Enterro
(O Enterro - tela de Salomão Zalcbergas)
O passamento de nosso avô
(que era bisavô mas nós o chamávamos assim,
quando não dizíamos simplesmente padim)
Não me deixavam ir, de pequeno
Insisti, queria ver de perto a cara da morte
O avô não parecia diferente, usava um terno azul claro
deitado naquele féretro de rosas brancas
O rosto jovial permanecia igual, um
certo sorriso meio matreiro em expressão
de rala barba branca
que até escamoteava um pouco a dureza
dos últimos tempos
Todo mundo suava, tarde quente
Muitos com abanadores, leques, disputando sombras
O avô (que era bisavô)
permanecia bem, sem suar a fronte,
a tez pálida e elegante
a expressão de quem guarda algum segredo
e tem alguma coisa a dizer
A dizer a verdade
me decepcionei um pouco com a morte
porque a esperava cheia de garatujas e ventanias
Pensava que surgiria ornada de barulhos
a levantar os terreiros, dobrar os topos das árvores...
e nada!
Espreitando bem com olhos ainda cautelosos
via apenas umas senhoras com lenços pretos
em suas cabeças brancas
seguravam um terço de cada cor em suas mãos
(calor imenso sobre o grande terreiro de chão varrido por minha tia)
Umas crianças meio perdidas no quintal, fazendo algazarra
e sendo admoestadas a cada cinco minutos
A morte não me parecia, àquelas alturas
a entidade poderosa e aterradora
de quem somente se ouvia falar nos cochichos à meia boca
a visita num quarto escuro a que não se permitia acesso
mas ainda assim escapava daquele outro mundo até nós
pelas frestas
Ela ainda não era aquilo tudo que poderia significar mais tarde
[não sei se pela naturalidade da morte de um idoso]
Alguns tentavam dedilhar um acordeón, coisa que o velho gostava
mas minha avó (que era bisavó) desde antes proibiu,
tocando-os pra fora do terreiro --
meu avô nem se importava, continuava tranquilo
E eu sem ter muito o que dizer a ele - conhecia-o tão pouco
A figura pacífica, na memória, sentado à sombra da casinha branca
de chaminé, na curva do rio, a boca mascando vento, o cigarro de paia
mas me decepcionava mesmo era com a morte
porque imaginara uma espécie de encontro marcado
nessa tarde, nesse lugar, uma primeira entrevista
Esperava que ela atrovoasse suas razões em voz grave
-- já de longe --, como fazem os anúncios de tempestade
e fizesse como nos causos tão recontados pelos mais velhos
cachorro murchando o rabo
cavalo rompendo no pasto
passarinho voando de lado
Imaginei que ela fizesse extinguir
a safra de mangas do pomar antes da hora
Riscasse o céu feito corisco na tarde branca
ou aparecesse feito miragem brilhando na beira do caixão
pra fazer discurso e levar seu passageiro pra sempre
Alguma solenidade, ao menos
Tinha o tal punhado de terra pra jogar
senão dava pesadelo à noite
Não joguei, não quis, achava estranho aquilo
de jogar torrão de terra sobre um caixão
Semelhava alguma falta de respeito
com a morte, com o morto
Jana, minha prima mais velha,
(a doce queda de um coração proibido)
a mesma a me aterrorizar com a história da Coresma
--a tal assombração que pegava crianças --
no mês de abril e da paixão de Cristo
[e como o sinal da sua presença lúgubre era sempre
aquelas flores das árvores perto da estrada,
o que me impedia por meses de passar no trecho
povoado por pequenos arbustos roxos sinistros ]
A prima me inculcou no espírito sobre não apenas
o pesadelo a me varrer a vida doravante por conta
do esquecimento do torrão não jogado sobre o féretro
mas também sobre a maldição do espírito
do meu avô, (que era bisavô) , daí em diante
passar a povoar as árvores do nosso sítio
chamando meu nome pelas tardezinhas de brisa
na ameaça do sol se por
E não enfeitiçaria somente a árvore de Coresma,
--assegurava-me a prima preferida e terrível--
pois a essas alturas ela tinha já, por donos,
outros espíritos que desencarnavam na Páscoa
além das semanas santas ,
e os Halloween pelo resto do mundo
Mas seu espírito ressabiado comigo
assombraria agora as árvores em abundância no pomar grande:
Mangueiras, abileiros, pitangueiras, coqueiros
(meus conhecidos e habituais esconderijos)
A bem verdade, andei uns dias sem retornar
aos meus locais secretos de casamata
Depois acabei sentindo que todos tiravam era onda
Não tive bem um pesadelo, mas um sonho pesado veio
Pesadelo não, mas um sonho: o avô num grande cavalo branco
[com suas barbas brancas ainda por fazer, olhos meio fundos,
aqueles escuros sombreados como os vilões dos filmes de terror
do cinema mudo ou como as pinturas antigas do império,
generais de parede sobre seus alazões e fardas coloridas]
e ralhando com todos por não mais o deixarmos em paz
Súbito mudava a tez contraída e preocupada num largo sorriso
olhando pra mim, os olhos tranquilos
--sorriso de velhinho quando é bom --
ele me dava seu mais precioso canivete, aquele de folha larga
e cabo de chifre que ficava malocado atrás do baú embaixo da prateleira
cheia de latas de conserva
e distribuía mais flores brancas, como aquelas
que adornavam seu caixão no dia do enterro
-----------
publ orig "O Aleph", outubro 2015 - reedit contos "O domador de ventos", reg AVCTORIS/Jan 2017)
--a tal assombração que pegava crianças --
no mês de abril e da paixão de Cristo
[e como o sinal da sua presença lúgubre era sempre
aquelas flores das árvores perto da estrada,
o que me impedia por meses de passar no trecho
povoado por pequenos arbustos roxos sinistros ]
A prima me inculcou no espírito sobre não apenas
o pesadelo a me varrer a vida doravante por conta
do esquecimento do torrão não jogado sobre o féretro
mas também sobre a maldição do espírito
do meu avô, (que era bisavô) , daí em diante
passar a povoar as árvores do nosso sítio
chamando meu nome pelas tardezinhas de brisa
na ameaça do sol se por
E não enfeitiçaria somente a árvore de Coresma,
--assegurava-me a prima preferida e terrível--
pois a essas alturas ela tinha já, por donos,
outros espíritos que desencarnavam na Páscoa
além das semanas santas ,
e os Halloween pelo resto do mundo
Mas seu espírito ressabiado comigo
assombraria agora as árvores em abundância no pomar grande:
Mangueiras, abileiros, pitangueiras, coqueiros
(meus conhecidos e habituais esconderijos)
A bem verdade, andei uns dias sem retornar
aos meus locais secretos de casamata
Depois acabei sentindo que todos tiravam era onda
Não tive bem um pesadelo, mas um sonho pesado veio
Pesadelo não, mas um sonho: o avô num grande cavalo branco
[com suas barbas brancas ainda por fazer, olhos meio fundos,
aqueles escuros sombreados como os vilões dos filmes de terror
do cinema mudo ou como as pinturas antigas do império,
generais de parede sobre seus alazões e fardas coloridas]
e ralhando com todos por não mais o deixarmos em paz
Súbito mudava a tez contraída e preocupada num largo sorriso
olhando pra mim, os olhos tranquilos
--sorriso de velhinho quando é bom --
ele me dava seu mais precioso canivete, aquele de folha larga
e cabo de chifre que ficava malocado atrás do baú embaixo da prateleira
cheia de latas de conserva
e distribuía mais flores brancas, como aquelas
que adornavam seu caixão no dia do enterro
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publ orig "O Aleph", outubro 2015 - reedit contos "O domador de ventos", reg AVCTORIS/Jan 2017)