A terceira vista
Quando voltei a Vitória anos depois, a coisa era bem outra. A cidade também crescera nesses dez anos, desde a primeira vez. O cheiro da maresia dominava tudo, eu morava numa torre cem metros acima do solo e sentia na pele o cheiro úmido e acre desta capital lá daquelas alturas. Era ônibus pra tudo, não tinha nem como sair de casa sem precisar. Os lugares eram sempre distantes. Estudava no Centro, morava na Praia do Suá, filava bóia no R.U. em Goiabeiras e me enfiava pelas tardes já na Biblioteca da Ufes, meu refúgio do mundo. Aquela imensidão de livros. A lateral envidraçada do segundo andar lado oeste e aquele pôr-do-sol mais bonito do mundo, com urubus dando seu show todas as tardes, tendo às costas o paredão das montanhas capixabas.
Dessa vez ao menos eu sabia por que vinha à capital. Não era só visita nem tinha ninguém morrendo. Evinha maior e quase mais forte, eu e mais dois. República a se formar. Três cabeças, três sentenças que depois chegou mais um e viramos os quatro jovens cavaleiros do Apocalipse. Inacreditável como pessoas podem ser amigos e conviver bastante próximos por largas eras sem se dar conta de quem e do que são. Tudo muda quando se coabita. E nem sempre pra melhor. Quase todo dia era motivo pra discussão, porrada, cara feia ou tudo junto misturado. Homem é uma raça sem solução. E a curiosidade que ficava pra depois: durante os intervalos desse confinamento, prévia dos reality shows modernos, voltávamos a ser os melhores amigos, de morrer de saudade quando longe. Depois das férias, retornando à toca, a porrada comia de novo.
Mas enquanto dentro de casa, era essa zorra. Quem vai lavar prato, quem vai arrumar casa, quem vai fazer comida, quem vai fazer compra, o iogurte na geladeira é meu ninguém pega, o bife eu que fiz, a salada se quiser vai no mercado, quem foi o filadaputa que bebeu minha cerveja, me arruma um cigarro pelamordedeus , que hoje é domingo a noite e eu não tenho como ir lá agora comprar, muda essa porra de canal, inferno, tá passando o jogo agora e você quer assistir "sexta máxima" no canal do Sílvio Santos.
Mas fora, era tudo às mil maravilhas, festas o tempo inteiro, bebida até as tripas reclamarem, cigarro até saltar os olhos pra fora, tanta garota que ninguém dava conta , táticas e mais táticas de aproximação, conquista dos domínios e corpos, táticas de sinalizar território republicano ocupado e "não bata na porta", e depois disso tudo no outro dia, cedo, de vez em quando sem dormir, seguir pro cursinho lá na putaqueopariu, o ônibus jogando de um lado pro outro na Curva do Saldanha, as bebidas, os cigarros e a praga dos lança-perfumes cobrando seu preço e a vontade de vomitar tudo que não se comeu pelo caminho. Precisavamos saber que era importante comer algo antes de beber. Ninguém avisava.
De segunda a quinta estudando feito condenado. Dezesseis matérias pra vestibular. Na quinta a noite, o castelo desmoronava. Aulas de trigonometria, biologia e álgebra nas sextas pela manhã depois de noites de quinta viradas. O que restou do cérebro ia sendo consumido por uma espécie de delírio entre fisiologia das amebas misturado com cadeias de carbono em anéis aromáticos e gritos do Ipiranga com um Dom Pedro boêmio na voz do melhor professor de História do Brasil que este mundo já viu. Professor querido que mudou em mim a vontade original de ser alguma coisa para me transformar em outra.