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Massa

"Debulhar o trigo Recolher cada bago do trigo Forjar no trigo o milagre do pão E se fartar de pão" (Cio da Terra, Milton Nascimento & Chico Buarque) -------------------- O pecado justificável da gula retribuição ao gosto do pecado -- para os que acreditam em pecado -- Sensualidade permitir que os sentidos mostrem o quanto se está vivo mordendo em garfadas a pasta que desce doce pela garganta O pão besuntado de manteiga A massa assada sendo nosso primeiro chão O grão, as mãos sobre o grão geração após geração Respirar, pausar, não ceder Perceber, no mastigar as vidas envolvidas A nobreza do plantar As coragens dissolvidas As incertezas de colher Segue o moinho moendo o trigo roendo vidas pra fazer o pão captando ventania e transformando em poesia o moinho, sempre                         o moinho

Gorgonzola

Como se o Demo viesse à Terra e fecundasse  o cio das vacas com o teor  de alguma coisa profana E lá na frente -- depois de extraído o leite fermentada a argamassa o tempo generoso e a umidade pulverizando os veios azuis -- Viesse, súbita lúgubre e bem vestida -- a morte com seu perfume  -- e empesteasse tudo com o desejo insano de provar o sabor Ácido, doce, gorduroso, amargo (em suma, profano) como o que incita à compulsão Com a larga taça de tinto em diabólicas tretas A língua solta dançando no céu da boca

Manteiga

A metáfora da manteiga Bela quando soa lúbrica em pasta mistura de ervas mel, noz moscada ou alecrim O neutro adocicado batida, batida, batida A evolução da gordura que um dia foi leite tocando alto o  palato Arvorando-se em espumas no fundo largo de frigideiras Derretendo-se aos poucos até tornar-se uma outra coisa Mas ainda assim, à mesa milagrosamente sendo a mesma A felicidade-em-verso do chef-em-aprendiz quando se prova do molho e a moça diz, toda satisfeita: Que delícia,  me dá a receita!

A revolução da comida

O paladar sendo paladino de uma outra ordem Desacelerando o processo da comida Questionando o progresso como medida Óleos e cores  Azeitona dos campos espanhóis integrando o cheiro verde de oliva O verde veemente das couves trazendo pela língua Vermeer de volta à vida O feijão e o tomate lavrados pelo pequeno agricultor que vai chegar em casa feliz com o sustento dos filhos Aspirar o cheiro intenso da laranja sobre-a-mesa em suculento convencimento O olfato integral sobre o alimento que encanta a boca e metafora-se em versos E, no calor do estômago, aproveita à substância que segue seu destino fazendo poesia e ritmo no alçar dos intestinos

Cru e cozido

Sair à caça como movimento e ritual alcançar a forma do espírito animal comer a carne ainda sangrando do bicho que se acabou de matar Adquirir assim a sua essência se é bicho de vôo, aprendendo a voar se é bicho de força, aprendendo a lutar se é bicho de mergulho, afundando no mar Capturar no laço o bicho em pleno vôo na ponta desta flecha repleta de tinta fazer com que a tinta se espalhe na página e o sangue azul  jamais se apague Transmutar assim a sua essência se é bicho de vôo, seguirá a nadar se é bicho de força, seguirá a voar se é bicho de mar, aprenderá a caminhar

Cardápio

Irmãos, amigos, a molecada toda aguardando a bóia as primas mais velhas comandando a bagunça azeite e fogo roubados à vera no canto da cozinha aprendiz de Prometeu levando luz aos confins do mundo correndo moleque ao longe dos velhos olhos o bolso de sal, fígado de frango e algumas abobrinhas

Magia

a altura do fogo, o tempo, o sal cozinhar é a grande arte artifício de pura alquimia transformar com tato o arroz bruto alterar a química original dos frutos e isso tudo sendo fluidos futuros a enfeitiçarem os tubos e órgãos nutrindo um corpo em movimento para que, até um dia antes de morrer não se esqueça de estar sempre a se mover

Moqueca

O tempero índio na veia ervas, receitas com coentro o calor-quentinho por dentro quando vem a mim a tua ceia

Mitológicas

para Lévi-Strauss --------------------- O cru e o cozido Do mel às cinzas A origem das maneiras à mesa O homem nu que momento sublime quando a ciência, -- coisa tão rara -- se encontra com a poesia em meio ao mundo triste tristes trópicos tristes gentes de tantas escaras

Feijoada

O rito, o preparo, a celebração aguardente de cana, pé de porco com couve, arroz e feijão Cozinhando como o alinhavar das gentes, a remota era das cavernas, assando a caça Ao redor de fogueiras as narrativas configurando vidas desenhando identidades Sangue de bicho tinta de planta pó de carvão Cinema de sombras vivendo vidas em paredes ancestrais Onde antes não havia o tempo nem a história a comida sendo a via O primeiro chão

Mal passado

Vegetarianos estão certos, nesse ponto Nada há que persista na carne, de tanta força que justifique a matança contínua sobre o planeta Em algum momento, nós, ainda carnívoros teremos que optar, com ou sem fundamentos se fingimos ainda uma questão nutricional Ou admitimos, no fundo, como inconsciente que o desejo da carne é mesmo a vontade inconfessa de morder alguma coisa que berra e sangra

A sedução do acúcar

Quando a vida se insinua pelas beiras e antes do desejo molhar a língua A memória toma seu lugar Bala de coco que se dissolve aos poucos brincando de pique no céu da boca Quem te ensinou a arte, Maria Essa sedução de açúcar que amolece até a alma mais fria?

Spaghetti

Manteiga, açúcar manjericão e muito alho, é claro (Vampiros não ortodoxos) Secos no sangue desse sugo Molho denso de tomate Contagiando a massa pela vontade de ser comida

Tchekhov

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Leitor voraz de contos, já me deparei com tudo que é estilo, pulso, gosto, época e arte ao longo da vida. Mas, nesse gênero literário, -- talvez o mais amplo em liberdade que há -- não vi nada ainda como o texto desse grande autor. Parafraseando G. Rosa, é das coisas que você lê não só pela literatura, mas para a vida. Obras completas "Contos de Tchekhov", em 10 volumes, Ed. Relógio D'água

Sessão Polanski: a genialidade do maior cineasta vivo, numa ode ao cinema

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Diamantes de Sangue

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Um ano após Brumadinho Dedicado às milhares de  vidas (animais, homens, árvores) ceifadas pelo  rompimento criminoso de mais uma barragem de lama da Vale Uma das empresas que -- mundialmente -- mais desmatam, destroem, poluem, sonegam e no entanto, uma das que mais se disfarçam em maquiagem verde pra tentar amenizar dua imagem e o impacto duramente predatório e extrativista padrão terceiro mundo O silêncio diante da natureza é sabedoria O silêncio diante da opressão é covardia Toda arte que se cala ou toma como cavalo de batalha apenas aquilo que enaltece o próprio ego  é iníqua Ver é enxergar para além de si ---------- "Que raízes são essas que se arraigam, que ramos se esgalham Nessa imundície pedregosa? Filho do homem, Não podes dizer, ou sequer estimas, porque apenas conheces Um feixe de imagens fraturadas, batidas pelo sol, E as árvores mortas já não mais te abrigam, nem te consola o canto dos grilos, E nenhum rumor de água a latejar na pedra se