A Ilha

 Resultado de imagem para a terceira ponte, foto


     Vitória é linda, esta cidade. E muito mais bonita agora do que há vinte anos, quando a abandonei pela última vez. O cheiro de mar que respinga em toda a orla. A vista da  capital pelo grande arco da Terceira Ponte. Os navios gigantes à direita nem tão distantes esperando para entrar no porto. O mar refulgindo no azul verdão todos os espelhos do sol da tarde. De cima do morro, a vista de “lá para cá”, aquela famosa mirada de Vila Velha para Vitória, do alto do Convento da Penha, primeira vez que vi a capital, ainda menino . É como se, na intenção de nos enxergarmos de verdade, precisássemos de vez em quando sair um pouco de nós? É. Cidade é assim, coisa meio orgânica, como corpo. Um olhar de lá que nos ressitua, ao dizer o que nós ainda não vimos. 

Olhos que vão viajando soltos, leves e longos pegando desde a entrada à esquerda da baía, chegando à ilha numa bela tarde de sol pela ponte de ferro Florentino Avidos e  deslizando a visão suavemente à direita pela estreita beira-mar aparada ao fundo pelos diversos morros para finalizar lá na frente no Mestre Álvaro e seu topete coberto de nuvens ralas a maior parte do tempo. À Frente, na mesma visão do Convento, a orla marítima delineando as praias até a  Ilha do Boi. Barquinhos a perder de vista, saindo da marina. Povo na praia, formiguinhas coloridas em areias e barzinhos lotados na Curva da Jurema. 


No caminho curto e pleno de histórias antigas, saindo da rodoviária até chegar ao final de Camburi, estende-se a cidade. A via portuária central da Codesa, os grandes prédios de comércio e repartições públicas do centro da cidade que, tirando uma repintura ou outra, estão também presentes naquelas fotos em preto-e-branco que de vez em quando nos surgem pelo caminho. Tempos de uma metrópole em ebulição, o movimento histórico e o comércio ativo da  ilha emergente. Histórico, o Parque Moscoso reconhecido ao longe pela ponta das Palmeiras Imperiais.  Centro edificado em pouco mais de cem anos, hoje com parte de sua arquitetura antiga e as ruas estreitas que fazem os prédios parecerem muito maiores do que são na realidade.


No alto, na visão dos pedestres com pescoço duro olhando pra cima, o fundo raro do céu azul no percurso da Avenida Jerônimo Monteiro, disputado sofregamente pelos topos de edifícios meio abandonados e aos poucos reapropriados pelo movimento de revalorização desse espaço, -- ainda que meio devagar nos dias de hoje --, talvez por falta de incentivo das políticas públicas.

As luzes noturnas do Palácio Anchieta, lojas coloridas e semáforos em noite de natal com chuva por detrás dos vidros embaçados dos automóveis e ônibus. Chuva, na Grande Vitória, é sempre um sufoco para o trânsito e o terror dos bairros periféricos , mas se não for daquelas de causar enchente, não deixa de ter sua beleza. Uma ilha, afinal, cujo inconsciente mítico ancestral parece querer retornar sempre ao seu estado flutuante sobre a baía. Ilha é sempre o protesto da dissolução contra o continente que tenta lhe impor grades. O som silencioso das águas ao redor, enchendo e vazando.

 O sonho contínuo do centro revitalizado e a preservação da estética clássica da Praça Costa Pereira, com sua nobre vizinhança cultural que tem nada menos do que o Teatro Carlos Gomes e o imponente Sesc Glória, cuja reforma  marcou um novo jeito de se respirar cultura nesta cidade. Prova disso é o notório reflorescimento das artes cênicas, maravilha principalmente para mim e para minha geração, que conhecemos a capital numa época onde o teatro definhava, melancolicamente. O teatro é sempre essa coisa que toma a gente pelo peito, a arte mais antiga, talvez a mais nobre, no mínimo a arte mais umbilical desde os mais remotos tempos. Sim, porque afinal de contas ser humano começa e termina com representar papéis, ora cômicos, ora trágicos, como dizia Artaud somos atores-autores e fazemos isso desde que ainda estávamos nas cavernas. 


Seguindo pela Rua Sete, tem pé-sujo, tem bar da moda, opção de gastronomia e café, além dos botecos descolados e a moçada mais antenada da capital, que, de uns tempos pra cá, vem aos poucos retornando à origem da cultura e  boemia antiga e construindo e reabitando os espaços progressivamente, de uma forma rica e colorida. Moçada antenada politicamente, movimento cultural de peso, cada vez em maior contraste com os bairros residenciais mais ao norte, cuja trágica valorização imobiliária -- carreada principalmente por especulação de meia dúzia de capitalistas do ramo, associada à maldição dos royalties do petróleo recém-descoberto e que sempre afundam tudo ao redor de onde põem suas garras -- aos poucos foi construindo bolhas de habitação e formatação político-urbana de perfil extremamente conservador, como tem sido visto reiteradamente nas eleições tanto municipais como presidenciais, a cada dois anos.


Na tocada leve pela beira-mar, tem toda a Enseada do Suá com suas mega-construções recentes e seus prédios luxuosos, um metro quadrado tão inflacionado que dá medo ao Leblon e aos Jardins paulistas. Tem também a Praça dos Namorados, tudo contrastando com os morros costeiros no aparador verde e pedregoso colado às suas costas. Tudo mais brilhoso em dias de pós-chuva com sol espelhando. Morros que não são apenas amontoados de pedras, mato e violência, como tantas vezes tratados e maltratados pela ambígua mídia local ou mal reconhecidos pela comunidade mais afastada e encastelada nos bairros residenciais em seus altos prédios e praças vigiadas, mas uma civilização própria que abriga boa parte do espírito histórico e das almas que movimentam e dão vida a toda essa  urbe e ainda respondem em grande parte por sua gênese cultural. Berço do samba que ainda resiste em terras capixabas, e hoje estágio avançado da linguagem que renova o som pela presença forte do Rap e Hip Hop que certamente darão muitos frutos.

Seguindo mais ao longe em sentido norte, surge a respiração longa de Camburi, a maior praia em extensão, com seu hiato aberto sobre a orla surgido em tempos para desafogar o apertado espaço do Centro até os bairros residenciais, à medida em que a história do estado e da cidade cresciam. Uma história de expansão que começa bela logo na saída da ponte, largando Praia do Canto e margeando os bairros de Jardim da Penha, Mata da Praia, Bairro República e Jardim Camburi, para terminar de forma insólita com o malpensado pontal da siderurgia.  Coisa que merece capítulo próprio, o mesmo pontal da siderurgia que será sempre uma eterna contradição por sua origem e propósitos. Enquanto, por um lado, traz inegavelmente importantes dividendos para o estado, por sua posição no mercado de polo exportador de grãos e metais, por outro faz com que todos paguemos um alto preço por nos sentirmos roubados em espaço e qualidade de vida por sua simples presença no local onde está. Sim, porque tudo aquilo ocupa um espaço nobre que hipoteticamente seria de lazer e residencial aqui na restrita área da capital. Alguém imagina um pontal de Siderurgia em Copacabana? Pois é... A estética do pontal é feia, datada, invasiva, e a poluição que gera nos faz pensar o tempo inteiro se o custo x benefício de sua instalação realmente compensou para nós, contribuintes e habitantes da cidade. Tudo bem que, durante o governo ditatorial que implantou o polo, nenhum cidadão comum foi consultado para dizer o que achava... coisa das imposições e megalomania típicas do período.

A bem ver, abrindo mão da prosaica visão bairrista, nostalgia tão comum entre nós, capixabas, a ponta de Camburi, com suas fumegantes e gigantescas chaminés, é na verdade resultado de uma cirurgia forçada e sem anestesia, projeto "Frankestein" feita há tempos por um cirurgião sem noção de conjunto e com uma visão obtusa de futuro pautada exclusivamente em dividendos econômicos, numa época onde por aqui ainda não havia estudos de impacto ambiental e as regras eram impostas verticalmente por um governo e sem a menor chance de discussão com a população (maior interessado).  Obviamente, durante essa cirurgia de risco, não houve a menor prudência ética ou estética com o precioso e delicado organismo que naquele momento estava sob seus cuidados: a cidade.  

É uma praia que não é uma praia, Camburi. E não que não seja bela. É. O problema é que pra ser praia, precisa contar com o mar. Calçadão e areia só, não valem. Um mar aberto, acessível, e com o mínimo de limpeza que permita a alguém mergulhar e não ter que sair dali direto pro hospital. O carreamento de esgoto doméstico ainda sem tratamento satisfatório e a total interdição do pontal mais distante aos moradores, bem como a presença contínua daquela poluição do ar por toneladas de gases e pó de minério,  suas altíssimas  chaminés e fornos fumegando noite afora lembrando o reino de Hades e boa parte do mar continuamente agredida por conta dos resíduos do grande complexo industrial instalado, tudo isso nos faz sentir como se a batalha fosse perdida. Imaginem um personagem que, subitamente dormisse no intervalo entre uma das batalhas brutais no meio da segunda guerra mundial na Europa, acordando somente nesta semana numa noite qualquer de um hotel em plena Praia de Camburi. Ao abrir a janela do quarto de hotel para o mar, essa pessoa acreditaria piamente, pela estética noturna do pontal e a sensação do ar pesado ao redor, que  os nazistas foram os vencedores da segunda grande guerra e de uma hora para outra resolveram implantar a arquitetura do seu maior campo de concentração no complexo do pontal. Dessa forma, como pode ser percebido por qualquer curioso que pretenda conhecer ou tenha, já, passeado uma vez ou outra por dentro do grande complexo industrial que ocupa o lugar, a impressão é que aquela estética melancólica e bruta dos nazistas impôs seu padrão de gosto e funcionalidades para muros, jardinagens e impedimentos à livre movimentação. Daí, cravaram sem piedade as cercas, acenderam suas fogueiras nos alto-fornos e encerraram a comunicação e a continuidade da belíssima praia, poluíram todo o mar que dá a essência da capital para que ninguém pudesse nadar, e nadando, tomassem consciência da beleza natural que os rodeia, e isso os fizesse questionar o porquê de terem que aceitar um monstro dentro da própria barriga. Uns nazistas desterrados que, munidos da mesma gana por lucros e pouco senso humanitário, ecológico, urbanístico, qualquer que seja, poluíram e ainda poluem impunemente todo o mar e o ar que respiramos com toneladas e toneladas diárias de gases e pó de minério, com prejuízo incalculável principalmente na saúde de nossas crianças e idosos.

"Preço do progresso?"  Aquilo que justificava para alguns esse mundo décadas atrás, hoje soaria absurdo.  Há alternativas menos dolorosas, mas é preciso boa vontade e ética, em primeiro lugar. Como a ética, há décadas, anda atrelada aos pulsos de capital, soa ingênuo pensar em mudança de curto prazo. O capital míope que não conhece outro valor além do lucro.  Como soa temerário o paradoxo instilado nas veias capixabas, quando alguém toma coragem de  falar em público sobre a eventual transferência ou erradicação do polo industrial, mas não há como  ignorar o peso e tamanho do problema tão presente. Ossos para o futuro.

Alheio ao seu pior inimigo que mora no pontal da siderurgia logo ali na esquina, o calçadão de Camburi parece ainda resistir muito bem nas manhãs de solpraia, com aquele monte de crianças, idosos, atletas e quiosques sobre a orla. Beleza que, no relance, lembra por um instante as pinturas cariocas: a baía, o calçadão e essas garotas lindas que ainda inspiram tantos poetas, assinando com seus patins voadores, skates e as próprias pernas uma interminável poesia em movimento que ficará para sempre marcada no ar da cidade. Cada uma com sua tinta, sua cor, seu próprio estilo. Longilíneas como a “Reta da Penha”, sinuosas e perigosas como a “Curva do Saldanha” ou ricas e multifacetadas como a “Curva da Jurema”. A capacidade da poesia se fazer mesmo em meio ao caos. Deslizando ilesas em  suas long boards no calçadão imenso ao pôr-do-sol, mostram pelo encanto como é possível habitar e trazer pra si a cidade no peito feito via e mão de tinta numa imensa tela onde se lançam infinitas cores.

Noutro olhar, a luz do final da tarde batendo sobre os prédios mais velhos e as árvores antigas do miolo da Praia do Canto, contrastando tudo que é novo com o antigo, o luxo e o rústico num dos bairros mais bonitos  da capital. Se Praia do Canto ganha na luz da tarde, contraste de rústico e clássico, na luz da manhã é Ilha das Caieiras com suas marinhas e também é Jardim da Penha em suas pracinhas abertas ou na área limítrofe da UFES com a arquitetura pós-moderna da Ponte da Passagem sobre o mangue. Ilha das Caieiras que tem um brilho azul nas marés cheias e uma brisa privilegiada nos começos de tarde do verão, com visão infinita à direita cobrindo e estendendo São Pedro aos limites do céu, rumo ao continente. Ilha das Caieiras que não é só estética, mas também gastronomia e cultura popular de raiz.

Vitória ganha um ar mais do que especial neste mês de agosto, onde a luz muda completamente seu padrão. A luz mais azulada, própria dos meses de abril a julho, depois que o embaçado úmido do verão já foi embora, agora dá lugar aos tons avermelhados e marrons , ferrugem no final de tarde bacana no píer de Iemanjá ou atrás do Shopping Vitória. Vermelhos e ferrugem salpicados de verde escuro como as folhas de castanheiras que caem por todo lado nos bairros, fazendo o terror dos garis e a felicidade de andarilhos, poetas e observadores anônimos que transitam pela praia, pelas ruas. Por que limpar e retirar do chão de praia as folhas de castanheiras? Essas castanheiras que em trinta dias estarão todas nuas, antes de lançar novos brotos nas primeiras chuvas do início de outubro, agora revelam seus galhos secos cuidadosamente assimétricos que apontam ao céu em profusão como as fagulhas de raios invertidos do chão para o firmamento em uma noite tempestuosa, ou figuram contra o pôr-do-dol ou na lua cheia gigante como muitas garras de criaturas sombrias, lembrando aquelas árvores fantasmagóricas dos contos de terror que ouvimos quando crianças. Felicidade, Vitória ter tantas castanheiras. Vida longa!

Não há como falar de Vitória sem a Terceira Ponte. Tornou-se o cartão postal mais relembrado, desde sua criação, há trinta anos. Vista lá do final de Camburi, a beleza do arco gigante. A Terceira Ponte vista de cima, à noite, do alto de um dos prédios da Enseada, com seus carros enfileirados na saída do trabalho, luzes guias esticadas e pulsantes como um grande cordão de brilhantes coloridos e elétricos. A terceira ponte, felicidade e beleza de engenharia e estética que é também cartão postal e tantas vezes uma carta de despedida. Quem é capixaba sabe, sem precisar explicar.


Cidade é organismo vivo, e nós a podemos habitar como órgãos, pulsão e fluxo ou como doenças, a escolha em algum momento terá que ser feita, e é coletiva, precisa consenso, e todas as decisões envolvem resultados às vezes nefastos para grupos, comunidades, bairros inteiros. O consolo em Vitória, se há, é a percepção de que, por mais que ameace, esse peso do pontal de Camburi e outras mazelas parecem não ter ainda acabado com a alma da cidade, que ainda resiste nos espaços potenciais e no espírito otimista dos capixabas. Nossas cidades, no Brasil em geral, sofrem desses danos congênitos. Vão brotando assim, como a vegetação bruta depois das chuvas sobre uma terra queimada ou ressequida, nãó se ouve falar em planejamentos, estratégias ,consequências. Nãó é um problema localizado dos capixabas, é a tônica geral no pais. Sempre os interesses privados especulativos contra o interesse público da urbe. Há resistências e novas consciências se formando aleatoriamente, e isso promete. A essas alturas, ninguém vai atentar contra a atividade econômica em si, mas é necessário que haja maior contrapartida dos grupos empresariais e do governo, gerenciador da máquina toda, em favor de medidas ambientais urgentíssimas e preservação da qualidade de vida na capital, com amplos reflexos sobre as redondezas. 

Como o que é estético nem sempre se mostra ético ou confortável, essas cores bonitas do trânsito noturno sobre a ponte também refletem o inferno caótico do trânsito engarrafado para todo lado, isso é bem verdade, como em boa parte das capitais do país. Imprensada entre o morro e a praia e sem muita superfície útil alternativa para novas vias de tráfego, Vitória sofre geneticamente de um represamento de vias que em breve tornará inviável ao simples cidadão sair de casa no seu tão estimado automóvel.  Reflexo precoce  dessa realidade sobre a logística e reação como forma de incrementar a mobilidade urbana que se insinua a cada dia mais, é a positividade das bicicletas de todas as cores e estilos, que começam a ganhar as ruas em grande quantidade, não só nos fins de semana, como era antes mais comum, mas no dia-a-dia, onde já se percebe os espaços sendo preenchidos como via de transporte meio apaixonada, porque vamos dizer a verdade: quem é aficionado, sabe: bicicleta antes de ser transporte, é antes de mais nada, uma paixão. É possível habitar melhor a ilha com a poesia das duas rodas? a moçada diz que sim. Eu acredito.

Novamente o altíssimo "preço do progresso". Sempre existem alternativas melhores para contornar aquele velho preço alto demais do "progresso", que a cada dia mais pessoas parecem não estar dispostas a continuar pagando impunemente. Uma evolução econômica ou tecnológica, talvez tenha havido em alguns pontos, mas notoriamente na característica ancestral de nosso país isso não retribui em benefícios sociais a proporção daquilo que retira do núcleo da coletividade para sobreviver. Nossas cidades nos explicam. Querem saber quem somos, larguem por um segundo os livros e estendam o olhar sobre os concretos, os espaços, as ausências e os preenchimentos tantas vezes forçados. Passem nos cartórios de imóveis, -- principalmente aqui em nossa capital -- e vejam como os sobrenomes das famílias vão se afunilando até chegar a, no máximo seis, grandes grupos que nos detêm, nos impedem a expansão equitativa por registro, nos monopolizam os espaços e enriquecem cada vez mais com os preços absurdos dos imóveis. Novamente o tal progresso, que por paradoxo em suas demandas urgentes talvez precise recriar novos cidadãos com nova consciência capaz de driblar essa crise --permanente porque estrutural-- com opções mais inteligentemente distribuídas, ecológicas, mais baratas e quem sabe, cidadãs, mesmo que pra isso tenham que aprender a virar o jogo.


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publ orig in "Alma de Cortiça", Crônicas - O Aleph , 08-2015 - reg AVCTORIS, jul 2017