Cabelo

 Banco de Imagem - 1950s, menino, penteando cabelo, olhando dentro, pia banheiro, espelho. Fotosearch

 

 

Mas o menino não queria ir nem por reza, tinham que fazer promessa pro santo ou tentar arrastá-lo à força para que ao menos uma vez por mês ele se sujeitasse a ter os cabelos cortados na barbearia mais próxima de casa, aquela junto à rodoviária. Chorava, esperneava, fugia para o meio do pomar e lá ficava até escurecer, ninguém o encontrava entre as árvores. E não adiantavam histórias do tipo : mas os amigos  cortam cabelo, suas irmãs cortam cabelo, seus pais também, todo mundo. Era mais fácil convencê-lo da necessidade imperiosa de uma injeção nas partes mais escondidas do que mostrar a naturalidade de se sentar por alguns minutos naquela tábua estendida sobre a cadeira do barbeiro para dar a altura necessária para o serviço. Era levar umas tesouradas daqui e de lá, sentir a navalha meio cega raspando o pé do cabelo na nuca e depois aquele álcool gelado e ardido atrás das orelhas, quando o serviço estivesse pronto. Sem contar a cabeça quase pelada, depois de tudo. Medonha. Um inferno!

 De bonitos cabelos na tonalidade castanho-escuro, lambidos feito cabelo de índio da Amazônia  e volumosos, que iam crescendo e se arredondando  quando os pais se descuidavam. Ele gostava, mas o resto da humanidade parece que não. Nas raras oportunidades em que o conseguiam laçar e levar à força para a operação estética de desbaste, muitas vezes voltava amuado ou chorando para casa. É como se repetissem, a cada mês, a fatídica história do Sansão bíblico, que teve sua humanidade e também todo seu poder castrado quando lhe cortaram cruelmente as tranças. Ficava depois aquele moleque pelos cantos, reparando sua imagem desinxavida em alguns espelhos pela casa. O cabelo muito fino, recém-cortado no toco, espetava-se todo e demorava um tempinho para atingir seu acabamento normal, e no fim das contas, todos ficavam era com pena daquilo tudo, arrependidos do estrago que esses barbeiros infelizes faziam no cabelo do moleque, mas não podiam contar nem deixar ele saber, porque senão no próximo mês haveria uma outra guerra quando chegasse o momento. E ademais, como era a regra, cabelo de menino tinha que ser cortado rente mesmo, afinal. Além de evitar a praga de piolhos que de vez  em quando grassava na escola no meio da garotada, ainda se tratava de uma questão de gênero: homens usavam cabelos curtos, pois! Coisa de época. Se não, virava “Hippie”, deus nos livre e guarde. De todo modo, inconsolado pela perda da cabeleira, costumava ganhar  um cafuné extra da mãe, naqueles dias de desconsolo, e depois de um certo tempo, eles aprenderam a tentar cativá-lo com alguma surpresa nos dias de salão. Ganhava um gibi, um boné ou um caldo-de-cana com pastel-de-vento na saída, quem sabe um desses brinquedos miniaturas de camelôs para tentar se distrair da trágica perda.

Isso foi até alguém ter a sensibilidade de perceber que a verdadeira razão do problema não era tanto o ritual “do corte” de cabelo, em si, mas a qualidade ruim dos serviços daquele barbeiro amigo que há tanto tempo fazia estragos na cabeça do pequeno, e depois do serviço feito ainda jogava álcool daquelas garrafas coloridas verdes azuis amarelas bozzano que ficavam em cima da prateleira pra arder na nuca do menino. Foi apenas depois de alguns anos que pareciam décadas, que ao mudar do barbeiro para o salão da cidade, onde uma cabeleireira com sentido de artista começou a trazer suas inovações, que o pequeno definitivamente se convenceu que a coisa não era assim tão ruim. A razão maior era simples: precisava ficar o topete. Ele não ligava que desbastassem aqueles excessos lambidos de cabelo de índio, o problema mesmo era que tirassem tudo no talo, sem deixar nem mesmo o topete. Foi a cabeleireira descobrir o “xis” da questão, para sanar o problema. Chegava no salão como um curumim perdido de uma tribo do Alto Xingu e saía de lá , meia hora depois, estilo ‘Elvis’: cabelo desbastado atrás e  dos lados, costeleta de respeito e um topetão de dar inveja.

Agora o problema era outro: nem precisava mais chamar duas vezes quando chegava a hora de ir novamente ao barbeiro, no dia certo. O problema era depois do salão, pra  tentar tirar o moleque que vivia cantando na frente do espelho grande do banheiro, com sua camisa de gola alta, pente na mão e um tubo de creme de cabelo furtado do seu pai, que não durava mais nem uma semana.

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publ orig "O Aleph", jun2015 - reedit contos "O domador de ventos", reg AVCTORIS/Jan 2017)