Ganesha


"Bico calado
Toma cuidado
Que o homem vem aí"


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Tudo queima em toda parte, tudo arde. As árvores, os céus, o chão

Não tem mais solução pra passarinho, pra peixe, no fundo da alma só resta mágoa


Não tem mata, mais

Só quem mata mais


Acharam até as onças e os animais arredios. O fogo foi atrás


Uma ganância absurda e ininterrupta que a tudo contamina sem dó

segue fazendo estragos. Ciclos que se alimentam, uma coisa puxa outra

E vai o navio fantasma seguindo de vela cheia em tempo de ventanias

a assombrar os dias com suas despossibilidades


De um lado, a parede de fogo. De outro, as cidades. 

A resposta à equação, todo bicho já sabe: 

melhor que ir preso é morrer queimado


As chamas nada poupam, aterrorizantes cores

desse findemundo anunciado

Cantado, decantado, um apocalipse

homologado debaixo das risadas

tão bem curtidas na capital que decide

as sinas. Uma cidade sem esquinas


Labaredas de fogo e vento áspero, 

os tons rubros de Pandora em fúria intocada 

que a tudo devasta, quando provocada 

O calor calcinante de cem bombas atômicas

Por dois, três andares de altura, quilômetros de largura, 

varrem o verde com a sede que reverbera cinzas


São os arautos da morte. Em seguida trarão as grades, grandes correntes

Máquinas pesadas e enormes dissecando sem pudor as costelas da terra

A cada hectare contaminado pela nova era, mil índios mil onças a menos


De tudo quanto havia hoje para se refugar, cuspir, maldizer

De tudo quanto havia para se odiar -- e este mundo das gentes é mais e mais

propenso a ser odiado cada dia mais por nossa própria causa --


De tudo que é possível a uma criatura ao se compor em vontade sólida

de não ter nascido gente quando gente é o que mais destrói tudo ao redor

Quando nada mais parece satisfazer o imenso ego e nenhum alento 

vem recompor a imagem sórdida de mais um filho de Caim que se perdeu


Restou nenhuma crença daquela potência prometida

anêmica, rarefeita, escondida nos recônditos, quem sabe 

uma súbita bondade surgindo triunfante, e do nada resgatando esperanças 

revertesse a ordem nefasta que imprimimos incansáveis ao planeta


A única cena hoje capaz de me fazer parar os olhos chega meio que por acaso

Olhos acostumados a serem maltratados e cevados pelas luzes, 

apenas contemplam , estarrecidos


Esse filhote morto por duas criaturas lá nos confins da África, a fotografia na rede

Sua imagem poderia ser mais uma entre tantas. Mas é muito mais que isso

Não tem a ver com fogueira, fumaça, queimada, palavras em polvorosa 

mas em amarga condição, é como se fosse. Um símbolo de todos os males


Típica foto de caçadas, de safáris no continente mais miserável e mais rico

Nela os algozes posam, orgulhosos, atrás dele. O filhotinho  elefante dorme, 

com a marca do tiro na testa. Está de joelhos, como o faria normalmente

ao tentar se deitar para dormir ou levantar em um banho de rio ao lado da mãe


No corpo, o labirinto característico da cinzenta e opaca pele rugosa

que foi feita pra segurar o barro na seca e manter durante dias o corpo fresquinho

Os  longos cílios negros fechados sob os olhos, o relevo inteiro do seu rosto

recriando entre cinzas e sombras a nobreza do porte, o exótico da espécie


A delicadeza do seu pequeno dente. Presa que engordaria

quarenta vezes até atingir o abissal tamanho e o peso da  raça

A fragilidade das patinhas dobradas para dentro, num último movimento

Uma compleição tal que lembra muito uma criança pequena no berço. 

A cabeça grande, o barrigão


Não vou falar dos caçadores que aparecem com o sorriso  na foto

De um lado, eles são eu também -- mesmo com nojo -- a mesma raça

E de outro  nunca serei eles, porque é no individuo que as forças se diferenciam

Um silêncio obscuro cala o ato vil. 

Tua presença, deitado, num último berço, é tão altiva que os faz indignos de menção


Um leão esfomeado lutando pela vida fosse o responsável pela caçada

Com um pouco de tolerância e alguma compreensão, estaria perdoado

O mesmo leão que, hora ou outra, cairá velho e doente diante das hienas

Um tigre em desespero, uma leoa caçando para sua família faminta


O homem, não. Não tem perdão. 


Tua dura carne nem é de comer, e ainda que fosse, ninguém ali estava faminto

Tua existência, além de não competir negativamente em nenhum instante 

com os outros seres da floresta, não ameaça o mestre supremo do planeta

em sua sede contínua e insana de extensão dos domínios já gigantes


Um filete de sangue escorre, fino, só um. Caçadores profissionais, no jogo

A magistral orelha -- orgulhosamente ainda de pé -sombreia parte do rosto

Argumentariam, contra quem os interpelasse, pela limpeza e eficiência do processo

"Um único tiro, limpo e certeiro, o animal sequer chegou a sofrer.... Temos licença"


Que arte humana, a mais poderosa, criaria algo assim, turvando o afã da matéria

que artifício doentio deste ser sem paradeiro

se arvoraria conceber a estética complexa dessas tuas carnes e ossos, tuas densidades

ou o bramido típico que tens para com os teus em arroubos de felicidade?


Aqueles de nós que o caçam, o fazem é puramente por inveja, a mais antiga e banal

Um despeito por tudo que é livre, tudo que é feliz e tem movimento próprio

Os humanos da foto, -- porque sim, são humanos -- obtêm seu prazer não de outro modo

que não seja o tentar  submeter a vida ao seu crivo mesquinho


(Que não mais nos perturbem os discípulos de Rousseau, pois Hobbes tinha razão).


As águas que por tua causa me vieram em socorro

apagariam do mundo hoje todas as mil fogueiras

mas seriam, mesmo tão volumosas, incapazes

de te fazer voltar a correr livre pelas savanas


Quantos caminhos deixaste de percorrer 

Quantos banhos felizes de lama

Quantas passagens pelo Serengeti

testemunhando o ciclo de vida

mais rico do planeta na mesma terra 

onde teus ancestrais reinaram 

por milhões de anos


Para que ainda possamos acreditar em algo nessa vida, 

meu pequeno Ganesha

Vamos nos apegando às poucas coisas

que, por alguma razão,  nos servem de talismãs 


Prometo tentar a cada manhã 

me lembrar sempre da foto como se estivesses apenas dormindo

em uma das muitas tardes quentes típicas aí do teu lugar, no colo de tua mãe África

O travesseiro fofo de capim e teu bonito rosto , deitado e folgado de bruços 

Tirando um cochilo à sombra. Os longos cílios tranquilos de um menino que sonha 

E teu mundo será então um outro mundo, onde uma certa espécie jamais terá nascido

Porque um verdadeiro Deus benevolente  percebeu o erro antes de moldar a massa


E serás, assim, uma criatura feliz, a viver cinquenta, cem anos, quem sabe lá

não terá aí seus muitos filhos, sua penca de netos, fundará um clã de elefantes

sobre o qual talvez venhas a reinar com justiça e sabedoria, coisa própria da

tua raça


Serás uma criatura feliz em um mundo mais pleno onde a natureza seja a única certeza


Dorme, filhotinho, porque neste mesmo instante

a alguns quilômetros de onde regurgito estas tristes palavras

teus primos das mais variadas espécies são torrados e pulverizados sem freio

A revolta que pulsa no peito é tamanha que pragueja contra o céu um inferno inteiro


Dorme, filhotinho, porque tuas tristezas hoje acabaram


                                                   mas  as nossas estão apenas começando