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Mostrando postagens de maio, 2018

Moinhos

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Delívrios II : D. Quixote Selai meu melhor cavalo, senhor! Minhas armaduras, minha espada! hoje partirei com destino ao mundo e na falta de inimigo á altura do instante, lutarei contra o que restou dos gigantes --eu mesmo, sozinho (as criaturas que vos desafiastes) enfrentando em combate os moinhos ----------- E se o mundo representasse no fundo, nada além de paródias, não houvesse de resto qualquer questão pela qual valesse a pena imolar-se em qualquer dor? E se tudo fosse nada além das cenas de um filme sem sentido, sem roteiro sem fim aonde não coubesse  um diretor? Brotaria de cada canto uma nova planta, respiraríamos outros ares, novos propósitos justificariam, ainda que de forma passageira, tantas vidas que  se apegam a olhares exteriores que não poderiam defini-las porque são olhares mesquinhos e desanimadores, olhares cansados sobre as possibilidades de viver? Aí se ergueriam prantos diante de tanto terror , aí se instilaria o riso  (esse libertador), bot

Ahab

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Delívrios I : Moby Dick -------- Ahab Penumbra silêncio   erma calmaria à derradeira hora da noite adernando as sombras como açoite afiada lâmina da utopia Antes que o sol assuma o leme ainda treme, vazia em sua casa a perna extirpada pela fera louca mordida mastigada como se fosse nada sugada pelo vácuo de uma imensa boca Cismando só e sinistro sobre o convés antes que o lume da mente desapareça os olhos perscrutam sob o mar escuro até que o raiar do dia aconteça Aonde é que a coisa se esconderia aonde caberia tamanha força ignorada para qualquer corpo em terra canto nenhum a albergar esse animal sozinho nem a casa nas profundezas do inerme leito marinho A coisa que destrói, engole, processa e  nada à sua frente a detém quando falo abertamente do monstro falo um pouco de mim também Em que desfiladeiro profano abandonei totalmente minhas asas quando nos abarcou a tempestade em alto mar e todos os homens clamavam por sua

INFÂNCIA

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I. Nasci duas vezes A primeira, de parto natural Primogênito das dores e suores De minha mãe A segunda, Foi quando minha mãe Leu para mim As mil e uma noites II. Abre-te Sésamo! Arcas e mais arcas de ouro Rubis do tamanho de laranjas Esmeraldas e especiarias Tesouros inimagináveis Belas odaliscas de grandes olhos negros Embebidas entre luz e pele Nos seus tecidos diáfanos Cavernas secretas no meio do deserto Mundos descobertos por um menino esperto Camelos, incenso e tâmaras Tapetes que voam a um simples comando Gentes que habitavam ora palácios Ora o mais sórdido das ruas Gentes que singravam os sete mares Em busca do desconhecido Exóticas comidas e lâmpadas mágicas Gênios Que sempre atendiam aos três pedidos III. Um dia (Acho que só consegui reparar bem quando completei cinco anos) Descobri que havia as meninas Raça de criaturas diferentes, aquela Cabelos compridos, vestidos coloridos Sorrisos e pirraças Horas podiam brincar com a gente H

A piscina

O sol desossava a laje sem dó em dia de verão puro janeiro Aquelas crianças não conheciam a Disney, o shopping nem nada famoso no mundo inteiro mas não desejavam outro universo para além da sua caixa d'água de Eternit Pela eternidade de um dia quente A nave espacial viajando                      A bordo, quatro passageiros

Nunca vi tanta água

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Deus! é tanta água tanta chuva que não para uma chuva grossa de tempo frio, já cortando súbito a meia estação como se a terra toda fosse nada Deus! desde a última noite o mundo deságua é como se ao desejar tanto a chuva para que não houvesse mais a seca matando as plantas para que todos os bichos saciassem sua sede para que os rios tivessem mais vida para que os poetas tivessem outros motivos  e a vida em si se confluísse em poesia tivesses atendido ao meu pedido assim, meio sem jeito , Deus, em demasia Deus! desagrave meu pedido sou alma de tantas dúvidas e nem sou daqueles que tem merecido é tanta chuva que não há mais bolso em que se caiba tanto poder aplaques um pouco a Tua ira amenizes um pouco esse chover com dias mais felizes antes que os bichos afoguem em tristeza  as plantas percam as raízes e o mundo inteiro se dissolva em mágoa Deus! nunca vi tanta água nunca vi tanta água nunca vi tanta água... ,

O Tempo Redescoberto

                                                                                                 para Marcel Proust ---- No primeiro dia, enfiei as mãos na terra arranquei o mato, reguei meu jardim e pus a alma pra secar ao sol No segundo dia, cuidei dos cachorros dei atenção especial aos passarinhos e varri o quintal No terceiro dia, fiz meu próprio bife com feijão preto, muito alho e um ovo (um não, dois) com gemas moles por cima No quarto dia, rabisquei um poema No quinto dia, li um capítulo inteiro do romance que adiei por tanto tempo e ainda assisti a um bom filme No sexto dia, depois de ligar para um amigo com quem há muito não falava apenas para ouvir sua voz fui  passear na pracinha no intervalo de almoço, num clima de sol à meia estação, ver de perto como é que andam as pessoas que eu não conheço No sétimo, tomei um café bem forte logo pela manhã e me deitei na minha rede preferida na varanda pra ler o jornal Agora, enquanto espero o tempo lá fora

A origem

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Toda origem  guarda um pouco de tragédia.  Se na ambiguidade do duplo que nos constitui,  a  figura que te inaugura é  naufrágio,  a outra pode ser resgate,  salvaguardando os frutos  sob o mundo que os abate.  Não há destino que possa mais  que o olhar de mãe,   que não quer ser substantivo  pra se afirmar verbo intransitivo do amor incondicional  mesmo quando tudo joga contra, mesmo quando o mundo joga contra, as paredes das coisas desabam sobre você e  e o destino, tantas vezes vilão , torce o osso da mais recôndita esperança, e  todo o investimento dá com frequência  em algum desapontamento essa coisa-de-mãe que permanece acesa  em toda mulher que ousou ser,  e jamais arrefece. Contrariando pressupostos filosóficos, há uma beleza-em-si em ser mãe, que não depende de mais nada, nem mesmo do sucesso ou insucesso do filho que se pariu no mundo. Porque ser-mãe é algo do reino do absoluto. Perde umas lágrimas, umas rezas,  umas noites de sono,  dá com palmadas, carinhos, conv

Espírito de ar

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.Beija-flor no caminho errado do vento se confundiu e adentrou minha casa. Voa pra frente, voa pra trás, dá aquela paradinha como o ás da ginástica olímpica nas argolas, só pra se exibir. Em vez de abrir logo o raio da janela e deixar o bichinho ir embora, fico ali, olhos arregalados e boca aberta, confirmando como é impossível que ele exista do ponto de vista meramente físico. Antes que outras metafísicas me invadam, abro a janela e ele se vai, ainda exibindo na despedida as paradinhas no ar. Beija-flores são entidades impossíveis, me convenço. A partir de amanhã vou plantar mais flores no jardim. Beija-flor, pousa ni mim.

Depois da chuva

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Como não seríamos tocados pelo sol que vem subindo a encosta depois da tempestade, como não seríamos outros depois de tantos dias expostos ao frio, ao calor, à chuva, às intempéries mas também à nutrição de raízes, folhas e espirito pelos ventos que nos conduziram em cada dia desde o nosso nascimento até o segundo que ainda não terminou na expiração, como deixaríamos de abençoar os frutos de tudo que fizemos, fomos ou quisemos ser nesta vida, se tudo no fundo é essa grande energia incontida, contínua, implacável, que não pode nem jamais deve ser parada se não formos no fundo apenas rascunhos de almas mesquinhas albergadas em corpos que não mais brilham. é o cantar do galo que racha o tempo na estréia da manhã, esse monte de salvaguarda passarinhos que desperta algo que ainda dorme quando tudo o mais lá fora já acordou faz tempo, é o passar da chuva, bela, essencial, transfiguradora de solos estéreis em terras férteis, potência capaz de mudar uma afecção qualquer, tola, perdida, em al

Varal

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Para F, pela parceria de uma vida. ------- "Poesia é a arte do delírio" Abandone as fantasmagorias! é o que diria a vida, se falasse assim tão delicada e incisiva no meu ouvido Porque tudo que é bom tudo que ama tudo que é da esfera do afeto pressupõe corpo E apenas as doenças é que se multiplicam por ausências infilttrando-se no que não é matéria para suprir  lacunas consentidas por conceitos Viver é ter vivido. Retorne a mim teu  corpo exuberante exótico vibrante de sólidos e formas que tenho a sorte imensa de possuir, e que me entorne na alma o caldo da memória rica de um passado que não passou porque está em tudo O que as nossas roupas ainda diriam de nós,  que não tivesse sido concebido antes em gestos sem pecado, em cores, em cheiros, pelo discurso eloquente e descuidado dos nossos corpos sobre a grama ainda úmida  de sereno neste sítio? O que restaria para secar ao vento, agora que todo desejo, toda fome e toda comida absorveram-se mutuamente, se

Sou de gêmeos

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Nada como dormir um e acordar outro Sou de gêmeos bom dia, irmão sol!

Ensaio sobre o duplo

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("Clube da Luta", de David Fincher - 1999) Anjo e demônio Bem e mal Jeckyll e Hyde Yin e Yang Os duplos que nos compõem, a ponto de sequer se poder pensar seriamente uma integridade, um único corpo autociente, possuindo algo unívoco a que se pudesse chamar consciência  de si sem essas permanentes divisões.  Como habitar com elas, entre elas, assimilando-as se a prevalência de qualquer uma, em absoluto, ameaçaria a perda completa do conjunto . A prevalência do bem não é menos pior do que o domínio do seu contrário, e isso vale para todas as outras analogias. Essas e outras infinitas questões, presentes no coração desse que é, sem nenhum exagero, um dos filmes mais importantes da segunda metade do século XX, realçando ainda mais o genial trabalho do escritor ucraniano/americano Chuck Palahniuk, no romance de mesmo nome.  Contudo, ao passo que se trata dessa obra de tal magnitude e densidade temática, resta ainda assim, até hoje, como uma das obras  mais inco

Resiliência

Racional - sentimental Profissional - amador Lógico - intuitivo Corpo-em-terra - aviador Equilibrado - emotivo Razoável - desesperado Previsível - destemperado Matemático - artista Cristão - cientista Individualista - solidário Mais-ao-céu / tanto à Terra Gregário - solitário Trabalhador / ora direis ouvir estrelas Pragmático - viajandão Materialista / ah meu Deus! Urbano / bicho-terra-mato Sério  - gaiato Efusivo - melancólico Contido - gesticulador Tranquilo - curioso Mesquinho - generoso Silencioso - verborrágico Conformado - poeta Covarde - temerário Adulto responsável - criança sem juízo Violento  - conciliador Seco - amoroso Rancoroso - superação Pai - coração Parceiro - todo abraço Doente - corpo indócil Louco - a conquistar No fundo, o cálculo todo é bem simples: sou apenas o conjunto das negações do que quiseram fazer de mim (sem limonada no final)

O homem do lago

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*Ensaio sobre "Walden", de H.D. Thoreau "Eu  fui  à  floresta porque queria viver deliberadamente ...  Queria viver  profundamente, e sugar toda a essência da vida. Acabar com tudo que não fosse vida. Para que, quando a minha morte chegasse, eu não descobrisse que não vivi." -------------- (H.D. Thoreau) 1)Não existe releitura, porque toda leitura é sempre a primeira Se não é possível fazer voltar o tempo, isso não impede que sejamos outros, em experiência e olhar, no momento futuro em que lemos novamente o que nos tocou um dia. Sendo honestos por virtude e por necessidade de poupar tempo, confessemos logo a verdade: não existem releituras, nem de livros nem da própria vida, porque toda leitura, como cada vivência, é sempre  primeira e única. Heráclito , o grego, já sabia, e essa é mesmo aquela velha história do rio no qual não se banha duas vezes nas mesmas águas. Da segunda vez, as águas serão outras e nós também. Para raiva de Parmênides, que achava