A larga experiência do humano em um mundo estreito

 




Leituras de 2020. Eu que sempre escrevi proporcionalmente mais poesia e sempre fui mais leitor de prosa, ano passado me embrenhei novamente na poesia, como leitor. O mais curioso é que não foi intencional, apenas leituras intuitivas, e só fui me dar conta dessa estatística ao fazer o levantamento dos livros do período. 

Alguns são releituras e contato com novas traduções de coisas lidas ainda na faculdade, outros estão faltando porque já foram pra doação, outros-lá não são exatamente de literatura ou não listei porque parei na metade do texto.  (Agora sou desses que não costumam ler até o final tudo que lhes cai nas mãos. Coisas da idade e de uma forma particular de dosar o tempo).

Surpreso com a constatação, de repente imagino que não é mero acaso, essa reaproximação com a poesia. Algo de inconsciente aí. Independente de estilo, temática e fluência, a poiesis traz em si como potência a intenção da descoberta e exploração de mundos, vai mais fundo naquilo em que a prosa eventualmente parece temer. E em mim alguma coisa por dentro, encurralada por um mundo exterior excepcionalmente hostil, tava buscando esse um-o-quê que tem na poesia e rareia na prosa. 

Resultado desafiador: esse um-o-quê não é a resposta como lugar e nem existe como objeto. Mas está lá, sensível como movimento. Eu precisava me lembrar. Ele é justamente o que constitui o processo da criação poética. Quando falamos de versos, o não-chegar é talvez a característica que mais nos restitui ao humano que havia se perdido no mundo máquina, e abre portas para um processo de construção, mais que a um dado resultado.

O bom escritor, na prosa, terá contado com riqueza uma ótima história. O poeta não tem a esperança desse consolo, porque sua obra não pressupõe narrativas. Cada poema é universo (aberto ou fechado) em si mesmo. Se alcançar seu melhor resultado, o poeta terá abrido portas e ainda assim suportado alguma frustração de não alcançar a totalidade . Isso o o fará continuar, infatigável, se for forte. Ou quem sabe alegre e renovado se compreender como os trágicos gregos algo do sentido dionisiaco da arte poética: a totalidade mesma não existe, é uma abstração e o grande feito foi ter realizado um verso, que seja.

O maior temor dos prosadores sendo a perda do controle, o controle em algum grau instilando o sentido. Ora, e se a vida mesma, como sempre lembrou Camus, é de si algo sem sentido? Sua raiz assim aparecendo mais ao nu do dia com uma crise gigantesca que afeta de uma forma ou de outra toda a humanidade, fazendo mesmo se questionar a realidade de sua existência enquanto coisa ou, no mínimo, seus fictícios limites ?

Emulando a vida, nesse particular, onde mais o sentido é  tão espezinhado, questionado, duvidado, massacrado, repartido, extinto e recriado como nas artes, de forma geral, e na poesia com maior propriedade? 

Sim, porque nas duas outras formas clássicas de pensar o mundo como causa e efeito, a religião e a ciência, o sentido é estabelecido de diferentes formas.

A religião estabelece o sentido na vida em ela poder vir a ser algo por causa do supra-terreno. Sua legitimidade e razão de ser não está em si, mas na criação e administração dos favores da divindade. 

A ciência,, por sua vez, estabelece o sentido na materialidade da razão. Em algum lugar na história, isso passa a ser a única verdade. Sob o domínio lógico e causal empiricamente exercido sobre parte dos fenômenos de forma funcional, deixa de lado as razões espirituais  e traz de volta ao mundo material, ao avocar a partir de algum momento histórico, a maternidade do sentido da vida: um sentido funcional. A natureza, aqui, como no dizer de Galileu, é alfabeto escrito por caracteres geométricos. Basta saber ler. E Déscartes fez bem a lição ao criar a famosa tabela de relações. No mundo científico, a pergunta metafísica sobre "o que é", dá lugar definitivamente ao "como funciona".

A terceira via é a abordagem estética, onde a arte é que vai lidar com a necessidade de superar a face estéril do mundo, seja o mundo iludido como no viés espiritual e regrado por seus valores morais que diminuem a potência da vida, ou no mundo desértico como o regido pelo lucro, produtividade e materialidade das técnicas em última instância garantidas pela materialidade científica.

Seja como for, a arte não repete a vida, mas em alguns casos a antecipa, sintetiza, afirma ou nega. É o único saber e atitude humana que cria valores, e a partir desses valores, a única chance da vida se afirmar por si mesma enquanto sentido, sem precisar de um Deus garantidor ou da obsessiva e mordaz busca pela tal verdade científica. E, na literatura, de modo geral, é onde essa batalha silenciosa mais se mostra.

É nesse aspecto que a prosa é a narrativa do experienciado humano, mesmo quando envereda pelo mais corajoso imaginário. Mas há uma certa amálgama do texto-autor com o leitor que em dado momento aprisiona o texto .Todo prosador por melhor que seja, perde um pouco a linha, sente no arrepio da espinha quando imagina não poder conduzir o leitor ao seu modo. 

O poeta, por sua vez, não se aprisiona nessa perspectiva e meio que taca fogo pra ficar admirando a fogueira de longe. Sentido? Se houver, que seja um achado. Que o leitor lute, e construa, como afirmava Barthes, seus próprios caminhos. E é dessa espécie de crueldade necessária do criador com criatura (sem definirmos de antemão quem é um e quem é outro) que se abrem espaços possíveis para o preenchimento dos naturais abismos.

 E isso surge do processo criativo, independente de sua forma e resultado. Se soprando o rosto suado no calor, se botando mais sal na aberta ferida. Seja na fruição hedonista, no aprofundamento dos medos, na perda de direção simulando a própria vida, e principalmente na criação do novo sem se importar muito com as consequências.

Em miúdos: a grande empatia dos poetas sobre mim, pela situação corajosa de se botarem ao mundo como seres de busca, enquanto a esmagadora presença das narrativas quase sempre exibe o resultado como um fim em si mesmo.

Em um mundo ruindo vertiginosamente por uma de suas maiores crises, a poesia ameaça ser uma forma mais poderosa de concentração de forças ao mesmo tempo primitivas e originais. E foi tentando me lembrar das visões fundadoras de mundos, ao descobrir novas linhas e repassar as experiências estéticas que eu tive nessa vida, que retornei aos fundamentos em busca de referências individuais. 

Mais do que esperar histórias vividas por personagems construídas segundo tais e quais normas , recomendações, estilos e técnicas, coisa que sempre fiz, retornou a mim a pergunta filosófica básica, feita ao artista: mais do que nunca, ameaça afundar a porra toda, amigo, e se não afundar de vez, o paradoxo é que ,ainda assim, talvez o problema maior de todos ainda não seja resolvido e continue perpetuando misérias. O sistema levou um soco no olho, mas se recupera bem e logo sairá renovado. Máquinas não sentem dor nem adoecem. Daí qual seria sua última palavra sobre a vida? Ajudar a botar no chão de vez, mesmo compreendendo de antemão a possibilidade inerente do caos no caminho ou reformar o mundo pra uns poucos continuarem vendo a luz? Ou ainda, na leitura de outras vistas, caberia uma terceira experiência, de síntese, capaz de aproveitar o vivido trágico como aprendizado e construção de uma realidade alternativa maior?

O fato é que, em 2020, enquanto tudo ruía em terremotos e barulhos, foi também para mim o ano em que redescobri a poesia. E com ela, a memória da beleza de se estar vivo.


O poema como processo e movimento, como prazer, dor e potência


                                            Vida, enfim...