A segunda vista
Segunda vez a caminho da capital. Parada estratégica em Vila Velha eu ia subindo e ralando joelho no Convento da Penha em véspera de feriado. Aquelas pedras lisas. Aquelas pedras de ponta. Não esqueço. E quando por acaso esqueço, meu joelho sempre me lembra. Enfim, desconfiado como o cão eu não era exatamente o modelo do peregrino em penitência já na idade de 15. As fichas que me enfiaram na cabeça durante o catecismo anos atrás então começavam a cair tardiamente e a sensação esquisita de que me contaram uma história da carochinha não me deixava o espírito. Em casa já passava batido na porta da igreja dia de domingo e ia direto pra rua tomar cerveja e ouvir conversa fiada dos amigos. Amparado por algumas irmãs solidárias e discretas, logo rolou a fofoca que eu andava fugindo das missas como o capeta correndo da cruz para desespero de minha mãe que me ameaçava de lá com algum castigo e uma possível desmesada. Ela me lembrava sempre do desgosto de quando tentei fugir da primeira comunhão mas de alguma forma o padre organizou uma comitiva e me foram buscar. Ainda não sabia o que era herege. Fui.
Súbito pairava eu ali em pleno convento, o templo máximo dos católicos na terra com nome de santo. Eu ainda não era o penitente padrão da semana santa, mas achava bonita a festa toda. Muitas velas coloridas, procissão se formando forte, cantorias bonitas em tons melancólicos e nisso meio que íamos sendo levados na turba sem saber exatamente onde ia dar. Nós, no meio da procissão. Olhei pra cara de meu amigo Edgar e ele tava rindo. Mas um riso respeitoso de surpresa. A gente sem saber como voltar ou sair. Toca. A gente no meio do movimento vinha um arrepio de fé que principiava na barriga e ia subindo espinha afora. Cheguei a jurar que seria um melhor cristão dali em diante. Deu vontade de chorar, na hora. Daquelas coisas que perigam derrubar qualquer aprendiz de ateu num descuido. Faltava saber que minha briga maior seria mesmo com os homens, em vida, e nem tanto com Deus. Uma quarta dessas perto de feriado, sol na cabeça, céu azul de doer, bastante gente pagando promessa. Lentamente íamos caminhando até o topo com a multidão.
Dessa vez era só de passagem por Vitória. Campeonato de Surf em Jacaraípe e eu mais meu amigo Edgar surfista, nascido e criado naquele balneário, embarcando de carona no coletivo da EAFA que ia levar uma turma em passeio religioso e pagação de promessa da semana santa. Íamos ficar na casa dos pais dele. Eu não surfava e em segredo mal sabia nadar, mas tirava onda. Acompanhava Edgar que era meu melhor amigo e uma fera na coisa toda, e aos poucos me punha a par daquela linguagem própria que somente as criaturas lá amigos dele de Jacaraípe é que entendiam. Eu ficava ouvindo a conversa, quando vinham visitar Edgar na EAFA. Ora eram duzentas palavras diferentes para dizer as cores e o estado do mar. Ora era meia dúzia de palavras-curinga que serviam pra designar qualquer outra coisa contexto ou ação nessa vida. E funcionava, essa matemática. Como acontece com os Esquimós ao designarem cem tonalidades de branco e cem variações de textura para a neve e o gelo aonde nós comumente enxergamos apenas branco. Uma fala que atribuía maior valor, escuta e o melhor olhar - a plêiade de sentidos -- ao universo de potência, beleza e vida representado pelo mar, o centro do seu mundo, e de outra mão era também pela língua que descomplicavam numa vida mais simples todos os aspectos que consideravam carregar com excesso de peso a existência. Somado isso às regras quase budistas de acordar e dormir muito cedo todo dia, o gosto pela alimentação natural, os exercicios físicos diários e muito sol e sal pra temperar a pele, parece que não lhes faltava mais nada.
Subindo o morro no cortejo. As coisas da fé, que a gente não bem entende mas sente quando está na onda. Junto com a gente, subindo a ladeira do convento, a dúzia de arruaceiros colegas da Escola Técnica, todos num indefectível bem-comportado durante a viagem do interior para a capital, e agora ali, demonstrando a olhos vistos uma contrição digna de um São Francisco, nós dois desconfiados daquela missa. Dentro do convento, depois do tempo acalorado e forçado da subida, foi só chegar em uma das alas preparadas com a figura divina e dos santos sob um altar que Paulista e Baiano, dois destacados personagens do terceiro ano da adrenalina se jogaram de repente aos pés do ícone em declarada contrição. Rezavam com sentimento, beijavam a batina do santo, pediam bênçãos para nós, acompanhantes dessa inusitada comitiva. Os diretores, professores e demais estudantes que nos acompanhavam ficaram comovidos com toda aquela devoção.
Da primeira vez que vi Vitória, não a vi. Apenas suspeitei do que pudesse ser. Pelo cheiro, percebi a proximidade do cais do porto depois do mar de resvalo pela ponte de ferro, a velharia do Palácio, os verdes úmidos do Parque Moscoso e suas antigas construções ao redor. Os incensos, couros e animais, os santos empalhados e o fumo da Vila Rubim. Todo aquele barulho. Portanto, o que se descortinava para mim no súbito após um descuido onde fui parar no mirante do Convento me veio como um choque. Fui indo com os outros, até dar na beirada, tinha ouvido falar da vista mas estava focado em outra história. Senti vertigem na hora, achei que ia cair lá de cima, ou morrer, ou tudo junto misturado no meio de tanto vento.
Deus! que coisa linda. Não tinha mais som, ali. Só o zumbido do vento nos ouvidos, bem perto do beiral. No alto do mundo eu via como tudo era possível, um sopro no olho de tamanha beleza, tela de tv formato widescreen bem na minha fuça e eu tonto e mais tonto, procurava um lugar pra me segurar, um corrimão, uma pilastra, uma corda sei lá. O sol fustigava o verde todo e o verde não se rendia, resistia em seus brios brilhosos na tarde qualquer de uma quarta limpa de abril, o azul-anil sem qualquer nuvem curiosa limpando quilômetros e mais quilômetros de vista para qualquer direção que se olhasse. Eu não sabia o nome de nada, nem sabia medir ou dizer de onde saía a visão nem para onde ia. Alguém ali perto explicava para outro alguém, e eu fiquei tentando roubar a conversa. As pontes, os morros, as praias. Aqueles zilhões de espelhos na água, nos prédios, as pequenas carapinhas dos morros distantes, fumaça nas chaminés, navios gigantes chegando pelo lado direito, dezenas deles parados para entrar na baía. Sabia o nome de nada, sabia de onde vinha nem pra onde ia nada, só achei tudo muito grande e povoado de vida. Voltava as costas praquela visão e retomava o cinza do lado de cá, hora de descer morro e retomar a estrada.
No caminho-já estávamos, Edgar surfista e eu. Bora paramos no terminal e pegamos outro ônibus pra Jacaraípe. Deixamos para trás os colegas no ônibus da escola, numa animação que só vendo. A gente se engana com as pessoas, veja só, eram baderneiros mas tinham um lado espiritual, nunca vi gostar tanto de rezar. Iam aproveitar o passeio na cidade e pernoitar pra voltar no dia seguinte. Foi só na outra semana , depois do feriadão, que ficamos sabendo da balada nas boates e que eles já vieram preparados e com garrafa de vodca, fanta laranja e pinga malocadas nas mochilas. Deu até inquérito acadêmico e por causa disso não haveria daí em diante mais outras viagens de penitência na semana santa com ônibus da escola, mas no fim ficou tudo bem.
O esporte mais bonito do mundo. Em Jacaraípe, monte de feras pegando onda. A praia, o sol, o mar bravo e a areia grossa do balneário, diferente de Marataízes, minha praia desde criança. A turma toda lá , esperando. Uma gente diferente, outra forma de sentir o mundo. As garotas mais lindas. Dava até vontade de virar surfista. Aos poucos fui entendendo o que falavam em sua dançante língua lá só-deles.
Duzentas palavras para o estado do mar. Meia dúzia para o resto das situações da vida. E funcionava muito bem.