Coresma
Não
bastava ser a prima mais velha, Jana tinha que ser ainda a mais atentada. Bonita
como ela só, aqueles grandes olhos negros e os cabelos lisos e longos que
chegavam à cintura, encantava não apenas os primos mais novos, mas tinha lá seu
fâ-clube entre boa parte da molecada que morava até o fim da rua nova que
nasceu da antiga linha do trem. Todos hipnotizados pela sua beleza pré-adolescente.
Espírito de moleque, ela tomava a frente nas melhores brincadeiras de Pique,
Manda-Rua, Queimada, organizava os piqueniques, as fugas e os passeios de
bicicleta pelas redondezas da Vila.
Depois de uma manhã empurrada
e longa de escola, deveres, deveres e mais deveres, o bom mesmo era a volta pra
casa, quando largava-se mochila, sapatos e camisa pra cair no mundo. E sem Jana não tinha a
menor graça. Bora catar goiaba no quintal vizinho, bora pescar bagre na beira
do rio, bora beber resto de cachaça nos copos e ficar tonto girando ermo que nem gambá, bora botar fogo no barracão recém-construído de papelão e folhas de
bananeira só pra ver aonde as chamas alcançam, bora fumar cigarro improvisado
de fumo véio catado na rua, picado, reprocessado e enrolado em papel de pão e
olhos lacrimejando atrás da velha caixa d’água, fumaça na garganta entalada com
a boca queimada só pra ficar de castigo quando os pais descobriam mais tarde no
meio de toda aquela marola de tabaco?
Isso tudo era Jana.
Fazer comida improvisada debaixo
dos pés de manga, em fogãozinho de tijolos na sombra das mangueiras com miniporções de legumes e restos de arroz com azeite catados
na cozinha da tia Helena? Era nossa líder, enfim, e nós, numa turma de oito ou
nove, sendo seis meninos, adorávamos isso, de sermos liderados por aquela
garota poderosa e esperta. Ela era um de nós, mesmo sendo diferente. Ela
contava histórias terríveis, e a cara de
terror da criançada a empoderava mais. Crescia nas falas e dramas, fazia
caretas, teatros, e a molecada suava frio. Jana convencia. O poder da própria
encenação a entusiasmava. Os pequenos não davam um pio durante as sessões de
histórias. Daí que surgiram pérolas das narrativas imaginadas, pesquisadas ou
nascidas do tal improviso de instante
como aquela “Das pessoas que nasciam velhas e iam se tornando crianças”,
que fez Ricardinho ir chorando pra casa, achando que estava prestes a morrer,
porque segundo a lenda, ele que já vivera praticamente uma vida e andava aí
pelos seis anos de idade, não teria ainda
mais muito tempo pela frente. Jana ria de sair lágrimas nos olhos enquanto o moleque
se pelava na corrida pra contar à mãe. Tinha a história de “Bracinto, o vampiro
do túnel”. Nosso equivalente familiar e lendário ao famoso “Homem do saco”, que
apavorava a mente das crianças pelo país afora. Uma entidade maligna, nascida das
trevas abissais, que mal falava a língua dos homens e sempre levava em sua
mochila gigante nas costas uma criança nova a cada dia para seu esconderijo, de
onde elas jamais retornavam pra dizer como foi. Na verdade, a “figura do mal” que fazia a
molecada sumir da rua quando apontava ao longe era mesmo um pobre trabalhador
rural que passava todas as tardes à porta de nossas casas, retornando do trabalho,
com sua bagagem a tiracolo num saco. Anos atrás teve o azar de perder uma das
mãos até quase na altura do cotovelo para uma daquelas brutas máquinas antigas
de moer cana. Por conta disso, usava uma proteção de couro preto e afivelado no
coto restante. Ao avistarmos o “vampiro” de longe, alguns fugiam, outros olhavam
para o outro lado, e uns mais corajosos o seguíamos, a uma segura distância, acompanhando-o
em segredo até perto de sua casa sombria, mais próxima do antigo túnel da
ferrovia. A casa era próxima do remanso onde o rio fazia a grande curva antes de
se dirigir para a cachoeira. No grande pomar que se estendia morro afora, habitava “O homem das folhas” , que se camuflava junto
aos monturos de folhas de manga secas empilhadas debaixo das árvores. Ele
surgia assim de repente, quando a criança não estava prestando atenção, e a
sequestrava para seu mundo de matéria orgânica debaixo da terra.
E
a jóia da coroa ela deixava sempre para o final: a mais temível e perigosa de
todas as histórias: “Coresma”, cujo nome não deixa dúvidas sobre o período do
ano em que era exercitada essa pequena cantiga de terror. Segundo sua incorporada
narradora, não era exatamente uma coisa, uma pessoa um bicho ou uma planta, mas
uma determinada estação do ano, uma energia ou um ciclo, uma energia doida de outro
mundo, um período de maldições onde os
bons espíritos dormiam por uns tempos e então os fantasmas andavam à solta, quando
saíam de suas sepulturas todo tipo de espíritos do mal, e o bem nada podia contra
eles nesses dias. Justamente essa indefinição que pairava no ar é que dava o
toque do suspense. Um suspense que agoniava aos poucos e ia num crescendo previsível
até a pior hora do dia, à beira do crepúsculo, quando a saparia de beirada de
rio começava a lamuriar sua ensurdecedora cantoria. Hora de criança já estar em
casa, longe dos pavores da rua. “Coresma” era essa coisa multiforme, que não é
nada mas pode assumir de repente a cara de qualquer coisa, por isso era
necessário todo cuidado: a maldição poderia até mesmo ser uma planta com uma
bela flor meio arroxeada que existe em muitos cantos de mata do Brasil subtropical
de restos de mata atlântica e floresce justamente entre os meses de abril a
junho. Havia pessoas que tinham o dom de ver espíritos e era justamente nessa
época que esses bichos surgiam andando feito almas penadas pela Terra.
Dizer
assim, a vero, eu nem não vi nenhum. Mas sabia, de ouvir dizer, por confirmado
de quem soubesse a certeza. Porque só havia duas maneiras de ver espíritos e
saber sua presença: ou você era médium e lhes falava como um igual, ou então
tinha morrido sem saber e já era um deles, por isso todo cuidado era pouco. Uma
pessoa podia ser morta e ainda nem sequer saber? O terror da vida em não-vida.
E Jana continuava detalhando, eles assim em trânsito por esmundos que nem mais
eram os seus mas como se fosse, usavam roupas muito características quando se
punham no vagar. Usavam uma calça e uma camisa tal e qual, se fosse homem,
preferência cor azul clara. Uns vestidos assim e assim, se fosse mulher,
preferência cor rosa ou amarelo claro. E se espirrassem, aí sim era porque tinham
percebido que estavam sendo observados pela criança em questão, então já era
hora da pessoa ir encomendando a própria alma.
Pra
umas histórias bobas como essas não consigo acreditar hoje em dia, época em que
vivemos a morte de toda ingenuidade, que algum pequeno ainda caísse no
imaginário arteiro da inventiva prima. Hoje, a realidade facilmente verificável,
seja no resumo dos jornais ou pessoalmente
nos confins do mundo a um toque de tela suplantam o terror de qualquer
imaginação. E só faz sentido quando uma outra maior suplanta a anterior, porque
as tragédias nunca terminam.
Quanto
a mim, quase na idade de Jana e maiorzinho no meio daqueles pirralhos todos, eu
fingia na época que não ligava, dava umas risadinhas meio sem graça durante os
momentos mais tensos, mas se alguém ainda quiser saber, eu posso dizer logo sem
mentir: todos os causos que Jana contava tinham sua graça e desgraça certeira,
interpretados com talento suficiente para disputar o “Oscar” da categoria, mas a
história de “Coresma”, particularmente, foi responsável por me fazer durante um
bom tempo passar ao largo de todas as flores roxas que eu via pelo caminho de
casa à tardinha quando o sol esvaziava e eu voltava da escola, e por
instilar em mim, ainda bem cedo, as
primeiras crises de insônia que eu tive em minha vida. Claro que eu nunca vou
confessar isso a ela, mas às vezes quando uma criatura trajando azul em
silêncio passa por mim espirrando na rua, eu desdigo todas as certezas que
depois aprendi sem rumo.