Postagens

Mostrando postagens de novembro, 2019

Manga Verde (download - pdf)

Imagem
Manga Verde - contos A idéia era publicar, um a um, todos os contos no blog, no formato próprio de blog, com caracterização e imagem, como aliás já venho fazendo  há um mês, mas no final das contas isso dava um trabalho dos infernos e eu ando muito cansado de tudo neste fim de ano, daí resolvi  disponibilizar na íntegra o próprio livro, em formato . pdf be my guest ! -------

O Funeral

Imagem
Caído na rua como um simples objeto sem vida, um pedaço de pau ou de plástico, não sei. Mas havia algo de heresia e excessiva falta de cerimônia naquilo tudo, na forma como um passarim expunha seus esqueletos inanimados assim ao mundo. Aquele bicho morto merecia algo mais que ser simplesmente esmagado pelas rodas dos carros e solas de sapato anônimas. De vez em quando, ainda se submetia à provação de ser farejado de perto por algum cão de rua, que, após uma ligeira constatação olfativa, logo perdia o interesse e se varria de volta ao seu destino incerto. Da varanda alta de casa, antes de sair pra escola, logo cedo eu via aquele ser se desfazendo cada dia mais um pouco, e enquanto eu contemplava no chão o formato de suas asas pretas e brancas aos poucos tornando-se o cinzento terroso, ia percebendo a novidade da decomposição ir tomando forma enquanto simultaneamente desconstruía-se o objeto mágico e voador que a própria vida um dia tinha botado no alto do mais alto ar.

A linha

Imagem
Estilingue em punho, mira um tanto difusa. Já naquela idade, os olhos não iam bem no foco do seu destino. Alguém já suspeitara, em casa, mas os óculos estavam sendo adiados ainda um tempinho para o bem do menino. Estilingadas de mamona pontuda, um saco delas, bem verdes. Pedra, não podia. Braços doendo, pescoço doendo, olhando pra cima e desafiando a força da claridade solar há horas, mas sem acertar nenhuma, até que súbito aquele um pássaro no meio de cem outros recebe a bomba no peito, desafina o corpo para os lados e vem sobressaltando asas até bater o chão, num baque surdo. Andorinha do mar, aquelas grandes, de canto enigmático e gutural. Surpresa! Nunca tinha acertado nenhuma nesses anos todos de miras perdidas e muito caroço de mamona arrancado nos arbustos sofridos da rua. O júbilo de caçador bem-sucedido passara mais rápido do que um raio e o choque foi maior do que a suposta glória. Acontece que o pássaro não morria como nos filmes. Aquele bicho ficava se deb

Manga Verde

Imagem
Para Déia minha vó, que me ensinou a avoar Tocada de meninas e meninos espalhados pela campina de Chácara, naqueles sábados de manhã, em meio ao capim verde e gordo, sob o céu azulante de maio. Com muita ansiedade, vivíamos essas aventuras de férias na companhia de muitos primos, sempre vigiados de perto pela nossa avó, a quem tratávamos carinhosamente pelo apelido de “Déia”. Na tripartição temporal de nossas emoções, sempre nos envolvíamos intensamente nos “antes”, “durante” e “depois” dos piqueniques, jogados como felizes bezerros sem dono naqueles pastos morrados. O “antes” consistia na eletrizante idealização, nas estratégias e planejamentos, no ritual de todos os preparos do dia anterior: a expectativa dos bolos e biscoitos variados, geleia e sucos ralos sacudidos, adocicados e guardados em cantis de plástico recém-comprados no armazém da esquina. Cantis que, além de não manter gelados os líquidos, ainda tinham o poder de adicionar seu gost

Nunca fomos tão jovens

Imagem
Ela, R., a pele cor de giz, os lábios sempre marcados por aquele batom vermelho-sangue, o rosto de maçã, os olhos matadores de se perder uma vida e os cabelos pretos e lisos nos ombros.  O gênio do cão, para arrematar o conjunto: a frieza capaz de matar  de frio um esquimó, quando queria ou o calor em forma de gente, nos dias bons, alternando-se tudo isso sob a pele da mesma criatura como as várias luas no céu. Isso, porque ainda não chegara aos 16, mas sua autoconfiança, o corpo já plenamente formado e a sensação de estar tão à vontade no mundo como  no quintal de casa, davam a impressão de que tinha mais idade. Ele, K., já com 17, alto e topetudo, mais magro do que propriamente forte, andar rápido e vacilante, a carteira quase sempre vazia e a expressão facial de um ar perdido, aliada a uma inteligência crítica e desafiadora surgida precocemente, não perdia a hora mais esperada do dia. A hora em que o coração pulava na garganta, enquanto se desenrolavam aq

Da série: redescobrindo a própria biblioteca

Imagem
Ed Ayné, B Horizonte, 2016 Destruindo (uma vez mais) o mito da alienação e "coisa etérea " dos poetas e da poesia. Independente do estilo,  da forma encontrada para expressáo, o poema sempre foi essa arte superior da palavra,  e o exercício da poiesis talvez o que mais se aproxima de uma verticalidade de presenciar, sentir e prospectar o mundo, em seus infinitos labirintos. A inteligência luminosa de um grande poeta através de uma coletânea de aforismos, pensamentos soltos a respeito de tudo. Temas políticos,  filosóficos,  as grandes e pequenas questões,  pensamentos e impressões sobre estética,  sobre a  natureza, vida social etc Um prazer de leitura e uma incrível demonstração da profundidade de um olhar-de-poeta sobre o viver.

Cinema grande (apesar de)

Imagem
Beleza de filme: um olhar sensível e corajoso sobre o feminino na história recente do nosso país. Mais um caso (nem tão comum) de feliz relação literatura x cinema, com uma aula de dramaturgia. A noção exata de como é possível fazer grandes coisas no cinema sem os orçamentos bilionários padrão americano Salve o cinema nacional em tempo de bestialidades...

"A Fita Branca" (Michael Haneke)

Imagem
“Tenho a sorte de poder fazer filmes e por isso não precisar de um psiquiatra. Posso transpor os meus medos e problemas para o meu trabalho. É um enorme privilégio. Esse é o privilégio de todos os artistas: poder transpor sua tristeza e neuroses para criar alguma coisa.” —Michael Haneke ---------- "A Fita Branca", grande obra desse mestre do cinema, perscrutando uma ferida antiga dentro da sociedade alemã, ainda antes da segunda grande guerra, localizando e diagnosticando no tempo o exato momento onde as condições minimalistas de base moral foram fincando suas raízes nas instituições, tudo muito difuso, silencioso, reprimido, criando um clima favorável ao surgimento e aceitação futuro da doutrina nazista, o não-questionamento das ordens, a descerebração, o fundamentalismo "cristão"-ariano que, aliado a uma distorção da ciência tornada verdade pela massiva propaganda, avassalou o planeta com seu ódio e sua capacidade de planejar e difundir o mal. A analogia numa l

Leituras 2019 (parte 2)

Imagem
Trilogia "Cenas da vida na província" - Infância - Juventude - Verão (J.M. Coetzee, Cia das Letras) A coragem e a eterna dinâmica realidade x autoficção das autobiografias. Os finos limites. O que somos para nós mesmos, que possa não ter passado pelos outros e que de alguma forma respire sem  ter sido inventado, remendado, surgido entre escombros, enfim? O que somos, coletiva ou individualmente, que não tenha passado já por uma "releitura" de uma certa exterioridade, a ponto de se confrontar mesmo o que é "o real",  e o que é "o imaginário", na efetividade da arte. A beleza de uma certa universalidade da arte, embora possa ter nascido nos rincões do planeta, um quadro, uma escultura, um texto que expressa uma pulsão surgida pontualmente, mas de forma inevitável de alguma forma narra por tabela estruturas tão semelhantes à nossa própria história embora o autor se enverede cada vez mais nas profundidades de sua própria existência?

Melhores leituras - livros produzidos no ES ou de autores capixabas em 2019 - poesia (registro feliz e notório da grande produção feminina na literatura)

Imagem
Fabíola Mazzini, "Rotina dos Ossos", Cousa 2019. No quase-apagar das  luzes em 2019, surge essa pedrada de Fabíola Mazzini. A variedade acurada dos temas, e a capacidade de lidar com sua complexidade usando palavras simples, é uma arma da poeta. Que aliás, não escapou à leitura atenta de um outro poeta. Com a palavra Alberto Bresciani, num prefácio tão marcante que tem caráter de um pequeno ensaio: "Em "Rotina dos Ossos" não passam despercebidas as tragédias sociais , a condição feminina, os ataques terroristas da época à nossa identidade,o desejo de  transfiguração, a vida em seu barbarismo Decompõe-se o amor ("a poesia é um solo a sete palmos do amor"), suas instabilidades e dúvidas, o amor assassinado por "estátuas de farda na praça pública". Fabíola Mazzini, "Rotina dos Ossos", p.27 Fabíola Mazzini, "Rotina dos Ossos", p. 24 Getúlio So

Filmes 2019

Imagem
Coringa, de Todd Phillips, absoluto. Do ponto de vista "sétima arte", perfeito. Fotografia, trabalho de atores, roteiro, música, tudo que é possível imaginar. Do ponto de vista temático, um  forte questionamento da sociedade contemporânea, seus valores, talvez deixando de lado o mundo macro, os discursos políticos mais comuns, o foco no "grande motor" da economia, da expansão imperialista, para concentrar no mínimo, no corpo, no cotidiano das pequenas questões institucionalizadas, e na forma como elas surgem, principalmente àqueles que de uma forma ou de outra encontram-se marginalizados dessa máquina. Uma saída pelo individual, lembrando o corpo indócil em Deleuze, Guattari, Foucault, contra a normalização das forças , uma rebeldia em favor da vida? Beleza de filme, uma crítica poderosa à sociedade de consumo e ao padrão "american way", que vem se impondo novamente sobre o resto do mundo, com seu alto preço a pagar, inclusi