sobre o
"status" de escritor do que um cidadão comum se incomodar em levar um
bloco de rascunhos e uma caneta pra todo raio de lugar que visite nessa Terra??
Mesmo que ele passe dias e mais dias sem anotar porra nenhuma. A presença do
bloco era como uma cristalina revelação de um projeto. Tomar notas, rascunhar
versos, rimas, descrições de lugares, sensações, temperamentos, estéticas
do-que-há-sempre-ao-redor, bem como do-que-não-há-ao-redor-mas-só-tá-lá-na-sua-cabeça. Tomar
notas daquele cidadão ali na mesa ao lado, um tipo estranho de gravata ou
sobre o penteado que usa aquela madame. O tamanho e a raça daquele cachorrinho
chato que fica incomodando todo mundo em plena estação de trem, o sorriso
comprido junto com olhares lânguidos do vendedor de sorvete para aquela mina de
shortinho que acaba de passar bem à sua frente. A paisagem inebriante das
tardes de agosto com sol vermelho, ao pé das castanheiras desfolhando-se perto
do mar. Alguns portadores de bloquinhos de papel ainda se arriscam, mais
talentosos, a também desenhar, além de tomar notas. Claro que nunca foi o meu
caso, que nunca soube desenhar nem uma linha reta. Mas o fato é que
escrever , eu escrevia, afinal!!
Estava salva a noite, pelo menos no particular
sobre a legitimação psicológica e subjetiva para a coisa toda. Aceitar a
catalogação enaltecedora proferida pela Dona Benta sobre mim não seria
totalmente fraude, talvez apenas meia fraude sem maldade. Se eu escrevia, era
escritor, então! (Até porque ela felizmente não me perguntou se de fato eu tinha
"Publicado algo oficialmente". Enfim, deixa pra lá... Feliz agora. Meu
bloquinho era meu passaporte para esse imortal "status" que, se por
um lado, nunca botou dinheiro no bolso de muita gente nem pagou nenhum prato de
feijão para um esfomeado, em contrapartida salvou muitas almas de se perderem
no Érebo da cotidianidade insólita ou tornou mais rica uma ou outra vida
miserável espalhada pelo cosmos humano. Se a qualidade ou a relevância do que
escrevo existe de fato, é uma outra conversa, -- melhor nãó entrar em detalhes
agora -- mas acho que a dúvida sobre a atividade que considerava pessoalmente
a mais importante nesta encarnação ficava assim resolvida, ao menos para mim. A
justa consciência mais Kantiana que o mundo já vira finalmente vencera com seu
imperativo categórico de rascunho o embate e chegara portanto a hora da verdade,
de vestir a camisa, ainda que apertada, talvez rasgada e meio sem jeito sob a
pressão do momento, mas respirei e assumi a fala refletida no brado interior :
"Com meu bloquinho de papelaria de meio palmo e minha caneta bic, se eu
não sou escritor, então ninguém mais é!!!."... "Vamos lá!", -- eu
disse-- que batam a foto, então.!! Pose feita, sorriso meio desconcertado como
sempre faço em frente ás câmeras, e tome flash!! Uns dois ou quinze, não me
lembro bem, daquelas sessões de deixar tonto porque nessas alturas, enquanto eu
escalava as divagações interiores e perdia o contato com o mundo externo, ao
sair da mesa e chegar meio ao lado do bar para a pose fatídica, já arrastado
pelo braço gentil de Dona Benta, e porque as luzes eram ali mais
favoráveis, reparei meio assustado que começou a se juntar gente à nossa volta
com celular e máquina na mão que não foi brincadeira. Era antes do início das
declamações, então havia muita gente ainda em pé, procurando espaço, o barzinho
se enchia. Formou-se logo um pequeno círculo ao nosso redor e a coisa
subitamente ameaçou ficar maior do que eu esperava. Quando pensei que não, já
tinha até jornalista com crachá batendo foto, e no intervalo entre uma e outro
flash, pessoas se cutucando e perguntando quem eu era, de onde vinha e o que
havia escrito etc. As aventuras de um rosto desconhecido na multidão.
Com certeza isso era fama clandestina demais pra um dia e
muito mais do que a deixa para eu ir me despedindo à francesa do
evento. Num instante de vacilação entre os Paparazzi do momento, que já entrevistavam
a querida Dona Benta, fingi uma pequena tosse e uma ida rápida ao banheiro ,
paguei logo minha Coca e fui dar uma debandada na livraria "Logos" que
ficava do outro lado do Shopping , e -- coisa boa -- totalmente vazia
naquele momento, pra minha felicidade. Ainda saí levando um ou dois ótimos
livros do fabuloso Amós Oz, ao menos ele um escritor de verdade, para apaziguar
minhas quimeras interiores.
Infelizmente, era exposição demais pra uma noite, e
não pude acompanhar o desenrolar do sarau tão aguardado nem a performance com
certeza brilhante do meu amigo escritor, mas sinceramente foi porque me bateu
alguma espécie de medo da fama inglória à moda de um "Big Brother' desses
da vida, de uma hora para outra. Meus 10 minutos de fama imerecida já foram
assustadoras o bastante. Quitei meu ticket estacionamento ainda no anonimato e
rapidinho tracei minha rota para fora dali, passando na volta pela saída alternativa
do shopping, é claro.
Para todos os efeitos, hoje eu diria à Dona Benta,
sem enrolação ou vã promessa, que além de eu ter inadvertidamente me
tornado de alguma forma um frequentador bastante assíduo de saraus por esse mundo
afora, pela primeira vez na vida ainda estou em vias de organização de algum material
para publicação, quem sabe, e espero que isso saia ainda este ano na forma de
publicação independente. Contudo, o fato que me exaspera é que depois dessa
noite, ainda hoje quando frequento algum sarau, em barzinhos, casas de show, em
shoppings ou fora deles, e vejo alguma senhorinha, eu dou logo um jeito de ir
desviando o caminho, porque afinal de contas, em tempos de mídias
digitais e redes sociais tão rápidas e entrelaçadas, imagino que não deve ter
demorado mais do que o efeito "dia seguinte" para que Dona Benta descobrisse
minha inocente farsa e suas fotos publicadas aos montes ao lado de um ilustre desconhecido
eventualmente podem ter lhe rendido algum constrangimento ou comentários
maldosos típicos, e a bem da verdade, mesmo eu ainda de posse do meu famoso bloco
de besteiras e rabiscos, ainda me sinto como um criminoso condenado pelo tempo roubado
no dia em que saí do anonimato.
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publ orig "O Aleph", jun/2015 - reedit contos "O domador de ventos", reg AVCTORIS/Jan 2017)