Pequenas notas bestas sobre instrumentos e sons
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Da experiência pessoal com a música
Na guitarra, o mundo vem até mim, passa pelo filtro, pelo fígado, pelos rins, passa nuito rápido numa consulta aos neurônios e volta
Parte emotiva, parte racional, ao mesmo feeling que se simboliza por um humano abraçado a um objeto de madeira e cordas, fazendo com que através dele soe as dores e glórias da humanidade, junta-se uma coisa de memória, de escalas, escolha
das notas que define um determinado estilo, a sustentação ou abreviação que confere alguma originalidade. Bends, vibratos. Staccatos,
se as frases musicais se tornam a fala de quem fala por outros sons porque suspeita das palavras soando cheias
Como mostraram Satie, no piano clássico, Gilmour e Clapton na guitarra- Rock ou Robert Johnson e Buddy Guy no violão-slide- Blues, resgatando a lentidão e profundidade que deixa soar toda a vibração do som, da nota, do acorde, a dinâmica faz absurda diferença. Tocar uma sequência de inúmeras notas com muita velocidade ou exímia perícia num espaço curto de tempo, ou deixar, ao contrário, que notas essenciais preencham o espaço com sua inteira duração produz efeitos completamente distintos.
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Esses movimentos musicais de duração, ritmo e intensidade lembram um pouco o movimento de poesia e prosa, ou para melhor definição, verso e prosa no texto, uma vez que a poesia também pode ser em prosa. Não importa o que digam os críticos contemporâneos, para quem tudo hoje parece uma grande mistura sem dono ou nome. Existe a vantagem natural dessa liberdade e do fim daquela escolástica classificadora de gêneros, mas para efeito de mera compreensão criativa, como exercício do texto, é inegável que persistem diferenças. Principalmente quanto à abordagem estética ou racional, que não se excluem mas podem marcar caminhos diferentes. Inegável instrumento poético desde a lira de Orfeu a cadência, a sonoridade, a música que está sempre no berço do poema, enquanto a pretensão do racional persegue outras linguagens através da prosa.
Há diferenças, mesmo que num limite tênue quanto à forma, e dizem respeito à racionalidade lapidar ou intencionalmente truncada da prosa, mesmo quando bruta ou visceral, seca ou descritiva, ela sempre usa tramas argumentativas, seja para convencer, iludir ou desviar o leitor.
Diferente da intenção-poema, o pulso instintivo e respiratório do verso absorvendo e expirando fôlego ou da prosa musical quando poética. O espaçamento de fôlego, as quebras, os artifícios gráficos, visuais, da intenção-poema pressupõem em geral esse andamento macio, mesmo que sua intenção seja disruptiva, e pressupõem a necessidade de tempo para que o leitor possa se impregnar das suas cores e os sentidos consigam fruir da riqueza de entradas e saídas tomadas como estímulo da busca e descoberta .
A prosa, pela natureza de teia, sugere outro ritmo e outra proximidade das palavras que, entre frases e orações, a malícia das pontuações inusuais, simultaneamente possuindo uma trama intelectualmente mais fibrosa, apela mais ao sentido lógico que a conduza. Dispensa o excesso de sons figurativos e com frequência sugere simplicidade do sentido individual de cada termo para soar mais potente no conjunto.
O fluir é esssencial na prosa, não na poesia. Enquanto uma valoriza o corpo-conjunto, uma certa integração para o resultado, a outra tantas vezes abocanha e digere os próprios órgãos para descobrir de que matéria são feitos . Riqueza maior da prosa poética, quando incorpora ambos os elementos.
Sendo fluida e concatenada, a prosa vai poupando tempo e trabalho ao leitor por estar sendo conduzido. Justamente por isso, ele tem a tendência a perder os múltiplos sentidos e os não-ditos muito mais próximos da poesia. Tem a ver com condução e liberdade.
Enquanto toda prosa, mesmo as alternativas, segue mapas gerais de conversação, ou esquemas de signos do autor que logo se darão a conhecer, o poema os subverte.
Ninguém lê prosa de trás pra frente , ou necessariamente lê impostando um ritmo para cada sentença, grande ou pequena.
No entanto,
posso pegar este poema de ponta-cabeça
Posso ler seus versos de lado, de bruços
Repudiá-lo pela desafeição aos termos
Absorvê-lo inteiro como num abraço
Saltar partes com meus curiosos olhos
para ir direto ao que me importa mais
Ler cantando, ler sorrindo ou nos mais variados ritmos, ora lento, ora mais rápido pra ver como é que o verbo se encaixa no substantivo, pra sentir a natureza e as cores do adjetivo, seu calor e pulso incessante
Segui-los em separado com a ajuda das minhas mãos . Posso ler só as palavras-chave e tentar interpretar a cifragem. Ler e reler depois de um tempo como num jogo e ver se o sentido que percebo é o mesmo de antes ou mudou
Posso ainda cutucar com os dedos cada palavra, explorar suas reentrâncias, lacunas e desvãos
na espera que elas reajam ou minha mão seja mordida
sangre ou queime,
dobrar e apertar pedaços desconexos enquanto sofro na busca de outros sentidos possíveis mesmo que não perceba a razão
para o conjunto da obra , sem saber se conseguimos chegar ao seu sentido último ou mesmo sem saber se tal coisa existe
e as suas marcas não estariam estampadas logo de anúncio, portando um cartaz luminoso em neón como chave
Há muito de inconsciente num poema, coisa que não é própria da prosa, e isso se deve ao poder da metáfora e da linguagem que nos atravessa como desejo
Tantas vezes somos mais falados pela linguagem do que o contrário, e a esperança do sentido nem sempre se realiza em nenhum dos lados dessa relação. Isso não está proibido de ocorrer na prosa, mas é muito raro. Natural e enxurrada, no poema.
Palavras no poema são bichos soltos.
Ás vezes elas simplesmente se enfurecem e atacam.
Não conseguimos domá-las jamais
Ficam instáveis quando acuadas
Reverberam, sempre, rugindo nos infinitos caminhos de recepção,
sempre mais largos que a prosa
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Sendo instrumento introspectivo e relativamente recente (sim, porque apesar da estrutura física, guitarra não tem quase nada a ver com violão, seu primo mais velho) , apesar de tanto alarde por conta do mundo-rock
pode se tornar o diálogo de si para si mesmo, se o
músico não tiver cuidado.
Gilmour disse uma vez, depois do show do Pink Floyd na cidade polonesa de Gdansk, que por alguma razão, um pequeno incidente na sonorização, o levou a realmente ouvir o que o colega tecladista Richard Wright estava tocando. Isso, para sua surpresa, depois de 30 anos de banda. Tal situação inclusive o levou a mudar sua forma de perceber a música e de tocar e compor a partir daí.
Já ouvi álbuns e assisti a shows onde o único mundo em ação era o do guitarrista. Às vezes até funciona, há talentos indiscutíveis, alguns geniais. Contudo isso amarra o ego. Não há compartilhamento da experiência do som, que é mais rica quando coletiva
Os efeitos e modulações alongam e encorpam o som, a guitarra soa como se fosse mais de um instrumento ou estivesse acompanhada. Suave, rude
com poucos movimentos é possível muito resultado
As melodias se esticam, entortam e entornam de fora pra dentro, guitarrista quando entra no personagem é parabólica
(Lembro-me sempre do virtuoso Carlos Santana quando penso nisso)
Por último, o fluxo é um pouco mais cerebral
Instrumento de harmonia e melodia, obedece
como os outros à idéia de tonalidade no nosso meio ocidental
Tudo aqui envolve primeiro memória e intenção, um tanto de técnica
antes de ser improviso e livre expressão
E o giro é todo interno, entre o peito e a cabeça
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Na bateria, eu é que vou ao mundo
pulso, respiração muscular, reflexo
O som produzido no golpe, o ritmo
vem muito forte, e o corpo marca
gerando uma resposta para preencher o espaço
Sem possibilidade harmônica e com limitações
quanto ao campo melódico, bateria é pulsação
Numa formação banda-rock em quarteto clássico
A guitarra é a exposição musical como um todo
Harmônica, melòdica, diz o perfil da banda pela
pegada e pelos solos, quando há
Não à toa o guitarrista, em termos de eixo, é o músico
mais relevante numa banda de rock, assim como no blues
de quem foi derivado.
Diferente do Reggae, onde o baixo é a espinha, acompanhado da percussão e a guitarra mero coadjuvante.
Diferente ainda do Jazz, onde cada instrumento é uma criatura livre, sem hierarquia, narrando sua própria história e às vezes confluindo em momentos especiais onde o tema ressurge dentro da mesma música para quem ouve, do lado de fora da banda. Para que essas pessoas, geralmente chamadas de público, possa saber que existe sim, uma música sendo executada, e que por conta dos improvisos e variações infinitas permitidas por complexos arranjos harmônicos e pouco melódicos , isso nem sempre é percebido.
O baterista é a força, numa banda-rock, e se existe um corpo no quarteto, quinteto (teclado ou sax), ele é o batimento
que joga o tempo à frente -- ou atrasa, coisa não incomum --
tudo que acontece ao redor. Já fiz isso de sacanagem nos ensaios
só pra testar a hipótese. Acelerar insuportavelmente
ou atrasar, pra ver a irritação animal do grupo
O vocal é a humanização de tudo, no rock não há possibilidade
de música sem vocal. Os instrumentais acabam sendo
mera punheta exibicionista (o que não ocorre no jazz,
por outras razões, quando o jazz em vez de usar a voz
como voz, ele usa o espaço possível para uma outra fala).
Rock só é rock mesmo quando tem alguém cuspindo
as tripas, literalmente como no grito de uma janis
ou na suavidade metafórica de uma Beth Gibbons.
O baixo, numa banda de rock, tão importante e tantas
vezes pouco conhecido e reconhecido por ouvidos toscos
que permeiam a contemporaneidade, é elemento de ligação.
Rítmico e ao mesmo tempo melódico, ele é quem faz no rock
o meio de campo entre bateria e guitarra ou outras vozes
como sopros, piano, se houver
Na bateria não há cerebração mais, dominante
Na marcação rítmica, uma certa liberdade
permite quase tudo ,desde que não
se perca o compasso. Instintiva e orgânica, mais tribal
que cerebral, uma aranha e suas muitas patas
O peito que explode, em movimento
de pélvis, barriga e coração no começo
Depois é tudo braço e muito ombro, giro externo
Não há modulação entre o braço e o som, daí
que o resultado em qualidade sonora e sua duração de tambores vibrando depende demais do corpo
Para muito som, muito esforço, não tem meio termo
Aos mestres, com carinho
O corpo de John Bonham, emotivo, ébrio, pesado e folclórico. Extremamente intuitivo e criativo. Bumbo fortíssimo, coração . Uma escolha consciente e belíssima de timbres, até hoje raramente superada.Poucos pratos, tamanhos e pesos grandes, muita explosão nos golpes . Uma força descomunal nas apresentações ao vivo, como no solo famoso de Moby Dick, onde joga as baquetas fora no meio da música e continua na mão.
O corpo de Neil Peart, metódico, ágil, leve e paciente, estudioso, herança de Buddy Rich e das jazzband anos 30. Bumbo médio peso, pedais duplos e muita velocidade. Mais tons que bumbo. Muitas cores e temperaturas nas tonalidades, profundidade e tamanhos dos tons. Uma infinidade de pratos dos mais variados timbres. Talento para desenvolvedor de equipamentos. Sua fina sensibilidade serviu de parâmetro para muitas evoluções na fabricação de instrumentos percussivos. Toques levíssimos das mãos (inusitado para um baterista de rock) e de uma precisão absurda.
O corpo de Robertinho Silva e Naná Vasconcelos. Cores e tons do Brasil. Os sons extremamente ricos em ritmos do Brasil. Do Maracatu ao Frevo, do Samba ao som das ruas. Pesquisa de folclore, periferias e comunidades ribeirinhas. Cancioneiro popular. Bahia, negritude. Etnias. Worldmusic. A rua, a favela, a história marginal de um povo ainda por se fazer no mundo. Estudos de peças nacionais, berimbau, cuíca, chocalhos, pandeiro (Naná), e melhoramento de peças de madeira nativa na construção (Robertinho, edorsee da Oddery durante muitos anos). Muito bongô, Djembe e poucos pratos nos sets. "Essa coisa de muito prato é coisa de gringo " (Robertinho). O calor e a identidade dos trabalhos étnicos sendo incorporados por vários músicos de renome mundial
Dave Weckl, surreal. Estudo das escolas de ritmos worldmusic e fusion, terceiro estágio de evolução da bateria. Partitura e estudos de técnica para alcançar a mistura de ritmos e as subdivisões de tempo que só são possíveis no jazz e na música experimental . Muitas faixas gravadas por Weckl têm estrutura composta por compassos alternados. Praticamente um dos criadores do Fusion , pela grande capacidade de pesquisa e mistura de escolas e ritmos diferentes, tendo o jazz como ponto de partida.
Portnoy. Enquanto Weckl tornou-se a divindade do Jazz-fusion contemporâneo, Portnoy fez o mesmo no rock. Camaleão, absorvendo histórias e tendências de tudo que o antecedeu ,traz um pouco do melhor de tudo na pegada. Tocou com todo mundo, já. Traz no DNA o peso e a criatividade ébria de Bonham, o perfeccionismo, a leveza na execução perfeita de Peart (com quem tem muitas semelhancas, principalmente técnica virtuosa de caixa) e o virtuosismo estudioso e curioso pesquisador de Weckl. Mistura fundamentos de vários estilos, incorpora metal e jazz mais pop dependendo de cada novo trabalho. Faz dessa capacidade e flexibilidade (necessidade?) de não se deter num único estilo uma nova abertura de inteligência multiplicadora de inspiração.
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O maior instrumento percussivo é o coração. Um bumbo-surdo contínuo, forte marretando por dentro. Quando ainda muito novo comecei a lidar com percussão, passei a perceber melhor os batimentos cardíacos, principalmente à noite, antes de dormir.
Surdo na noite, tum-tum tum-tum forte compassado, um compasso do qual depende a vida se o ritmo se mantém. Tocar uma música na qual se realiza é algo de transcendência e êxtase para qualquer músico , mas também corporal para um baterista. Não à toa que o album Pulse, tocado nos shows do Pink Floyd, era algo angustiante para quem assistiu ao vivo. Durante alguns minutos, antes da banda performar, aquele pulso surdo em hiper bass , varando o estádio inteiro, em pouco tempo os ouvintes tinham a impressão nítida de que seu próprio pulso seguia o batido do bumbo gigante. Tum-tum, tum-tum. Responsabilidade enorme de quem maneja tambores para acelerar, diminuir ou fazer cessar a força no peito de quem ouve por morte súbita.
A mensagem subliminar dos tambores é o ser primitivo tocando
seus troncos de madeira com um par de ossos
para que seja ouvido muito além da via láctea. Uma vez iniciadas, essas vibrações rítmicas não cessam até que gerem um efeito em correspondente físico no campo atingido
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Coisa completamente diferente é a experiência do canto
Quando baixa uma criatura qualquer, uma síncope, um santo
um tipo ancestral de demônio, e a visão se apaga. Microfone na mão, público
em frente, nada mais existe
De tudo só fica o som, e uma melodia é que conduz o vivo, aumentando os outros sentidos enquanto segrega a visão
Instrumentista desde muito novo, mas acuado quando, por mero acidente, tive que cantar num palco pela primeira vez oficialmente, já bem adulto e à frente de uma banda de marmanjos. Só aí pude entender por que alguns artistas viscerais como Bethânia e outros gostavam de estar descalços nos shows. Fora a beleza universal e contagiante de uma mulher andando descalço num tablado, há uma coisa-Terra ali, uma liga e junção de pólos como se nos perpassasse uma corrente que não pode -' nem deve -- ser contida. Na voz, o que canta é o instrumento.
O fluxo agora vai, elétrico, dos pés à cabeça, um certo frio inicial na barriga, mas com
uma certa anestesia também, que vem logo a seguir-- quando preferencialmente não se está muito chapado na frente de um Karaokê afogando as mágoas, hipótese em que vale tudo --, posto que o exagero aqui, para menos ou para mais
é muito mais notado que na guitarra, e não é nem
de longe o exagero até certo ponto natural da bateria
Controle e capacidade de se ouvir é sempre mais
importante do que potência ou técnica pura
A voz é o instrumento mais comovente
De todos os instrumentos, o mais intuitivo e singular
Guitarras, baterias, sopros, cordas, podem soar mais
ou menos iguais, dependendo da arte, mas a voz será
sempre única, e assim revela muito do artista em sua fragilidade e força
Muitas vezes é a beleza-resultado, aquilo que se põe no lugar
especial, para cujo preparo e expectativa todos os demais
instrumentos se esforçaram para criar
O mecanismo mais presente na indústria de instrumentos contemporânea é a individualização (customização) do timbre. Paga-se caro para não soar igual. Um pedal, uma madeira, umas cordas exóticas, cada músico busca soar no instrumento sua própria voz. E nem sempre consegue. A voz já nasce pronta, e mesmo trabalhada, seu timbre será sempre único.
O genial e intuitivo Hermeto dedicou boa parte da sua imensa obra em perseguir e revelar esses timbres únicos. De pessoas, de objetos sonoros. Na sua percepção rica, cada timbre induz sua própria musicalidade.
Para ouvir um povo, uma época, um determinado pedaço
perdido de tempo, talvez o conjunto dos instrumentos
diga muito mais sobre contexto, possibilidades e vias
Mas o canto é que mais diz da forma como cada um vive , sua existência, seus perigos
e doces remédios, a forma como o mundo particularmente
se manifesta para si, seus prazeres e desafios, e nisso revela
muito mais pelo inafastável timbre, que define esta voz diferente daquela e de uma terceira, e pela fragilidade nua da exposição de uma outra coisa que vem direto de dentro assim como o sopro de ar a quem respira , o testemunho mais forte mostrando a alguém que ouve -- às vezes décadas depois --
do que vive e como vive aquele que vive
e a emoção de se estar vivo.
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Artes como a dança e o teatro dependem do corpo para sua existência. Um corpo variável, mutante, que assume diversas configurações na história, desde o princípio, posto que o movimento físico e a representação sempre estiveram agarrados à existência humana de longa data.
Mas, na música, isso se dá de uma forma diversa. Não necessariamente o "corpo físico", como tão referenciado pelas demais, mas há também um outro corpo formado a partir dos sons, nessa ou naquela direção. Não afastada a presença forte de músculos, dentes, ossos e nervos além do algo mais que uns chamam alma ,outros mente, mas ainda uma outra coisa difícil de se nomear.
Platão desconfiava das artes, de forma geral, quando concebeu "A República". Logo ele, pai de tudo e um filósofo-poeta como poucos, e como grego afeito à beleza como objeto teórico e de vida, queria expulsar músicos e poetas do seu Estado ideal. Não porque não gostasse da poesia ou música, por óbvio, mas por compreender profundamente o poder não controlável oriundo daí. Há um mecanismo em algum lugar nessa junção físico-além-do-meramente-físico que impregna o som e o movimento musical.
Usado desde que se tem notícia em primeira mão para contato com a divindade, o além, o preparo para se falar com os deuses, a música foi extensamente utilizada nos rituais do deus Dionísio, já a partir do séc X A.C., conforme noticia Homero e os achados arqueológicos confirmam.
Platão afasta a poesia e a música, privilegiando a matemática, a educação física do corpo dentro de um certo conceito de disciplina mais afeito ao modo militar (influência do bem-sucedido modelo Espartano). Mas faz isso por medo. A música e o corpo têm uma relação de magia e mistério desde o início dos tempos, e apesar de tanto caminho na estrada, hoje ainda algo pouco percebido e explorado num sentido artístico. Talvez mais explorado num sentido mercadológico, por mentes antenadas que maliciosamente perceberam essa junção e utilizam seu mecanismo poderoso como indução de consumo e não como potencial de expansão enquanto arte.
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