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A sétima porta

Meia-noite encobrindo a neblina densa e fria, e Sylvester lambe as patas, afiando suas garras no tapete da sala. Atrás dele, o sofá de couro cinza puído, embaixo do relógio de parede em estilo gótico que soava a última das doze badaladas ecoando pelo salão principal. Quadros dos antigos moradores da casa adornavam a parede lateral que se estendia pelo corredor de teto amarelado com infiltrações úmidas de musgo verde nas quinas. Desde que momentos antes passara a carruagem pela rua de pedras molhadas de sereno, o silêncio abraçou a imensa casa colonial de dezoito quartos, calçada com assoalho de madeira e sustentada por vigas mestras de seis metros de altura. Outrora aquela casa vivia repleta de crianças, convidados, bebidas exóticas e banquetes variados em razão das recepções acontecidas no salão oval. Agora, uma vez extintas as músicas dos salões, ouvia-se apenas uma coruja do mato piando ao longe, sapos roucos no pântano ao fundo do quintal e o suspiro do vento gelado do mês de j

Ela

A vida tropeçou em mim quando a conheci. Minhas noites perdidas, especulando por ócio ou ofício os destinos inglórios do mundo Minha vida tão dividida afastando-me saudavelmente  de mim mesmo por um tempo finalmente ganhava um sentido inteiro ao seu lado quando sua leveza e sua vontade de viver me invadiam no final de cada tarde pela  felicidade incontida de contemplar esse filhotinho de pássaro recém-saído do ninho, a esticar suas asas ainda desajeitadas sobre minha história Ela veio assim, meio sem aviso para perturbar definitivamente a ordem pré-estabelecida das coisas _ordem errada, é claro, e infeliz_ que eu estabelecera com as coisas e veio plantando em mim o germe da rebeldia dentro daquilo  que eu ainda chamava dia. Criatura da noite, eu percebi então que ainda não conhecia o dia. E como todo Ogro, habitante das cavernas, demorado em seus sentimentos apenas aceitei que a amava quando um dia a vi chorando. Essa criatura sensual e louca que chegou virando t

As dores do mundo

A perfeição de Schopenhauer. Talento, caráter e coragem. Como seria possível imaginar Nietzsche ou Freud sem ele? O velho alemão que tomou o trágico de Shakespeare, a clareza argumentativa de Kant e todo o lirismo do velho Goethe, seu adorado mestre, para tornar possível a melhor compreensão da vida na contemporaneidade.

Orgulho

"O filósofo e o cavalo são os mais orgulhosos animais que vivem sob o sol" (Nietzsche). Bom, como ainda não sou completo na arte de me tornar cavalo, então tenho que tentar ser menos orgulhoso.

O sonho partido

Acordar pela manhã e perceber naquele dia incomum, que nasceu das sombras o momento exato no tempo em que a realidade foi parida precocemente do sonho, engendrando no seu ato de dar à luz uma criança dura e fria... Acordando consigo toda dor,  todo pranto e todo tipo de frustração infligindo ao corpo o corte  como uma faca a rasgar-lhe o flanco sangrando assim os elementos mágicos que habitam o mundo dos sonhos e criando a percepção de que viver  é nada mais do que simples contradição Porque o tecido do que é vivo não é contínuo e fluido mas permeado de rupturas, um tecido grosso composto de cicatrizes toscas que se sobrepõem Acolher essa criança selvagem no seu colo sem que tenha sido preparado constatar que obteve do sonho apenas um balde de água fria em pleno rosto justamente na hora em que esperava nada menor que um beijo naquele exato momento em que o sonho prometera desvelar  sua essência e Maya, convencida, tiraria os véus depois de muitas promess

Ser e Existir

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(reeditado) para Manoel de Barros De tudo o que se vê no mundo a metade existe somente na nossa cabeça                                       os olhos é que mundeiam para enxergar Isso, porque ainda nem falei de Heidegger para quem, o que existe mesmo são os humanos O restante das coisas, bichos e plantas ainda que se esforcem , nunca conseguirão pois possuem unicamente sua essência podem ser, mas estão condenados a nunca existir Esta minhoca que agora cava sob meus pés redondeando num girobolante escarafunchar do barro aqui neste terreiro de chão batido parece não concordar muito com o Filósofo assim como estas formigas que, em organizada carreira, carregam apressadamente suas folhas nas costas e seus grãos de  açúcar furtados no pote da cozinha ciência de chuva que se aproxima Acho que não preciso dizer a elas que Heidegger não estava certo

A linha

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Estilingue em punho, mira um tanto difusa. Já naquela idade, os olhos não iam bem no foco do seu destino. Alguém já suspeitara, em casa, mas os óculos estavam sendo adiados ainda um tempinho para o bem do menino. Estilingadas de mamona pontuda, um saco delas, bem verdes. Pedra, não podia. Braços doendo, pescoço doendo, olhando pra cima e desafiando a força da claridade solar há horas, mas sem acertar nenhuma, até que súbito aquele um pássaro no meio de cem outros recebe a bomba no peito, desafina o corpo para os lados e vem sobressaltando asas até bater o chão, num baque surdo. Andorinha do mar, aquelas grandes, de canto enigmático e gutural.   Surpresa! Nunca tinha acertado nenhuma, nesses anos todos de miras perdidas e muito caroço de mamona arrancado nos arbustos sofridos da rua. O júbilo de caçador bem-sucedido passara mais rápido do que um raio, e o choque foi maior do que a suposta glória. Acontece que o pássaro não morria como nos filmes. Aquele bicho ficava se debatendo,

Perspectivas ao crepúsculo

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Andando em linha reta, calçadão de pedras semi-retorcidas forçadas toda vida na moldura do preto-e-branco nesses desenhos desestéticos que sempre têm mais cascas do que recheio Seguem prédios à minha esquerda Segue praia à minha direita As pessoas, o que  as pessoas olham? olham sempre à esquerda entortam pescoços, viram-se para os prédios dezenas de metros acima até ficarem tontas O que eu vejo? Eu apenas vejo o mar Essas águas espumantes como um grande sal de frutas verde jade numa jarra em movimento que nunca se acaba melhorado em sua beleza quando o sol da tarde vem para a última nadada antes de se ir O que as pessoas vêem? olham os prédios, cada vez mais altos cada vez mais imponentes suas sombras caras sobre a areia cada vez mais caras cada vez menos areia Segue a praia calma e barulhenta ao meu lado, mexendo e espalhando espuma branca sobre meus pés um barquinho singrando ao longe uma luzinha tremeluzindo ao longe crianças de cabelos s

Espiral

Do teto do mundo aos seus vales mais profundos das cordilheiras dos Andes aos desertos da Namíbia nadando com os tubarões ou no lombo de camelos voando com os condores ou correndo com os leopardos Em muitos caminhos minha alma esteve em todas as vidas que vivi, cada uma a seu tempo fui criança, fui senhor e fui mulher fui escravo, senti frio e senti dor para provar o que a vida tem de esperança e saber aonde nasce o amor Tudo vi, tudo vivi, e em algum lugar em mim ficaram gravadas todas essas sensações por isso hoje quando te vejo à minha frente olho também através de ti, e tudo agora se desvela, você aqui, neste lugar como se o mundo não nascesse agora e tudo que existe lá fora fosse apenas um retorno infinito de todas as coisas à sua melhor concepção

O que resta

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Atrovoam presságios da guerra. Generais e bombas a postos. Pedaços de gente voando pelos ares. Crianças, velhos, mulheres... Ataca-se o homem, mata-se sua família, Infertilizam suas terras para que não mais produza A humanidade é o que resta sob os escombros. E mesmo assim, contra tudo Sempre haverá esperança Porque o homem é um animal que sonha Havendo por cálculo ou acidente a exacerbação incontida de todos os instintos de morte, de vida, de gozo E sabendo que ser homem significa, simultaneamente, ser portador de uma tragédia e uma boa-nova Haverá sempre aqueles que saberão rir de si mesmos e superando o que há de ingênuo e perigoso na simples  natureza animal, persistirão na crença necessária de que o homem deve ser algo além E que mesmo que não se possa defini-lo ou sequer tocá-lo com palavras, a potencialização dos seus verdadeiros dons sempre será uma missão a nortear as nossas melhores expectativas sobre o mundo Quando a opressão ao indiví

Valhalla (parte I)

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Thorvaldsen saía mais uma vez ao mar. Não era chegada ainda a época certa, mas o inverno teimava em não ceder espaço para a tímida primavera do hemisfério norte. A nevasca cobrira as estradas  de grossas camadas de neve e o frio excessivo deste último ano pressionava o líder do clã a tomar logo sua decisão, antes que fosse tarde demais. Os estoques de carne, óleo e víveres tinham praticamente se esgotado, e a colheita no último outono fora a pior dos últimos cinco anos. As ovelhas  alimentadas com as últimas resmas de feno davam o leite minguado que ainda garantiria por alguns dias o sustento das crianças, mas se nada fosse feito logo, ele sabia que em breve todos morreriam. Convocou os outros chefes da península. Knut, o pequeno, Olsen filho de Olmyr, Balder Vermelho e o grande Khors, o Formidável, para uma rápida reunião, e em menos de duas horas chegaram ao veredito: partiriam em uma semana, no raiar do dia. Iniciaram logo os preparativos,  com provisões, lanças, escudos, ma

Memórias do parquinho (parte I)

Dia de sábado na cidade. rachando fora do barulho para o campinho de futebol soçaite mais próximo. oba!! campo deserto! pai e filho se arvoram no gramado ralo. filho aí pelos seus cinco anos. pai mais trinta na escala da vida. dia de sol e plenitude. felicidade jogar bola com meu filho. brincadeira de dupla, com chutes a gol e rebatidas. brincadeira de dribles, com os bofes (meus) pra fora depois de umas corridas. tudo vale pela causa. Depois de meia hora, surgem "rivais" no gramado. pai e filho também.  filho aí pelos nove ou dez. pai, mais trinta e cinco na escala da vida. cumprimentos introspectivos entre as duas duplas. eles ocupam o lado contrário do campo, na outra trave. o menino é sempre meio barulhento, quer chamar a atenção. observo entre intervalos, sem grande preocupação, a não ser o sentimento de uma certa privacidade quebrada . aquela privacidade que todo pai gostaria de ter, quando está dedicando uma parte valiosa do seu tempo e energia, e cisma em  achar que

DISTOPIAS COTIDIANAS: MATRIX , ALICE E OS PARADOXOS DE SER CONTEMPORÂNEO

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(texto reeditado) Lembro-me, nostálgico, do conceito de futuro exposto por  Fritz Lang, no filme cult "Metrópolis", realizado há quase cem anos... A coisa toda ficou bem pior do que o gênio alemão poderia supor. A sensação claustrofóbica e a vertigem  de estar de pé em um planeta que parece girar cada vez mais rápido, num universo em contínua expansão, a sociedade pós-industrial  criando e destruindo referenciais com tamanha facilidade e volume que torna impossível a qualquer mortal assimilar a quantidade e a qualidade de informações julgadas necessárias para a sua vida. Situação de perda, que gera um certo descontentamento ou frustração diretamente proporcional à escala em que as próprias notícias, a tecnologia ou o conhecimento são produzidos. Ou seja, quanto mais informação, maior a tendência a uma relativa perda do referencial, e maior a sensação individual (em alguns casos coletiva, quando atinge determinados grupos) de perda, de incompletude, de infelicidade,

O último mergulho

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Enquanto o horizonte diminuía à proporção em que a viagem abraçava seu destino, o carro descia vagarosamente o último trecho de morro antes da chegada. Lá na frente, num pequeno ponto de luz, o vértice azul de um mar verde e brilhoso  triangulava num foco de aumento constante. Como as lentes de uma câmera em mãos amadoras, procurando alcançar em zoom seu objeto num ponto específico da paisagem, o vértice de mar apontava como uma seta para baixo,  ainda a longa distância,  transportando a luz para o interior das quatro visões infantis que, justamente nesse instante, paravam toda a bagunça no banco de trás do automóvel e silenciavam por uns segundos, estendendo a vista até onde dava e atravessando com o olhar o pára-brisas daquele poderoso Fuscão VW Azul Claro  rasgando o universo em direção à praia. Um ano se passara, até então, desde que tinham ali estado pela última vez os quatro irmãos. Vinham há duas ou três horas na estrada, e como fazia parte de uma brincadeira ritual, rep