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Mostrando postagens de junho, 2018

Pássaros

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Tentou a primeira vez. Era devotado e meticuloso, sempre cuidava daquele bichinho como se fosse gente da família, mas apesar do encanto e de  tanto afeto, foi apenas ele virar as costas um segundo e o famoso gato angorá do vizinho invadiu a gaiola do Canário Belga  com tudo, deixando para trás somente algumas penas amarelas e as grades quebradas. Tentou da segunda vez, com cuidados redobrados, mas mesmo assim, por uma fresta da imensa gaiola velha de embaúbas, onde havia um remendo imperceptível de bambu verde para consertar o estrago anterior, o novo  canário dourado-verdinho fugiu, para não mais. Da terceira vez, resolvido a se tornar um criador, conseguiu casal de pássaros (novamente a fixação por canários-belgas), conseguiu gaiola-mansão, aprendeu técnicas, adquiriu também um grande ninho de amor e sombra para os bichos chocarem família. Tudo ia muito bem. Os ovos vingaram, dali saíram três filhotes que faziam imensa algazarra e gostavam de ser alimentados de manhã bem cedo

Cheshire cat

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o ser-social essa construção tantas vezes inadequada até mesmo em vistas do seu próprio fim inóspita em sua essência lugar-comum evocado tantas vezes ao dia apenas para não enlouquecer seu usuário distinto antes de extinto o sorriso de negócios durante o ato, ainda, antes de terminar a fala fluida que é que ainda resiste no fundo do copo quando o efeito da bebida já se evaporou quantos estados de ânimo se alternam nos trezentos e sessenta e quatro dias de um mesmo ciclo solar nas vinte e três vezes que irrompem entre uma alegria e outra durante um mesmo dia quê que foi feito da poesia o que foi feito da vida não importa desde que o sorriso permaneça esse grande enigma de silêncio profundo trabalhe, produza, acrescente e cresça o gato de Cheshire comanda o mundo

As neves do Kilimanjaro

chove em mim agora muito mais que lá fora e o frio que me abarca o peito é essa coisa sem jeito que não há coberta que aqueça chove em mim há estações inteiras e eu sei que esta não é a primeira vez nem será a última com certeza não tem feitiço que aconteça nem cunharam as palavras mágicas para desagitar as tempestades que me governam mesmo no dia mais calmo de céu azul e mar brilhoso de puro sol uma coisa é o mundo outra sou eu (pensava, prepotente do alto dos meus vinte anos) viverei a vida ao meu próprio ritmo e vou exercer meus influxos divinos sobre as minhas marés mas isso foi há muito tempo atrás

As portas

tenho me intoxicado, de leve de todas as formas possíveis rumo ao que flui de mim quando não mais sou eu e adoro o que vejo na perspectiva outra de me olhar  como um completo estranho olharia mais do que uma experiência narcísica às avessas é uma espécie de amor por compaixão e vejo tantas arestas tanta pretensão mal gerida e ao mesmo tempo tantas boas intenções brotando daquele solo improvável que no final, esse outro agora que olha aquele que sou eu , lá toma-se de amores pela sua nova criatura como um deus, eu acho que faria, ao defender os seus ficando apenas a dúvida, no final se ele faz isso porque é um deus e assim sendo, pode tudo ou ao tomar-se de amores  por sua própria criatura [com tamanhos e tão perceptíveis defeitos, alguns incorrigíveis] este não seria apenas um falso deus em imensa e irrevogável queda

Angústia

a angústia é o estado natural do homem que recusou em si mesmo a besta [Já dizia Kierkegaard] e toda besta é feliz porque ignora sua própria condição mas a recusa à bestialidade ainda não fez anjo ou demônio daquele que se angustia                        é preciso poesia

Segunda

que poesia resistiria à segundas-feiras que versos não desmoronariam às primeiras horas depois que o domingo nos abandonou à  sorte que desatinos não desandariam em apologia pura da própria morte ao vislumbrar-se da colina a fera que lá vem,  temerária contra temerosos rugindo em seus dentes afiados avançando sobre nossas maiores defesas desafinados ossos rangendo o ruído digestivo do mundo nesse imenso estômago no qual seremos novamente nada além de alimento triturado viver em universos paralelos é o pleonasmo de todo poeta

"Cinema Paradiso"

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Meses, até anos, tentando escrever sobre o cinema da minha terra natal, que por coincidência foi recentemente demolido. Como me ocorre com tanta frequência quando vou escrever, falar ou pensar sobre "algo em andamento", seja leitura recente, fato político, notícia de jornal ou sentido do mundo, eu me embolo demais nas palavras, não tenho noção clara do objeto, os sentimentos e as emoções se misturam demais jogando tudo que é cerebral ou articulado, estético ou elaborado, pra escanteio, deixando reverberar apenas as outras forças que ficam lá dentro, afiando as garras ao bote sem pedir permissão. Em outros tempos, isso me deixou em enormes dificuldades com a vida acadêmica, por conta doa famigerada "data limite" pra entrega dos  trabalhos, a total incapacidade de fazer uma revisão honesta dos calhamaços de papel sem antes deixá-los decantar como um bom vinho por um certo tempo, e ainda por eu ser um eterno empolgado  com tudo que me vem à mente para a escrit

A PONTE (Crônica de uma época triste)

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(texto publicado no blog "O Aleph" em setembro de 2017, e tirado hoje "da gaveta" apenas pra lembrar um evento que tornou a ocorrer nesta data, e vem se tornando cada vez mais rotineiro aqui em Vitória. Tanto o evento de pessoas lá em cima da Terceira Ponte, segurando na tela e mirando  o vazio, alguns pulam, outros não,  quanto uma cambada de outras nas filas de carros congestionados gritando "Pula" ou querendo que o problema "termine logo" para que o trânsito continue) ------------- “Sabe a empatia? Pulou da ponte hoje” Enquanto policiais e bombeiros tentavam salvar uma vida (e conseguiram), foi formada uma espécie de minitribunal na ponte. (Artigo de Aglisson Lopes, publicado na página do Jornal “A Gazeta On-line”, em 25-07-17). ----------   As estatísticas reais, poucos conhecem. A desculpa é que os dados são sigilosos para “nos poupar” da dura realidade, ou evitar algum tipo de propaganda reversa por vias duvidosas como incentivo

As mãos

  Não saía à rua sem tatear as grades dos portões pelo caminho Volumes, desenhos e assimetrias das texturas Rachaduras contíguas das paredes em limo e cal Tudo correndo feito Braile na ponta dos dedos Dizia as mãos é que sabem a história das coisas que não precisam explicação, as coisas que são especiais e jamais são cerebrais porque vão direto ao coração Às vezes fazia isso de olhos fechados às vezes não Deslizava as mãos sobre o capim pendulado no campo, sentindo a penugem verde dos brotos e sementes ainda não levados pela brisa Gasturava-se na grama baixa e picante nivelada no jardim recém-cortado Levantava a mão direita no ar (a esquerda segurando as rédeas) em dia de ventania no galope bom do potro malhado Navegava ligeira contra a formação da próxima tempestade ainda a ameaçar As palmas que no vento suavam quando ela viajava pra muito longe, e no caminho ia fazendo anteparas engraçadas à resistência do ar (era como se existisse alguém do outro lado a lhe contrapor uma outra mão).

Terradentro

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Delívrios III : Grande Sertão: Veredas ----------- Terradentro Candeeiros, esmeraldas águas verdes da alma por botes entre    rugas de cristais e pedras --Moço, jamais se apreça o que entra pelos olhos nestas vidas, nestas gemas em paredes de terra Águas do chão do deserto, sertão formas em levante contínuo escarpados               solidão. Bandeiras e coroas, Veredas: o domínio da selva (ou como diria um grande amigo "O relegado do espaço".) Geografias de gigantes no abandono   que se quer nação. jagunçando o miolo da vida para nutrir os olhos em reverência ou revelação Gerenciar quereres e continuar amado desejo apenas de não ser esquecido? Vida é assim miúda, gente Menor que seja sigo, não importa. seguir sempre ruminando no caminho contra toda tempestade como pedrês   animal de sela ferido no destino que não aceita é cumprindo que se rebela é aceitando que se rejeita Destino?