Os passarim

 




Ele, todo armado nas penas amarelo-ouro,  os vermelho-alaranjados fogos nos peitos, olhar intrépido, inquisidor, bico petulante, principalmente se na presença de sua cara-metade. Ela, verde-amarelada, mais verde, menor e de postura acolhedora e orgulhosa  em relação a seu par, observando-o em ação e aprovando com pequenos chiados a conduta valente do parceiro no duelo que se travava no espelho da janela. Bicos e cabeçadas no vidro, caretas de intimidação e alguma coisa que lembrava de longe aquela dança que os passarinhos machos fazem para impressionar as fêmeas.

 Agora, todas as manhãs, infalivelmente nas últimas três semanas, somos acordados antes das seis horas por um casal de canários-da-terra cujo representante macho  vem tirar satisfações sobre seus domínios em combate com minha janela espelhada.

Obra da recente mudança estética na fachada do meu prédio, a empreitada acrescentou películas protetoras reflexivas nos vidros, com o objetivo alegado de diminuir o calor e dar mais privacidade a quem habita o interior da moradia. Confesso, entretanto, que a idéia principal era mesmo diminuir um pouco o barulho infernal dessa movimentada esquina da cidade nos horários menos propícios. De todo modo, o fato é que a maquinação parece não ter agradado muito a meus pequenos voadores vizinhos de bairro. Quem está dentro vê tudo do lado de fora, mas quem está fora não consegue enxergar dentro durante o dia, somente espelhos. À noite, contudo, a situação se inverte quando se acende uma luz no interior da casa, e os vidros são espelhados para quem está dentro e transparentes para quem está fora, perigo óbvio para qualquer mortal. Evitam-se maiores desastres exibicionistas e involuntários dos moradores apenas por conta de cortinas estratégicas que asseguram a privacidade a qualquer hora do dia ou da noite.

Depois de uns dias curtindo minha nova e anônima trincheira, acabei percebendo que os passarim, depois da mudança no ambiente, sentem-se desafiados em seu ar territorial, e todos os dias, logo bem cedo, vêm tirar satisfações com seus próprios reflexos nos espelhos perfeitos das janelas. Dão  pequenas bicadas no vidro em que enxergam poderosos e renitentes rivais imaginários e exigem respostas imediatas enquanto dão saltos lateralmente pela borda da janela, com as penas eriçadas e fazendo caretas.

Sabendo da situação, e surpreendido pela beleza singular dos bichinhos, armei logo uma espécie de arapuca doméstica contemplativa, dada a minha natureza ancestral  e inafastável de voyeur: como eles não conseguem me ver pelo lado de dentro de casa quando as janelas estão fechadas, por força do potente reflexo exterior, eu fico à vontade pelo lado de dentro para vê-los caminhando de um lado a outro do parapeito da janela, discursivos e imponentes, questionando a autoridade dos supostos rivais,  pequenos simulacros que também os enxergam pelo espelho em poses e atitudes desafiadoras. Eu, por minha vez, posso observar seu comportamento a apenas alguns centímetros de distância, chegando o rosto bem perto da janela devido à relativa opacidade do espelho, permitindo  diversas fotos sem que eles me vejam, e ainda brincando com o casal real, dando uns tecos no vidro, os quais certamente eram ouvidos por eles, mas jamais descoberta a fonte.

O que vê aquele que não consegue se ver? A ciência reitera que pássaros não têm consciência-de-si, como a maioria dos animais. Dizem mesmo que só há um animal que possui essa tal consciência  Eu tenho cá as minhas dúvidas....

Afinal, o que vê um olhar que só espreita para fora, que só relaciona em seu pequeno cérebro causalidades e efeitos do mundo exterior? O que vêem esses passarim quando se sentem desafiados pelos supostos inimigos no espelho da janela, sem saber que miram na verdade a si mesmos, e batem-se contra o vidro espelhado simulando batalhas sem terem a menor noção de que possuem tal e qual forma, possuem este bico, estas asas, este porte e essa essência transcendente de ser beleza, leveza, asas e vôo instintivos?

Se soubessem que lidavam com o próprio reflexo, fariam poses para foto, esticariam o peito ou o bico perfilado, admirando-se durante horas, ou mesmo achariam uma pequena pena defeituosa escondida aqui ou acolá, uma cor mais desbotada aqui e uma perna meio torta de lá? Zombariam de outros passarim cujas cores fossem menos brilhantes ou de um tom diferente do seu, criando uma supremacia racial sobre penas? Sentiriam-se mais onipotentes por terem o poder supremo do vôo, ou lidariam com a inveja de um outro pássaro com asas maiores, como um Urubu ou um Falcão?

Se não me vejo nem me reconheço a mim próprio, sou então essencialmente aquilo que o olhar do outro me diz que sou? Se sou passarim e sou amarelo, se sou verde ou vermelho laranja, mas não sei mesmo sequer que sou passarim e tenho essa aquela ou outra cor qualquer, então me defino apenas pela expectativa do outro da minha espécie que incide sobre mim, que também sem saber olhar para si, sem saber quem é por alguma espécie de identidade individual auto-definidora, se estabelece em tentativas em sua relação com o mundo?

Se essa idéia é válida , no final  não existe EU, existe  somente NÓS, como pretendia a tradição exclusivamente oral de algumas tribos africanas estudadas e relatadas pelos primeiros antropólogos. Dessa forma, teríamos referências sobre nós somente na terceira pessoa, em vez de primeira? Em outras palavras, se não sei quem sou, somente o grupo me define, embora eu não saiba racionalmente que pertenço a este grupo, mas apenas sinto o pertencimento por afinidades atávicas, e dessa forma, só o grupo tem poder sobre sua célula, não havendo definição de indivíduo isolado, ciente de si? Se não há consciência de si, não há individuação, metamorfose    permitida pela linguagem, para o bem ou para o mal.

De toda sorte, como é possível que ,  mesmo eu sendo definido não por algo essencial , mas sim por um comportamento empírico dado pela verdade coletiva, como se explica meu reiterado conflito com minha imagem que supostamente disputa território comigo mesmo nos embates de um espelho alado a sete metros do chão em revoadas intimidadoras pela cidade de concreto armado? Se sou grupo, não sou eu mesmo, e minhas características nunca poderiam constituir um indivíduo, um ente singular, e dessa forma os valores que constituiriam a singularização do comportamento, sua individuação, deveriam ser sempre suprimidos em favor de outros que recoloquem os temas grupais como justificativa para a vida.

Entretanto, quando eu, passarim, me choco contra o vidro querendo assegurar meu território, estou travando uma luta individual instintiva e milenar pela minha própria supremacia, embora eu nem sequer saiba de minha existência por uma via racional, e como pano de fundo dessa luta, se eu for forte e bastante esperto e ágil, dominarei meu rival, estabelecendo meu território e os favores de todas as fêmeas sob minhas asas até que minha nova posição seja derrubada pela idade, pelo acaso ou por um novo desafiante , e de forma inusitada, esse meu combate cavaleiro errante individual garantirá, em última análise, a melhor chance do meu grupo sobreviver no futuro, porque o melhor DNA será transmitido ás gerações vindouras.

Depois de quase fundir meu cérebro numa manhã qualquer de inverno, sentado de pijamas no sofá da sala com uma xícara de café na mão enquanto olhava aquela algazarra na janela, pensava de longe em La Fontaine ou quem sabe, Esopo e concluía que, apesar do grande talento literário desses autores, na verdade nada existe de moralizador e universal sobre comportamentos animais e analogias humanísticas, parece ser o ensinamento da tal mãe natureza. Tudo são somente inferências livres, apropriadas e  humanizadas, não autorizadas e extremamente arbitrárias em qualquer aspecto. O mundo e a natureza exterior parecem bem à vontade em serem o que são, sem precisar de que lhes digam os humanos como devem ser. Nós é que somos o estranhamento do natural, o anti-natural por natureza, se é que isso faz sentido.

Sou humano e supostamente tenho consciência de mim, e no entanto, bato-me no vidro espelhado de minha própria vida por tantas vezes durante esses anos todos, que até perdi a conta. 

Não me reconheço? 

O maior rival, o maior inimigo, o maior desafio a ser superado sendo sempre meu próprio reflexo no espelho, ou o que o espelho reflete não sou eu? Um passarim ou dois passarim ou um monte de passarim bicando minha janela são somente poesia e cores e penas flutuantes em uma algazarra feliz e sem fim, cujo significado completa-se em sua própria existência, e só. Enquanto isso, ajo como fiz a maior parte da minha vida, tornando-me um especialista confuso em perguntas sem respostas, percebendo agora que os passarim recentemente também pensaram sua nova trajetória: há dois ou três dias que não os vejo mais por aqui.

Cansaram-se de disputar território com os imbatíveis rivais ou apenas tomaram consciência de si, e assim,  ao se humanizarem, entraram súbito em extinção?

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publ orig "O Aleph", mai/2016 - reedit contos "O domador de ventos", reg AVCTORIS/Jan 2017)