Cansaço
Às vezes é isso mesmo
A vida tem hora que é só
um bando de tristezas amontoadas
e não sabemos em um dado momento
se nós é que somos pequenos
ou o resto é que é muito grande
Dramas, mal-entendidos, comédias
e tragédias. Um verdadeiro pé-no-saco
Ainda mais quando se vê surgir nessa
poeira rota as falas que nada acrescentam
mas queimam por todos os cantos
quando se põem em intenções cáusticas
Uma enorme sequência de erros
e a gente é que disfarça palhaçando
pra não parecer
pirraçando pra não perecer
Há derrotas individuais, tantas
Derrotas coletivas. muitas. Todas doem
Nas individuais, o consolo de saber
que, dos erros todos, os mais tolos
foram meus
e de mais ninguém
Em sentido coletivo, para os que
habitam os rincões do planeta Terra
é se esforçar pelo mérito de não morrer por um dia
seja de fome, dor de barriga, guerra ou de tanto trabalhar nas mais precárias condições
Ser Brasileiro assim, em maiúsculas, hoje
mesmo nadando em meio à nossa riqueza potencial exuberante
é não saber há muito o gosto de qualquer vitória
Aproveitar o travoso amargo dessa hora
A sonante derrota no teatro dos horrores
pra sumir desse mundo e não
portar mais a obrigação psicológica
nem a maldiçaõ da consciência histórica
de ter que falar disso. Deus! é preciso
mudar o disco
Meus gestos, o temperamento e a época
em mim falarão por mim, -- é inevitável
posto que nem todo discurso é verbal
Mas eu, de intencional, doravante me calo
Cansado, confuso, decepcionado
Hà novas forças em campo
pagas para nos aturdir
Não conseguimos uma pauta válida
Não conseguimos mais o contágio do bem
Não conseguimos discurso envolvente
Nem um puto grito de guerra que nos una
para um mero objetivo pontual. Há sempre os guerreiros incansáveis, mas trata-se no fundo de movimento que demanda muito mais peso
E nem de longe trata-se de uma culpa em si
Não é coisa de indivíduo, é operação de sistema
Novas forças poderosas de linguagem e massa
associadas ora à truculência, ora à sofisticação dos meios
que fariam Huxley parecer um menino na escola
Não é o fetichismo de achar num mundo supostamente
animista que tudo o mais é autônomo
mas reconhecer que não temos mais, nós , o povo
(seja em que grau da monótona hierarquia estivermos)
qualquer controle sobre o processo
Temos a força, é claro, a potência de realização
mas não o controle remoto, que está nas mãos
de outros personagens a essas alturas
"Saber perder, saber perder
Saber perder alguma coisa pra sobreviver..."
Dizia a canção de quem conhece bem
Uma derrota como a de ontem
tão maior e acachapante
pelo volume de apoio calado ou berrante
de que eles ainda dispõem dentre "os nossos"
numa época onde a força coletiva
ainda faria tanta diferença
Uma derrota que vem nos ombros de toda tristeza
e que ainda me dói no estômago, como nos dói
aquela outra, inacreditável, de dois anos atrás
Ora, confessemos logo: eu me preparei, nós
nos preparamos para oposição e luta contra
os neoliberais, que contra todas as previsões
vinham crescendo e acumulando vitórias na
última década, culminando com o golpe de 16
Não nos preparamos, é óbvio, para lutar
contra o fascismo. Sequer em um juízo são
achávamos possível para além dos contos
de terror
Uma era trágica, repleta de mortes e desolação
e o contexto beneficiando largamente os algozes
(Que é claro, se aproveitam muito bem da ocasião)
Pessoas ilhadas, doentes, famintas e com medo
atingidas no que têm de mais precioso
Nossa nação em frangalhos usurpada por um ladrão
que envergonha de longe a estirpe de qualquer ladrão
Porque como consta no manual
dos facínoras que não são fascistas
nos meios e liames bem definidos que configuram sua arte
e povoam nossa história de uma
infinidade de ocorrências
roubar pode, iludir pode, disfarçar pode, mas matar não.
Dizimar não. Extinguir não
E tudo isso junto impunemente. Com risadas!
Resignados, agora, mais que nunca
A aguentar por mais sei-lá quanto tempo
essa tralha que governa nossas vidas
(quer queira o pacato cidadão ou não)
e que doravante seguirá tranquila destruindo tudo
Efeito-trator sobre o que mais prezo
E não, não dá pra fingir que não está
acontecendo esse prelúdio do inferno
São vários terremotos por semana
As conquistas coletivas, artísticas, sociais
A vencedora luta contra a fome que assolava o país
Entre erros e acertos de décadas,
a progressiva construção de uma dignidade nacional
que pudesse ter história, o resgate da honra perdida
durante cinco séculos de sistemática exploração
Tudo isso jogado no lixo, a inclusão nas escolas
Gente que nada tinha e passou de repente a sonhar
Crianças que estavam a caminho de algum lugar
A beleza do alimento na mesa
Das crianças na escola
O sonho desses rios voltando à vida
Matas preservadas em seu lugar
Não restará nada. Habitamos ruínas
Nietzsche dizia que, para
o Além-do-homem ,
toda ruína seria uma fundação
Mas nossos meios são parcos
Nosso povo é tosco
Nunca padecemos tanto
da falta de utopias
Fundar o quê, então
uma ode à barbárie a imperar
sobre os ossos do último indio
usando como força motriz
a alma vendida do que seria um país?
Vou embora para meu próprio mundo
de volta retomar meu natural
Eremita por vocação
Antissocial até a medula diante do contexto
sem cansar mais a cara na janela
com estes meus sorrisos de ocasião
Pois não há falar mais em identidade de povo
identidade de cultura nacional, se é que houve
O fascismo aos poucos se instila na família
e no meio de alguns incautos amigos
Discursos que, proferidos rindo,
na hora do jantar, não se dão conta
-- ás vezes seu próprio pai, sua mãe,
irmãos desavisados ou completamente cegos
pela mesma onda inóspita que inundou o país --
(Hannah Arendt e a banalidade do mal)
de todos que apóiam de uma forma ou de outra
poucos são de fatos malvados ou conscientes
de que lançam de volta o negro ao açoite,
a mulher à fogueira, o índio à morte
e toda a diferença e diversidade ao ativo extermínio
nesses discursos repetidos que esculpem a nova ordem
Não me identifico com monstros
que apoiam monstros, nosso tempo
é medonho
Vou embora para meu próprio mundo
onde esses despojos imundos não me
podem mais amargar
nem os restos dessa porca lei
que massacra os inimigos
e perdoa comparsas
Saída até há, mas leva tempo demais
e isso é a pedra preciosa que não
logro possuir aliás
Vou embora pro meu mundo
Porque lá sou amigo do rei
Terei a beleza que desejo
na cena que escolherei
Voltar ao que sempre fui
Essa mistura mal temperada de índio
planta, terra e bicho, tudo misturado
(Gente cansa)
Fazer fotossíntese da vida pra alimentar o texto
criar raízes aéreas, frutificar de outros modos
porque alguma coisa já não estava dando certo
nesse modo antigo e vencido de lutar
Perdemos e não à toa
Nossas armas se tornaram inócuas
contra esses novos vírus que vieram
nos habitar
Fortificar, frutificar de outros tantos modos
e ainda achar bom demais ser nobre como árvore
Escrever mais, escrever melhor, na arte do que me cabe
Absorver mais, ler melhor, abarcar outros universos
alimentar outras vias
Estar vivo como ato impositivo
de gratidão e força
Se algum dia mudarem os ventos, o espírito
se refaz. Sermos também flexíveis e cheios
de seiva e força como os galhos e caules
Ainda há demasiada beleza na vida
para que em sua profunda delicadeza
deixe de ser notada, versada , sentida
E mesmo quando contida ou assustada
ela se ramifica, explode e mesmeriza
Para isso há que instruir os olhos a ver
Olhos de força porque criar é ser forte
Por ora é apenas a exaustão
de olhos cansados