Cabelo
Mas o menino não queria ir nem por reza, tinham que
fazer promessa pro santo ou tentar arrastá-lo à força para que ao menos uma vez
por mês ele se sujeitasse a ter os cabelos cortados na barbearia mais próxima de
casa, aquela junto à rodoviária. Chorava, esperneava, fugia para o meio do
pomar e lá ficava até escurecer, ninguém o encontrava entre as árvores. E não
adiantavam histórias do tipo : mas os amigos cortam cabelo, suas irmãs
cortam cabelo, seus pais também, todo mundo. Era mais fácil convencê-lo da necessidade
imperiosa de uma injeção nas partes mais escondidas do que mostrar a
naturalidade de se sentar por alguns minutos naquela tábua estendida sobre a cadeira do barbeiro para dar a altura necessária para o serviço.
Era levar umas tesouradas daqui e de lá, sentir a navalha meio cega raspando o
pé do cabelo na nuca e depois aquele álcool gelado e ardido atrás das orelhas,
quando o serviço estivesse pronto. Sem contar a cabeça quase pelada, depois de
tudo. Medonha. Um inferno!
De bonitos
cabelos na tonalidade castanho-escuro, lambidos feito cabelo de índio da Amazônia e volumosos, que iam crescendo e se arredondando
quando os pais se descuidavam. Ele
gostava, mas o resto da humanidade parece que não. Nas raras oportunidades em
que o conseguiam laçar e levar à força para a operação estética de desbaste,
muitas vezes voltava amuado ou chorando para casa. É como se repetissem, a cada
mês, a fatídica história do Sansão bíblico, que teve sua humanidade e também todo
seu poder castrado quando lhe cortaram cruelmente as tranças. Ficava depois
aquele moleque pelos cantos, reparando sua imagem desinxavida em alguns espelhos
pela casa. O cabelo muito fino, recém-cortado no toco, espetava-se todo e demorava
um tempinho para atingir seu acabamento normal, e no fim das contas, todos
ficavam era com pena daquilo tudo, arrependidos do estrago que esses barbeiros
infelizes faziam no cabelo do moleque, mas não podiam contar nem deixar ele
saber, porque senão no próximo mês haveria uma outra guerra quando chegasse o
momento. E ademais, como era a regra, cabelo de menino tinha que ser cortado
rente mesmo, afinal. Além de evitar a praga de piolhos que de vez em quando grassava na escola no meio da garotada,
ainda se tratava de uma questão de gênero: homens usavam cabelos curtos, pois! Coisa
de época. Se não, virava “Hippie”, deus nos livre e guarde. De todo modo,
inconsolado pela perda da cabeleira, costumava ganhar um cafuné extra da mãe, naqueles dias de
desconsolo, e depois de um certo tempo, eles aprenderam a tentar cativá-lo com
alguma surpresa nos dias de salão. Ganhava um gibi, um boné ou um caldo-de-cana
com pastel-de-vento na saída, quem sabe um desses brinquedos miniaturas de
camelôs para tentar se distrair da trágica perda.
Isso foi até alguém ter a sensibilidade de perceber
que a verdadeira razão do problema não era tanto o ritual “do corte” de cabelo,
em si, mas a qualidade ruim dos serviços daquele barbeiro amigo que há tanto
tempo fazia estragos na cabeça do pequeno, e depois do serviço feito ainda jogava
álcool daquelas garrafas coloridas verdes azuis amarelas bozzano que ficavam em
cima da prateleira pra arder na nuca do menino. Foi apenas depois de alguns
anos que pareciam décadas, que ao mudar do barbeiro para o salão da cidade,
onde uma cabeleireira com sentido de artista começou a trazer suas inovações,
que o pequeno definitivamente se convenceu que a coisa não era assim tão ruim.
A razão maior era simples: precisava ficar o topete. Ele não ligava que desbastassem
aqueles excessos lambidos de cabelo de índio, o problema mesmo era que tirassem
tudo no talo, sem deixar nem mesmo o topete. Foi a cabeleireira descobrir o
“xis” da questão, para sanar o problema. Chegava no salão como um curumim
perdido de uma tribo do Alto Xingu e saía de lá , meia hora depois, estilo ‘Elvis’:
cabelo desbastado atrás e dos lados,
costeleta de respeito e um topetão de dar inveja.
Agora o problema era outro: nem precisava mais
chamar duas vezes quando chegava a hora de ir novamente ao barbeiro, no dia
certo. O problema era depois do salão, pra tentar tirar o moleque que vivia cantando na
frente do espelho grande do banheiro, com sua camisa de gola alta, pente na mão
e um tubo de creme de cabelo furtado do seu pai, que não durava mais nem uma
semana.