Postagens

Mostrando postagens de agosto, 2020

Querosene

Imagem
  “Lata d’água na cabeça, lá vai Maria, lá vai Maria”...                                                 (Candeias Júnior)       E foi mesmo por causa das antigas latas de querosene cheias d’água, na subida lenta e escaldante dos moradores sob o sol na lombada do gigante morro, que algumas décadas atrás nomeou-se a primeira favela da pequena cidade.   O “Morro do Querosene” era lugar mítico, apelido carregado de uma aura sinistra e temerária à simples pronúncia. Amedrontava crianças, deixava as polícias em alerta, ameaçava a bolha moral, psicológica, religiosa e política  nutrida por décadas de tradição de uma cidade pequena nesses rincões onde supostamente sequer deveria haver favela. Segundo os   jornais e à boca miúda, era de lá que vinham todos os bandidos pra botar medo na população da vila, na calada da noite. Mas contraditório como a própria vida, (e isso já observava eu mesmo, no olhar de menino) também era de lá que saíam   aqueles garotos criativos que eram os mel

Triângulos

Imagem
                          À vera ou à brinca? O antigo “Campo de Aviação” era a praia da molecada.                         À vera: Sandim foi recolhido outra vez pelo camburão enquanto estava no campinho e catava triângulos e linhas riscadas no terreirão lisoamarelo de chão batido.                         À brinca:   plena temporada de bolinhas de gude,   ele exibia junto com um grande relógio brilhoso no braço as   peças raras da sua bela coleção, aquelas pérolas de vidros verdes-azuis transparentes. gudeiras perfeitas em suas órbitas preservadas. no bolso da bermuda tinha esferas de metal, utilizadas para situações específicas dentro da partida do triângulo. gudes são os cavalos de batalha, os peões. esferas são generais.  arriada é minha, bate-purra falei primeiro, se ficar no triângulo. mão-de-três, e eu só pingo as que eu casar se a morte for no estalo. de resvalo não vale.                         À vera: da primeira vez que o levaram, Sandim voltou olho roxo, perna engessad

Enterro

Imagem
  (O Enterro - tela de Salomão Zalcbergas) O passamento de nosso avô (que era bisavô mas nós o chamávamos assim, quando não dizíamos simplesmente padim) Não me deixavam ir, de pequeno Insisti, queria ver de perto a cara da morte O avô não parecia diferente, usava um terno azul claro deitado naquele féretro de rosas brancas O rosto jovial permanecia igual, um certo sorriso meio matreiro em expressão de rala barba branca que até escamoteava um pouco a dureza dos últimos tempos Todo mundo suava, tarde quente Muitos com abanadores, leques, disputando sombras O avô (que era bisavô) permanecia bem, sem suar a fronte, a tez pálida e elegante a expressão de quem guarda algum segredo e tem alguma coisa a dizer A dizer a verdade me decepcionei um pouco com a morte porque a esperava cheia de garatujas e ventanias Pensava que surgiria ornada de barulhos a levantar os terreiros, dobrar os topos das árvores... e nada! Espreitando bem com olhos ainda cautelosos via apenas umas senhoras com le

Coresma

Imagem
  Não bastava ser a prima mais velha, Jana tinha que ser ainda a mais atentada. Bonita como ela só, aqueles grandes olhos negros e os cabelos lisos e longos que chegavam à cintura, encantava não apenas os primos mais novos, mas tinha lá seu fâ-clube entre boa parte da molecada que morava até o fim da rua nova que nasceu da antiga linha do trem. Todos hipnotizados pela sua beleza pré-adolescente. Espírito de moleque, ela tomava a frente nas melhores brincadeiras de Pique, Manda-Rua, Queimada, organizava os piqueniques, as fugas e os passeios de bicicleta pelas redondezas da Vila.                         Depois de uma manhã empurrada e longa de escola, deveres, deveres e mais deveres, o bom mesmo era a volta pra casa, quando largava-se mochila, sapatos e camisa   pra cair no mundo. E sem Jana não tinha a menor graça. Bora catar goiaba no quintal vizinho, bora pescar bagre na beira do rio, bora beber resto de cachaça nos copos e ficar tonto girando ermo que nem gambá, bora botar fogo no

Cabelo

Imagem
      Mas o menino não queria ir nem por reza, tinham que fazer promessa pro santo ou tentar arrastá-lo à força para que ao menos uma vez por mês ele se sujeitasse a ter os cabelos cortados na barbearia mais próxima de casa, aquela junto à rodoviária. Chorava, esperneava, fugia para o meio do pomar e lá ficava até escurecer, ninguém o encontrava entre as árvores. E não adiantavam histórias do tipo : mas os amigos  cortam cabelo, suas irmãs cortam cabelo, seus pais também, todo mundo. Era mais fácil convencê-lo da necessidade imperiosa de uma injeção nas partes mais escondidas do que mostrar a naturalidade de se sentar por alguns minutos naquela tábua estendida sobre a cadeira do barbeiro para dar a altura necessária para o serviço. Era levar umas tesouradas daqui e de lá, sentir a navalha meio cega raspando o pé do cabelo na nuca e depois aquele álcool gelado e ardido atrás das orelhas, quando o serviço estivesse pronto. Sem contar a cabeça quase pelada, depois de tudo. Medonha.

Elvis

Imagem
  Naquele tempo todos gostavam de futebol, pipas, carrinhos de rolimã e bolinha de gude, além dos primeiros arremedos de "videogames" , se é que podíamos assim chamar àquelas toscas criaturas ainda em preto-e-branco e seus barulhinhos bizarros plugados numa TV de tubo. Eu gostava de tudo isso, é claro, mas já despontando os primeiros traços de heresia que ao que tudo indica ficariam para sempre em meu futuro temperamento, eu só queria mesmo era ser Elvis Presley. Cantar e encantar a todos com aquela incomparável voz, simultaneamente capaz de enternecer uma velhinha nos seus noventa anos ou uma criança de colo, e ao mesmo tempo com aquela atitude rebelde-heróica hollywoodyana dos filmes de sessão da tarde capaz de enlouquecer as mulheres.  Aos oito eu já adorava as melodias dos Beatles, fingia que entendia o papo astral do Raul, estranhava as caretas de Mick Jagger (logo os "Stones", a quem eu também iria idolatrar por décadas posteriores) e ouvia meio sem permissã

Os passarim

Imagem
  Ele, todo armado nas penas amarelo-ouro,   os vermelho-alaranjados fogos nos peitos, olhar intrépido, inquisidor, bico petulante, principalmente se na presença de sua cara-metade. Ela, verde-amarelada, mais verde, menor e de postura acolhedora e orgulhosa   em relação a seu par, observando-o em ação e aprovando com pequenos chiados a conduta valente do parceiro no duelo que se travava no espelho da janela. Bicos e cabeçadas no vidro, caretas de intimidação e alguma coisa que lembrava de longe aquela dança que os passarinhos machos fazem para impressionar as fêmeas.   Agora, todas as manhãs, infalivelmente nas últimas três semanas, somos acordados antes das seis horas por um casal de canários-da-terra cujo representante macho   vem tirar satisfações sobre seus domínios em combate com minha janela espelhada. Obra da recente mudança estética na fachada do meu prédio, a empreitada acrescentou películas protetoras reflexivas nos vidros, com o objetivo alegado de diminuir o calor e dar

Filosofia: retornando à casa

Imagem
Alternâncias. Momentos de expansão --  folhas e galhos em busca de luz --, momentos de pivotantes raízes em busca de um alimento terra quando a experiência do visto e estabelecido da época não é o bastante para distender o real Retomando a leitura desse pensador mais que essencial, pela contundente profundidade e amplitude do seu legado. Não há tema, espaço ou noção não abordada ou revisitada por Adorno  dentro do nosso viver contemporâneo. Para um livro cujo processo de escrita se iniciou antes do término da segunda grande guerra, é assustador ver o germe de alguns desdobramentos que não escaparam à vista ás vezes excessivamente dura de uma mente  analítica,  mas que por puro paradoxo não se resigna a um ser-Socrático. Da Economia à tecnologia de ponta, os cotidianos, a  arte ,o sexo, a cultura de massas, a literatura e a música,  em particular,  sobre a qual detinha não apenas um conhecimento teórico, mas uma sólida formação  clássica. A forma privilegiada do "aforismo", us

Valter Hugo Mãe

Imagem
Sequência cronológica de leituras. Terminada hoje a última obra desse fantástico autor, e a impressão nítida que fica, dessa outra forma de linguagem, que a meu ver  mais que em qualquer outro escritor contemporâneo, -- ao menos no idioma português-- faz "cantar" as palavras, permitindo pelo leitor a apreensão de sons e sentidos inusuais como formas descritivas.  Herança de Saramago muito presente, na raiz, e o mérito pessoal de muita lavra das próprias mãos.  "Homens imprudentemente poéticos " é, talvez, o livro mais diferente dentro da produção do autor. Sua intenção de se vincular á cultura e à forma de pensar e se expressar do Japão o situa um pouco à margem quanto à estética. Mas quanto aos outros tabalhos, independente do tema das variadas narrativas, sempre muito intensas e com grande carga poética e existencial nos personagens, a sensação que me bate do texto é que, o tempo inteiro, há uma espécie de criança esperta brincando com as palavras, com a forma de

The show must go on

Imagem
The show must go on

Processo

Do ponto de vista da criação, a busca ininterrupta é o que alimenta o processo que não se encerra, para o indivíduo no resultado da obra em si Quando um livro é parido e suas formas se solidificam, outro já se engendra nesse útero prolífico que é a cabeça de um escritor Ás vezes vem inteiro, acontece Em geral vem por partes daqui  e dali, fragmentos de gentes de memórias, lugares num caldo de imaginação  -- e todo criar é gesto feminino-- Criar é conceber mundos É deixar-se fecundar pela vida Desde o instante em que um artista nasce (o que nem sempre coincide com o parto) até o segundo que antecede seu fim (que nem sempre coincide com o a morte) A memória disso não deve ceder Resultados são importantes Motivação e poda Aleatório destino incidindo sobre a vontade fraca ou forte Força estética que tudo atravessa e segue assim seu trajeto Em alguns casos, ela nasce para o que é e encontrará a voz almejada por seu tempo tornando-se fundamental referência de um indivíduo, um público, um pov