RESENHA "ABUSADO" (Caco Barcelos , Ed. Record) Desafiando o famoso toque consumista confesso de alguém que tem dificuldade em administrar a própria compulsão de comprar sempre mais do que consegue ler, de repente dou de cara com o livro de Caco Barcelos, parado há tanto tempo na estante e esperando uma oportunidade, entre tantos outros ainda não lidos. Eis que a oportunidade finalmente surgiu , depois dos últimos fatos violentos relacionados à cidade do Rio de Janeiro e amplamente divulgados pela imprensa. Uma curiosidade mórbida sobre um tema do qual tantas vezes ouvi falar, mas que de perto conheço tão pouco: a antiga história dos conflitos entre morro, zona sul e o comportamento segregacionista que existe institucionalizado nessa cidade desde sempre, uma cidade culturalmente rica e contraditória até as raízes, e que em tudo reflete uma espécie de painel orgânico do Brasil. A curiosidade sobre algo que pudesse me dar um limiar mais profundo e contemporâneo sobre o
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A tempestade
Renascendo depois de um seco e tenebroso inverno, eu vi sua chegada verde, anunciada, úmida, por entre chuvas temporais, calores estivais flutuando cheiros. Eu e as árvores olhando nuvens na esperança da sua volta. Os arautos de vento que dançam janelas, entrevistam portas e recomendam gotas, estes sabem as notícias antes que o mundo as faça. A chuva tem sua escola de espreitar o momento certo. Contempla-se, de uma janela, esse liquefazer de todos os seres vivos, como se através do olho mágico de uma porta secreta, eu pudesse contemplar o próprio mundo em espiral infinita, movendo-se no ritmo da torrente seguida, enquanto uma leva de seres felizes por poder navegá-la sem paradas, sem atropelos, simplesmente flui. Sob a ponte de madeira grossa mas incompleta em sua latitude, ruge o rio vermelho, esse temeroso som desbarrancador (familiar a quem habita suas margens), curvando violento poucos metros à frente. Jangadas bananeiras, sem passageiros no convés, com cabeças mil folhas,
O riso
Por dois marcantes estados de espírito, o homem frequentemente contempla os deuses, no tempo fugaz de sua singela existência: o trágico e o riso. O trágico, porque rompe com todos os artifícios, soterrando as futilidades, convenções e aparências características da vida social em todo o planeta, desde que esse tipo especial de primata saiu de suas cavernas coletivas para almejar o domínio da natureza, projeto mais ambicioso para si próprio. Eliminando a dormência inata do ser, a dor e a prostração inerentes à percepção da tragédia ainda capacitam o olhar e os sentidos hipersensibilizados a experimentarem o sofrimento em sua forma mais pura, trazendo consigo a possibilidade da visão fulgurante, a capacidade do ser absorver o impacto diretamente em seu peito, sem qualquer tipo de anestesia... Toda a força da vida, em sua forma mais bruta. Naturalmente, isso não é algo desejado, nem do ponto de vista do indivíduo nem muito menos do grupo. A manifestação do trágico é quase semp
O homem que queria ser letra
(reeditado em 19-08-15) De tudo que eu um dia quis ser na vida, de tudo quanto é vocação, tendência, destino ou moda, ser gente é o que mais me entedia. Por isso, enjoado de ser gente, enjoado da humanidade e de suas possibilidades mesquinhas, um dia decidi ser letra. Mas não queria ser letra comum, igual, repetida ou banal. Pra eu me tornar letra tinha que ser assim, Letra mesmo, com inicial maiúscula, espírito e forma, letra comprida, continuada, com sentido, abstração e uma imprevisível conexão do tipo que não faz parágrafo para mudar meus assuntos à medida em que evoluo. Letra do tipo em que não faz ponto pra respirar entre uma montanha e outra, do tipo que cria títulos que podem ou não ser lidos por pessoas ou deslidos por não-pessoas, reinventados por crianças esses eternos criadores (o que importa?) Na missão-nova de ser letra não quis ser mais uma igual, ainda que exemplos belos não me faltassem, ainda que não faltasse também admiração por eles, os criadores absolutos de
ENSAIO: Amor e sofrimento no "Werther", de J.W. Goethe
"Ah, se pudesses expressar tudo isso, se pudesses imprimir no papel tudo aquilo que palpita dentro de ti com tanta plenitude e tanto calor, de tal forma que a obra se tornasse o espelho de tua alma, assim como tua alma é o espelho do Deus infinito".... ("Werther", J. W. Goethe) "E se adormecesses? E se, no teu sono, sonhasses? E se, no teu sonho, subisses aos céus e ali colhesses uma estranha e bela flor? E ainda se, ao acordares, tivesses a flor na tua mão... Ah, como seria, então?" (S.T. Coleridge) O que não se faz por amor? Até onde se pode ou se deve ir quando se ama? Onde está o sujeito ou o objeto no meio da sublime sensação quando ela ocorre, tornando por vezes seus onipotentes atores em meros fantoches e objetos nas mãos de forças que surgem e se desenvolvem à margem da simples razão humana? Aonde se erguerão agora os conhecidos e duros limites do mundo físico que de repente parecem se dissolver no próprio ar? Existe diferença significativ
Terra dos justos
Coletivo sacudindo nas vias urbanas, por volta de 7:30 da manhã de uma quarta-feira e Alzira já estava a bordo, carregando no colo um vaso de plástico preto, cheio de cravos coloridos. Ela é morena, aí pelos seus sessenta e poucos, baixa e circunspecta. Seus óculos de lentes grossas escondem olhos tímidos e um olhar perdido nas paisagens lúcidas de abril que passam pelo vidro lateral do ônibus. Quando não olha para fora, mira apenas seu vaso de flores, alimentando-as com suas expectativas. Não é dia santo nem finados, não é feriado, não é nada, não é nada... Mas hoje completa o primeiro ano da passagem do Reginaldo. Segue o ônibus pela via, sempre com aquela delicadeza habitual dos motoristas modernos. A cada novo ponto, pára bruscamente, acelera até o máximo de primeira e segunda marchas, então subitamente pára de novo, metendo o pé no breque e sacudindo os passageiros impacientes que reviram o estômago antes das 8 da manhã. Uma buzinada daqui, uma reclamação de um outro
Os tobogãs de agosto
Peito aberto na chuva Na fuga da tarde Matar aula, aventura Que nunca tem idade Duas rodas sobre o morro Espírito, velocidade Luzes, Exposição Na feira da cidade. Gostando dos pingos Batendo no rosto Os ventos de agosto No alto da colina Na boca, o gosto ainda doce Os beijos daquela menina. Chicletes, música boa, Balas de hortelã e adrenalina. Parque da festa, de diversões Gente modesta, maçã-do-amor. Meninos pequenos, meninas-com-as-mães Bate-que-bate , meninos-carrossel "Moço, um ingresso!", uma entrada pro céu Roda que gira, gigante-que-bate Gira-que-bate essa roda de parque Festa do povo, cheiro de pólvora Crianças que rodam Traques-rojões Túnel do amor, trem do terror É festa na cidade do interior. Montanha-russa, algodão-doce Crianças adultas, adultos –crianças Ingressos pros sonhos Cavalos e cores girando Em um mundo de sonhos Fantasias, pipoca, choro E muitas lembranças vãs Memórias de alg
Rimbaud
"Detesto todas as profissões. Mestres e oficiais, todos campônios, ignaros. A mão que empunha a pena equivale à que guia o arado. - Que século manual! - Jamais me servirei das mãos! Depois, a domesticidade leva demasiado longe. A honradez da mendicidade exaspera-me. Os criminosos repugnam-me como castrados: quanto a mim, estou intacto, e pouco se me dá..." ----------- (Rimbaud) Por que se escreve? Para quem se escreve? Sobre o que se escreve ? Destoando intencionalmente da provocativa chamada ao engajamento proposto por Sartre, entendo que e screver é nada mais do que mirar-se em espelhos. O impulso de pegar uma caneta, um lápis, um teclado ou um giz e sair rabiscando raivas, desejos, frustrações, impressões, histórias inventadas ou acontecidas, pode surgir pelos mais variados motivos. Talvez por uma necessidade primordial e inconsciente de tentar ser lembrado, aquela noção de não passar pela vida incógnito, ou quem sabe, de poder perpetuar-se no