O corpo que não habito

 










I.


Se eu sonho, ele está sempre presente
e se acordo, longe vai o dia
ele ainda não evanesceu

Teu corpo é a memória primeira
do mundo perfeito

que um dia habitei

         e depois perdi

Assim como perdi a mim mesmo
peregrino
pelas montanhas e vales
de tuas terras irresolutas

Na absorção, por tentativas e erros
de tua essência de sombras e luz

Na absorção, por desesperos e fracassos
de toda tua liquidez
pelos meus poros

Objeto para meus olhos
sujeito para meu coração
laboratório de minhas mãos
imperador de minhas vontades

Desde o primeiro instante
onde eu ainda não era nada
mas vim a ser por ti

Teu corpo é a memória perfeita
do mundo que primeiro habitei


                              e depois perdi


II.


Teus seios
a meio caminho da minha boca
o desejo e sua interdição

Brigando forte em meu espírito
tantas irrazões, numa dura partida
enquanto os olhos, privilegiados
contemplam a fonte da vida

Sou criança, e me alimento em ti
como se fosses o primeiro leite
como se fosses o primeiro campo
e semeadura e colheita, num dia bom
tudo ao mesmo tempo agora

Estou aqui e sou feliz
não porque mereça
mas talvez pereça
se não me deres alimento

É tua velada maternidade
o que me sustenta
pois  felicidade não é  merecimento
(Quem sabe, paz de espírito
e um pouco de sorte?)

Onde andaria eu próprio, senão à morte,
não fosse este tormento?


III.



Teu ventre me faz lembrar de Deus

Porque tuas linhas e pequenas rugas
(teus caminhos marcados)
Teus pontos de  fuga
(teus espaços sombreados)
São como inéditos pergaminhos
me ensinando a ler

Porque tua pele me ensina
a não enlouquecer

Porque teu suor, teu sorriso
e teu jeito todo especial
de se virar de lado quando
escova os cabelos
sobre as costas  nuas
me faz trair meus princípios
e  suspeitar
(logo eu, quase sempre um ateu)
da existência de algo divino
para além da mera matéria

Ou quem sabe, sentir como Spinoza
que tudo quanto treme e goza
contém um fragmento de Deus
e que a divindade é a própria matéria

Porque tuas contorções
e teu prazer são motivos
para se dedicar uma vida

Porque tua beleza é fim
em si mesmo, como
chegada sem partida

Teu ventre me faz
lembrar de Deus
Porque Ele é mulher

Um Deus cíclico
como as luas vermelhas
um Deus  sublime
que dá à luz, quando quer
amamenta e também gesta

Mas também um deus de Dualidades
capaz de, em sua ira, amar atrocidades
e fazer coisas sem qualquer explicação
para depois chorar, visceralmente
soluçando e abraçando sua criação
Um Deus de loucuras e generosidades

No templo-espaço do teu sexo
em que para fazermos algum sentido
o nada não deve ser considerado

                   Porque teu gozo é meu ritual  sagrado








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do livro de poemas "Os dias" - - publ "Castelos de Ar", ago/2016, ed reg AVCTORIS jul 2017