O liquidificador vermelho
Mais um domingo antes do almoço e eu folheando calmamente meu jornal, sentado na varanda, em minha cadeira favorita com um copo de cerveja na mão, enquanto me assustava com os infortúnios do mundo inteiro. Com poucos minutos nas páginas principais e tanta desgraça impressa com letras grandes, passo logo ao que interessa, o caderno B e o suplemento literário, que infelizmente vêm ficando mais magrinhos, magrinhos, a cada ano que passa, apesar de tanta coisa boa rolando por aí. Na arrumação entre as folhas de jornais emboladas no colo, cai de repente um folheto desses de propaganda de loja, todo colorido, com suas fabulosas promoções de tudo que é coisa pra importunar o sujeito tranquilo e pacato em sua casa num domingo de manhã de sol.
Pego desinteressadamente o folheto, e logo na segunda folha dou de cara com um liquidificador vermelho brilhoso metálico, copo de vidro, com potência monstra de 600 watts, destacando-se entre pífias e tediosas televisões de LCD, I-Phones e seus preços estratosféricos e uns tantos notebooks, todos feinhos e sem identidade, sem cor. Não deu pra ver de que marca era aquilo, mas o que saltou mesmo aos olhos foi o preço meio exagerado da coisa. Umas duas ou três vezes o preço de um liquidificador comum. Mas que o danado era bonito, ah isso era! De um minuto para o outro, fechando o folheto, comecei a sentir imediatamente como parecia absolutamente necessário uma pessoa ter um liquidificador daqueles! Imagine bem o suco sendo feito naquela espécie de jóia culinária para aqueles que não cozinham! Mangas, morangos, acerolas, kiwis, banana com aveia, pedaços de gelo bruto e toda a sorte imensa de frutas tropicais coloridas , em cubinhos, batendo e girando harmonicamente em direção ao suco final e homogêneo, terrivelmente saboroso em função do valor degustativo acrescentado pelo novo objeto.
E não era só estética, não! O bicho, além de ser projetado num belo estilo "retrô", lembrando aquelas geladeiras coloridas dos dourados anos 50 da terra do Tio Sam e o seu poder de exportar seu próprio "Style" para o restante do mundo conhecido, ainda tinha praticamente um motor de fórmula um dentro da casca. Uma verdadeira Ferrari em termos de “liquidificação contemporânea”. Seiscentos watts de potência, quase davam pra mandar um foguete de ida e volta à lua, com certeza! Agora era adeus pazinhas agarrando e travando meus sucos, adeus garrafa de plástico opaca com o uso repetido e adeus peças do encaixe soltando e derramando minhas vitaminas todas sobre o chão da cozinha! "Ao infinito, e além", como diria um célebre personagem do cinema infantil. Um pulo no shopping na mesma tarde e se confirma logo a primeira impressão do panfleto. Ele está lá, brilhando incólume do alto de seu pedestal, contrastando um fundo azul claro e uma moldura de linhas amarelas e brancas. Belo como a beleza inata de tudo que não se possui. Contudo, junto com a imagem luminosa do objeto em si, surgiram do nada dois "pequenos problemas", um de ordem material, outro de ordem psicológica. Materialmente falando, o infeliz do liquidificador era meio caro realmente, para o preço médio da categoria.
E o psicológico básico, metido a politicamente correto era: --Mas eu já tenho um maldito liquidificador! Por que comprar outro? Agora, era só arrumar uma boa justificativa para comprar um outro item para um produto que você já tem em casa, e bem ou mal, atende perfeitamente às suas funções. Haja argumentação psicológica e existencial: --Mas eu sou capitalista ou não sou, porra? Bom, até que noves fora eu sou em algum grau, mas essa história de ter "um a mais do mesmo" parece que ataca algum ponto sensível em um possível passado onde eu mesmo já fui simpatizante e em algum aspecto até militante junto com os demais alternativos, socialistas e hippies de toda espécie que ainda não me abandonaram completamente nem o corpo nem a alma, e que neste exato momento apareciam em turbilhão astral tacando pedras sobre minha cabeça. No entanto, a bem da verdade verdadeira, não havia categorias possíveis de comparação entre os dois produtos: aquela criatura esquálida que ainda habitava inusitadamente o armário da cozinha e esta valiosa máquina espacial bem à minha frente; era como comparar um fusquinha 66 com uma Ferrari F-50 na pista, com os motores aquecidos e pedindo pra acelerar. Na dúvida, sentei-me num banquinho do movimentado shopping, com celular e folheto na mão, despistando a cara de doido que devia estar estampada no semblante naquele momento e consultando mentalmente os meus antigos gurus, mas não conseguia resolver a pendência tão facilmente :
Platão me diria que esse liquidificador não era perfeito, porque era apenas um simulacro, uma cópia de outro liquidificador que existe no mundo inteligível, aquele das idéias. Melhor não perder meu tempo. Agostinho talvez me dissesse para pegar com Deus e Jesus Cristo e pensar na minha salvação, porque do jeito que alma tava queimando, dominada pela volúpia corruptível e pela futilidade consumista, logo logo, eu é que ia ser liquidificado no inferno.
Déscartes afirmaria que aquela máquina era uma espécie de "demônio disfarçado" embaralhando minhas percepções, mas se eu utilizasse seu método cristalino e depurativo para obtenção de idéias mais claras e distintas, certamente eu poderia chegar a um conhecimento absoluto e infalível contra erros de toda natureza, e dessa forma escolheria o caminho certo.
Kant, seguindo a razão pura nada prática , primeiramente declararia que aquele liquidificador vermelho com acabamentos de metal polido, motor potente e copo pesado de vidro era realmente um fenômeno, era um dado empírico e absorvido pelos meus sentidos, e isso só era possível porque minha mente era capaz de utilizar suas categorias de entendimento para formular "a priori" a quantidade de vitaminas, sucos e mais coisas legais que eu seria capaz de fazer com ele . Mas logo em seguida, lembrei para meu desconsolo que se eu sacasse seu outro livro famoso do bolso, o próprio mestre de Konigsberg me aconselharia profundamente a agir de forma desinteressada e objetiva, ser um pouco mais frugal e altruísta ,escolhendo com o meu gesto uma atitude universal que tocasse também no âmago da própria humanidade. Ou seja, traduzindo a mensagem imperativamente categorica Kantiana: "Menino, deixa de besteira e consumismo barato! Domine seus desejos mercadológicos e renuncie definitivamente ao gosto pessoal de ter essa máquina dos diabos. Arrume algo melhor pra fazer nessa vida, e sobretudo, pense no resto da humanidade quando estiver fazendo sua escolha; afinal, o que faria cada pessoa deste planeta se estivesse na mesma situação? Putaquepariu, Kant!!.
Marx então, como todo velho chato, trazia não apenas um envolvimento emocional maior de esfera tão familiar, devido aos anos de juventude debruçado sobre "O Capital" e assemelhados, e ainda soava pior (ainda ouço sua voz de trovão saindo lá das catacumbas): "Tá vendo, seu dissidente de merda? Eu não te disse que o capitalismo um dia ia te pegar? Foi largar a militância e a causa, agora fica com esses conflitos puramente burgueses. Entre agora, de cabeça, no financiamento da obsolescência programada e no consumo de bens supérfluos feito de forma fácil para contaminar, desmoralizar e endividar cada vez mais a classe dos trabalhadores unidos". E só pra me zoar mais ainda, o velho barbudo acrescentaria: "E pra piorar, o liquidificador ainda é vermelho, a cor da nossa internacional comunista!...Parece que tá zoando a causa! Não tens remorsos, seu traidor?”.... Velho chato dos infernos! Volte pra suas catacumbas porque hoje é domingo!
Nietzsche, sem pestanejar, diria que essa máquina não é apenas a "Vontade de poder," mas a própria potência personalizada! Seiscentos Watts girando em alta velocidade, com 3 opções de modo operação, vai transvalorar todo tipo de fruta em suco ou vitamina, e com isso operar definitivamente a pavimentação do terreno necessário para o surgimento do "super-homem", com certeza". De fato, como não pensar que na prática, o super-homem precisaria realmente estar bem nutrido pra dar conta do recado? Não comprar o objeto seria homologar o nascimento de uma tragédia!
_Os existencialistas, discordantes de tudo na vida por natureza e vocação, com seu eterno ar blasé do café com tabaco das tardes parisienses, cada um pontuaria a seu modo: Heidegger, o alemão: "esse liquidificador não é autêntico!! Basta olhar no rótulo no fundo da caixa pra ver que está sendo vendido por uma multinacional aqui no Brasil, o motor foi fabricado na China e o acabamento e a pintura no México! Morte! somente a consciência de que ele nasceu para ser eliminado é que lhe daria algum sentido" Sartre: escolhendo a liberdade de engajamento no projeto coletivo deste ser que na verdade é um nada, podemos concluir que dependendo da vitamina de café que sair desse liquidificador, ele poderá ser incorporado definitivamente à existência humana, uma vez que sua essência não o precede nem determina seu sabor (o sabor é sempre indeterminado antes da vitamina, e só será acrescentado depois, é claro), mas implica numa escolha de como agir. A forma com que você escolhe e mistura os ingredientes, o tempo de ação das pás e se a vitamina vai ser bebida agora ou depois de dias na geladeira, vai dizer muito sobre quem , ou melhor sobre "o que ela é"". Mais ou menos isso.
E talvez Camus, nem bon-vivant nem burguês demais, fechasse o conselho dos existencialistas com chave de ouro: "É um absurdo semelhante à própria condição humana o preço que estão cobrando por essa máquina. Revoltante!! E além do mais, por que mesmo você precisa de um liquidificador novo? Por que alíás, ter um liquidificador? que sentido tem fazer uma vitamina de frutas". Nessa hora a luz do shopping começava a me cegar feito o sol de uma terra distante e eu comecei a andar meio sem rumo pela pracinha de alimentação, e não tenho certeza se falei ou não com as pessoas que estavam na loja de comida árabe enquanto engolia o homus tahine com muito azeite sob o calor forte do ar-condicionado defeituoso. Ninguém parecia entender o que eu dizia . "Poderia matar alguém no grito numa hora dessas", pensei. Depois de acender outro cigarro, continuava Camus a me dizer, empolgado; " Revoltemo-nos todos contra isso! A revolta é o que nos resta. Ou então continuaremos como Sísifo, comprando o que não podemos pagar, e rolando com isso nossas dívidas morro acima eternamente. Uma hora essa pedra cai, vocês sabem. Tudo sempre explode, o mundo , aliás, é absurdo!".
Freud, por sua vez, me aconselhava a pensar direito no que a figura vermelha com copo de vidro brilhante e com 600 watts de potência e um fio de dois metros enrolado poderia representar no meu inconsciente, e me perguntaria, é claro, se a vitamina que eu fazia também usava leite, leite lembrava seio, que lembrava mãe, enfim... segui meio perturbado pensando mais um instante nisso, mas como não consegui achar nenhuma associação que valesse a pena mencionar fora do horário nobre, pensei na hora que se Édipo tivesse um liquidificador desses quando saiu pela vida, a pé, em busca do seu trágico destino, pelo menos teria se alimentado melhor no caminho.
Não comprei o objeto naquele dia, no shopping, mas fui pra casa pensativo. Pelo jeito, os fantasmas que habitaram o sótão no passado ainda tinham voz forte e aconselhavam, em sua maioria, a não comprar. Mas no final das contas, não teve consciência de si ou para-si que desse jeito na sequência. Misturando cartão de crédito e promoção tentadora a um tipo de "sorte" estranha para o momento, o liquidificador da minha cozinha, talvez sentindo os olhares e energias mortais em sua direção, caiu no chão na semana seguinte, e partiu de vez uma alça de difícil substituição, abrindo definitivamente o caminho feliz para a vitória. Daí, colocando em prática todos os meus sentidos mercadológicos de sobrevivência, e aplicando a disciplina e a ousadia de um Indiana Jones em busca do cálice sagrado (Ou seria Harry Potter?), lancei tudo para mestre Google me ajudar na tarefa. Olha daqui, olha de lá, Buscapé, Zoom, compara preço, etc, até que nas Casas Bahia (sempre ela), o objeto de luxúria culinária aparecia pela metade do preço. Não estou inventando! O trem realmente estava incrivelmente mais barato, em comparação com a loja física do folheto.
Passado um mês dessa aventura existencial, hoje descanso em outro domingo de manhã aqui na sala, com meu jornal e minha cerveja gelada no copo, e de vez em quando lanço uns olhares furtivos para o objeto de desejo que, agora realizado, repousa suave e decorativo sobre o balcão da cozinha. Não posso negar: o desgramado cumpre o que promete. É potente e é bonito, realmente, e sua praticidade e funcionalidade não eram apenas efeitos de uma propaganda subversivamente capitalista vinda da China. Mas retomando o manuseio do diário de domingo, algo me chama novamente a atenção: o que é mesmo esta nova adega climatizada com tela de LCD, espaço para trinta garrafas e timer automático com conexão 4-G banda larga com a internet e agenda eletrônica? E ainda, em dez vezes sem juros no cartão.....
publ orig "O Aleph", jun/2015 - reedit contos "O domador de ventos", reg AVCTORIS/Jan 2017)