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As mãos

Não saía à rua sem tatear as grades dos portões pelo caminho Volumes, desenhos e assimetrias das texturas Rachaduras contíguas das paredes em limo e cal Tudo correndo feito Braile na ponta dos dedos Dizia as mãos é que sabem a história das coisas que não precisam explicação, as coisas que são especiais e jamais são cerebrais porque vão direto ao coração Às vezes fazia isso de olhos fechados às vezes não Deslizava as mãos sobre o capim pendulado no campo, sentindo a penugem verde dos brotos e sementes ainda não levados pela brisa Gasturava-se na grama baixa e picante nivelada no jardim recém-cortado Levantava a mão direita no ar (a esquerda segurando as rédeas) em dia de ventania no galope bom do potro malhado Navegava ligeira contra a formação da próxima tempestade ainda a ameaçar As palmas que no vento suavam quando ela viajava pra muito longe, e no caminho ia fazendo anteparas engraçadas à resistência do ar (era como se existisse alguém do outro lado a lh

Too Young

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Para Fernanda Young Amor fati Epígrafe de rara beleza Metáfora a ensejar intensidade e tarefa verso certo a derreter incertezas sobre a permanência da arte em um mundo vão O artista se extingue Sua arte não Menina bonita e levada ela ria dos falsos abrigos e seguia desafiando valores quebrando conceitos desdenhando universos perfeitos enquanto lhe bateu forte no peito o mesmo forte coração Bela, doída, múltipla em multiversos  -- uma poesia em movimento de incontida inspiração

Rocket Man

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A história pessoal do artista bate em cheio com os altos e baixos do período crescente na indústria musical em que criou seus mais conhecidos trabalhos, mas há uma interessante dissidência na profundidade tentada por ele, tanto nas letras quanto suas ricas composições, em contraponto da porraloquice dos 70's em boa parte do ambiente pop-disco, musicalmente diversificado mas um tanto mais superficial e festivo em sua proposta e letras. Muito bem exploradas no filme, as apresentações e composições de Elton (nome artístico de Reginald Dwight), como sua presença física no palco são teatrais, exageradas, carregadas de cores, multiinstrumentais, com arranjos complexos e variam do kitsch sentimental aos temas existenciais sem negar no estilo a larga influência do jazz ao rockabilly, passando pelo country e folk. O curioso é que seus temas, muito diferentemente do que ocorre com a tendência "Disco" da época, são melancólicos e trazem questionamentos profundos. Não se tra

Resistência

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"Será que nunca faremos senão confirmar a incompetência da América Católica que sempre precisará de ridículos tiranos?" (Caetano Veloso) ----------------- Levantar a cabeça pra enxergar a luta Nos bolsos breves a leve esperança Reverberar criança Revelar o novo Não se amargurar demais diante das misérias Ter sempre na memória a pulsação  do tempo aceitar         aprender                 respirar E se isso ainda parecer pouco Forjar um outro corpo que ria do  castigo Uma nova mente a desafiar  perigos Não aceitar o domínio Não aceitar o discurso Não reproduzir as falsas verdades Desconfiar da normalidade Jamais se calar Treinar os pés para voar as asas para fluir os ossos pra caminhar o olhar para achar saída o espírito para não sucumbir o músculo pra não enregelar a verve pra não se  distrair a voz pra não enfraquecer o sonho pra não desiludir Engrossar a pele contra todo espinho Manejar o texto como quem esgrima

Ode aos Mamilos

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Mamilos! o doce da letra quando vem à boca seca Espetados e guerreiros, lisos e tranquilos, mamilos! Palavra de guerra em um planeta que gira invertido e tanto mais a história eriça quanto mais se tenta proibi-los Seja a imagem que contagia o olho ou o atrito sem pelos na concha das mãos mamilos! a revolução em dizê-los Contra quem  teima em escondê-los, uma contradição não defendê-los ante a lógica do sistema corrosivo que premia os bandidos e manipula os desejos Ante a claque binária das telas de cristal líquido A necessidade de desviar a seiva de tudo  que é vivo para engordar as hordas de trabalho nocivo Melhor que censurá-los, não seria lambê-los? Mamá-los, a melhor forma de senti-los? Mamilos! outra proibição em rede por exibi-los Por que não mordiscá-los, levemente e sentir a corrente alimentando outros riachos a deslizar por dentro ao mesmo tempo em que abrimos e fechamos os lábios O som nasal da saudosa língua-mãe a lembrar a mais tenra infância, qua

Bacia das almas

I. Mais uma série, todo mundo agora: contando! dez minutos pra aumentar o batimento não para respira, respira, inspira , expira! contando ! e vai, e vai, e vai, contando! mais uma agora! não para. falta apenas meia hora respira! II. é seis reais, Peruá, Peruá, leva seis reais o pacotenn ééééé o pacotenn, leva por seis reais você levaaaaann o carro do camarão passando na porta da sua casaann seis reais o pacotenn, seis reais o quilo do camarãoon fresquinho, éééééé camarão, peruá, você levaaaannn leva três quilos de peruá, leva e só paga quinze real dona de casann, o senhor que tá passando, a meninaaann tem peruá, tem peruá, fresquinho limpinho da horaann ééééé, tem camarão, tem filé, tem peruá você levaaann seis reais, é seis reais, seis reais o camarão da horaaann III. vamo entrá freguês, vamo entrá freguesa, veja moça bonita venha ver, moço entre pra conferir, nossas ofertas, no crediário pré-aprovado na hora, e paga em até seis vezes sem juros doze veze

Gratidão (da poesia necessária)

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Meses de imersão trazendo à tona  como às pérolas que se acha bem no fundo de uma certa superfície [O sorriso garrado nos dentes] A felicidade de quem  descobre, e faz da descoberta entrementes algo tão seu mesmo sendo do mundo coisa tão importante (nem sempre tão celebrada) A felicidade de estar aqui agora poeta e poder testemunhar partilhar e ver A poderosa saga sob essas palavras O quanto é preciso ter vivido pra se chegar até ali Quanta coragem foi preciso para margear os abismos contagiando lucidez a cada verso A ciência do absurdo a continência desse equilíbrio perfeito Ora tão denso, concreto no peito ora aéreo, anti-lírico e rarefeito Sístoles e diástoles no fluxo do agora Dar conta das pulsões que movem o sangue a cada hora A cada segundo o incessante e necessário diálogo cujo resultado é o viver

ANARCRIA

O autor que coisa é essa que objeto que criatura ou criador? Se celebro o feito e deito na cama (em busca da fama) oh! Não quero Me desespero em imaginar as redondilhas girando o mundo Quando há um universo dentro ainda sem se prover Cartesianos, somos! tantos em torno de um desejo atroz fábulas inspiradas na identidade eusística eucêntrica eutológica que amarra o coro  a uma única voz A identidade-eu é uma grande mentira há tribos no Pacífico em que se fala de si mesmo na terceira pessoa A poesia é o que acomete avassala, desarrazoa Escrever como o respirar Precisamos é falar de nós-aqui-reunidos Inventar um outro sentido desabrigado de qualquer razão A criação, ato tresloucado inconsciente em sua origem disciplinado em seus meios Experimentação do som A morte do autor para que o sangue  flua uma morte que destrua qualquer traço ou estrutura a extinção da assinatura Não quero meu nome em lápides e féretros quando crio, o criar é algo q

Terra queimada (Réquiem para dois rios)

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Para Said Esber I. Não adiantou o sinal da brisa quente Ver no prado a seca se instilando Na lembrança os dedos vivos da  grama ainda sem se saber extinta Para pura contemplação dos olhos enternecidos Não adiantou perceber aos poucos o vento cáustico sobre os eucaliptos retorcidos Suas bocas secas chupando sobras de umidade na profundidade do chão A essência perfumada e exótica trincando o solo deserto Dissipando nuvens de insetos Extinguindo as fontes pra prolongar a sede Rareando as cores pra premiar as cinzas Invadindo as matas pra expulsar nativas Desertando o úmido pra proliferar o seco Agressivo e vitorioso como a civilização Trazendo em seu bojo a morte do chão Não adiantou armar-se de todas as defesas e ainda ver deitada à mesa a ausência do pão A miséria da ciência recalcitrante e esquiva cortante e decidida como  os lanhos do tempo sob as raízes do cabelo descolorido na fronte dessa mulher que chora Não adiantaram as premonições quand

Gangorra

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Quantos mestiços valem um homem branco? Quantas crianças índias e aldeias dizimadas? Quantas mulheres? Quantos animais silvestres valem uma cidade higienizada? Quantos rios contaminados? Quantas coragens pra uma covardia? Quantas famílias esfomeadas em sua faina sem conseguir vencer o grande jogo de azar? Quantos reféns poderiam ser trocados  por um único executivo em sua mesa fria  assassinando papéis? Quantas flechas, zarabatanas pedaços de pau e foices valem uma única bomba de cem mil megatons? Quantas mortes valem uma vacina quantas dores um prato de comida quanto pesa a vida que sobra por detrás das cercas que nos cercam A resposta, simples, óbvia e bela: duas crianças brincando de gangorra com as grades da própria cela

A única paz possível

Pai, o mundo está sempre em guerra? (pergunta o curumim, enquanto tenta curvar o arco ) Lá fora,  sempre, meu filho Não para nunca A única paz é a de dentro quando aprendemos que nem todas as pontas são flechas e nem todas  as flechas estão apontadas para o nosso peito

A palavra é em movimento

Ruminando a resma duvidei do mundo Sobre a  mesa apenas uns pedaços de papéis amassados Ora eu os despachava sem dó para a pasta de elástico ansiosa (não podia reler, pra não desanimar) Ora eu os retomava, em pranto na velha lata de lixo desamassando beiradas toscas pra tentar reaver seu verdadeiro significado quando, antes de surgirem na ponta da mão enfeitavam ainda um outro lugar ao lado que eu não conseguia mais achar Engomadas para seguir em frente ou desbaratadas definitivamente do seu destino Havia uma liga, ali, naquelas páginas que não se perdia E que só surgia enquanto a palavra se movia

Filosóficas V ( O Salto)

A vida não é proposicional. O tanto de anti-humano que há nisso O tanto de esperança, dependendo da saúde do olhar O conhecimento formal do mundo pode ser uma grande mentira [talvez a maior de todas ] se toda descoberta se colocar a partir da lógica É preciso cuidado para não sucumbir O sonho do iluminismo morreu infinitas vezes muito antes da primeira bomba atômica Depois de tanto arrazoado depois de tanta história tanta lógica, tanta ciência tantas experiências não há nada de melhor no humano Somos as mesmas bestas potenciais que habitavam isso tudo aqui há milhões de anos Sectários, sanguinários, utilitaristas até mesmo quando nos propomos altruístas (desconfie sempre de todo altruísmo, ja´dizia o bom psicólogo) Temos talvez uns pelos a menos no corpo Uns dentes a mais O pescoço ora mais curvado por razões óbvias Uma linguagem mais aprimorada a nos por no mundo em outra condição E nada, absolutamente nada a alterar nossos instintos destr

Filosóficas IV : Águas rasas

Turvar a água pra parecer profundo Arte de poço raso que calunia o mundo Hegel e a leitura da história: o básico , transformado em teia inexpugnável Creditar a uma trava de linguagem e a infinitas remissões vocabulares que giram, tontas, circulares, atribuindo-se um sentido (por si) mais profundo como se hermetismo fosse valor Diz-se a coisa dizendo ou se diz não-dizendo (silenciar é também comunicar) ou, quem sabe ainda não-se-diz dizendo (falar é um jeito de calar) Não há como não-dizer não dizendo, quando se teoriza sobre o pensamento seja científico seja artístico Há uma positividade no conhecimento do mundo, que é perpassada, repassada legada e o tempo inteiro transtornada pela linguagem A aranha desfiando para incautos uma mitologia fechada que só encontra saída em seus próprios códigos como se a lógica fosse resposta Não refutar, (todo refutar é ainda estar no âmbito de, na presença de, aceitar os termos e valores de) todo refutar é qua

A roda

Os antigos eram levados pelos elementos -- os deuses--, na metáfora da Terra, do fogo a água e o ar As estações A observação ingênua de um motivo anímico O clássico matou o espírito desse mundo ao substituí-lo pelo humano Os deuses, ainda vivos mas acorrentados, tornaram-se  nada além da personificação humana Seus humores,  suas doenças e paixões Temendo a exacerbação projetou-se na arte a contenção pela beleza O belo como pacificação das tensões não sublimadas O moderno denunciou, aos gritos, como é próprio da sua aesthesis, o truque mal forjado que se imiscuía nessa sombra de perfeição das formas a justificar a vida A beleza tornava o desejo pela vida maior, mas para isso sufocava as contradições de seu próprio surgimento Não há paralelos entre a vida e a estética,  nesse olhar cáustico a revelar essências Muito menos a idéia de beleza subsiste Sob o martelo dos modernos, dissolveu-se a estética para revelar a fome, a miséria coletiva, os des

O MURO

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NO RIO DE JANEIRO HÁ MAIS DE OITOCENTAS FAVELAS HÁ MAIS DE OITOCENTAS FAVELAS NO RIO DE JANEIRO O RIO ABRIGA MAIS DE OITOCENTAS FAVELAS NA CIDADE PARA AS COMUNIDADES, O QUE É CENTRO, O QUE É PERIFERIA? AONDE O MONSTRO NASCE, PRA ONDE ELE SE IRRADIA? NO RIO DE JANEIRO HÁ MAIS DE OITOCENTAS FAVELAS HÁ MAIS DE OITOCENTAS FAVELAS NO RIO DE JANEIRO O RIO ABRIGA MAIS DE OITOCENTAS FAVELAS NA CIDADE PARA AS COMUNIDADES, O QUE É CENTRO, O QUE É PERIFERIA? COMO É QUE O MONSTRO CRESCE, QUEM É QUE FINANCIA? NO RIO DE JANEIRO HÁ MAIS DE OITOCENTAS FAVELAS HÁ MAIS DE OITOCENTAS FAVELAS NO RIO DE JANEIRO O RIO ABRIGA MAIS DE OITOCENTAS FAVELAS NA CIDADE PARA AS COMUNIDADES, O QUE É CENTRO, O QUE É PERIFERIA? QUANDO O MONSTRO DORME, POR QUE É QUE SILENCIA? NO RIO DE JANEIRO HÁ MAIS DE OITOCENTAS FAVELAS HÁ MAIS DE OITOCENTAS FAVELAS                                                                                   NO RIO DE JANEIRO... ----------- pub originalmente

O último replicante

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"Eu vi coisas que vocês não acreditariam. Ataque de navios em chamas no flanco de Orion. Eu assisti Armas de Césio brilharem na escuridão no Portal de Tannhäuser. Todos esses momentos serão perdidos no tempo como lágrimas na chuva. Hora de morrer".

Phosphorus

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no susto do como-é-possível mais rápido mais sutil que um estalar de dedos uma leve caixa oca de madeira o desenho estranho na superfície dentro apenas aquelas finas alminhas quarenta hastes enfileiradas as cabeças tingidas de tinta vermelha centelhas contidas em potência tiras de fogo inusitadas ao riscar do céu tardio dois corpos em atrito formando uma terceira coisa em estado indeterminado (nem sólido, nem líquido nem gasoso) zombando das formas da matéria passeando entre a vida e o além o sorriso na cara de quem a contém uma pequena e leve caixa oca de madeira a reverberar neandertais meninos saltando ao redor de fogueiras em resguardadas cavernas ancestrais o furto e a fuga, ao primeiro descuido pequeno Prometeu a roubar a honra dos deuses testemunhar sozinho aquele milagre debaixo dos pés de manga entre cerrados arbustos de pitanga -- a caverna particular -- e sua decoração temática: um canivete sem corte um estilingue torto bonecos de pl

Mãe-da-lua

Ítz, minín, sai da rúa e entra pradêndicása já! sereno caíno, Mãe da Lua já chamô trêis vêis Sá mãe tá chegâno iqué vê tômunjunto di bãe tomado Arre! Imcruiz. Minín tentado. Tá c'os ispríto? nos meu tempo a correia cumia no lombo! [Gilzim, o mais pequeno, o mais pretim de seis irmãos multicores de volta do seu artelívrio  -- profissão brincadeira -- na porta do quintal do sério palhaço Arrelia Sol se pôs na cacunda, a febre de ser moleque Se pudesse , Gilzim pelas noites ardia mas como não pode, queima mesmo de dia] Auscuta só, moleque, qui vô dizê só u'a vêiz si pegá ocê  di novo naquél árvi, leva de chinelão na orêia Íz, causo qui seu pai nuntáquí, qui sinão a surra era de correia Seu pai assumiu-se no mundidêus por dênd'úa garrádipinga i dexô sá mãe Sá Maria cás mininada todinha tomá conta Dicomê qui farta é nhá Rosa quem agarante no precisado Qui si nuéra os pessoár da vila nem num tinha ôtra saída ----- poema reeditado, postad