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O domador de ventos

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Tarde vento, sol a pino. o elo: a seda , a cola e um menino. entre o morro e o mundo a contemplar pipas, alinhar vidas e sustentar o vôo em suas asas translúcidas num céu seco e azul de pura ventania. enquanto pequenos curumins inexperientes na arte de planar quedavam-se na beirada do campo para apreciação, os grandes pilotos se aprontavam para seus duelos. os menores, arriscando em jerecos feitos de papel comum de página de caderno ou papel de pão. levantados ao baixo do ar com muita corrida, poeira e pouca linha improvisada de costura: fina, imperfeita, linha rompedeira. os maiores, galopando ansiosos o início do esperado mês de agosto, meninada correndo em alvoroço, torvelinho se aventando no antigo campo de aviação. no lugar já não subia nem descia avião, mas era o aeroporto natural das pipas e a casa do vento.... agosto! agosto! Tarde de agosto, pacto  não escrito pela confraria do ar: agosto não tinha pelada a tarde inteira, o espaço do campinho ficava tomado por carretéis

O liquidificador vermelho

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Mais um domingo antes do almoço e eu folheando calmamente meu jornal, sentado na varanda, em minha cadeira favorita com um copo de cerveja na mão, enquanto me assustava com os infortúnios do mundo inteiro. Com poucos minutos nas páginas principais e tanta desgraça impressa com letras grandes, passo logo ao que interessa, o caderno B e o suplemento literário, que infelizmente vêm ficando mais magrinhos, magrinhos, a cada ano que passa, apesar de tanta coisa boa rolando por aí. Na arrumação entre as folhas de jornais emboladas no colo, cai de repente um folheto desses de propaganda de loja, todo colorido, com suas fabulosas promoções de tudo que é coisa pra importunar o sujeito tranquilo e pacato em sua casa num domingo de manhã de sol. Pego desinteressadamente o folheto, e logo na segunda folha dou de cara com um liquidificador vermelho brilhoso metálico, copo de vidro, com potência monstra de 600 watts, destacando-se entre pífias e tediosas televisões de LCD, I-Phones e seus pr

Todo poeta é só

Cada mulher traz em si um pouco de todas as mulheres do mundo Cada criança traz em si um pouco de toda a infância Cada velho comunga com o tempo suas sólidas vivências Cada jovem viceja promessas O poeta não mesmo que habite em companhia mesmo que viva coletividades mesmo que de vez em quando adentre o mistério das coisas apenas para saber como elas funcionam e com isso criar suas poéticas o poeta sempre será  um bicho sozinho em seu próprio mundo Incomunicável, intransferível e morre aos poucos, quando escreve enquanto todos imaginam que se diverte ou apenas cultiva passatempos Escrever é um ofício integral e ser poeta uma maldição Escreve-se quando o mundo vem até nós ou nós, num esforço, voamos até ele mas escreve-se principalmente quando sós e nada mais consola, tudo se desfaz e a única história é aquela que jaz debaixo de um monte de papel e tinta ou (coisa triste) nos bits gelados de qualquer computador

Receita de vida: exagero em tudo

Cansei de tentar ser Zen. Seja na vida, seja na comida. Querendo encontrar meu elo perdido interior Que certamente não era essa criatura encolhida Desesperançada e comedida da última quarentena Retomando o desatino como regra e a desorientação para o caos Que me governa. Vou me exercitar tornando-me novamente Por fora o gordo faminto  que sempre fui por dentro E vou começar mandando pro inferno o primeiro que me falar De batata-doce com peito de frango novamente Quero voltar ao café com ovos, bacon e muuuiiita manteiga Spaghetti dia sim dia não pra estourar logo todas as minhas taxas (que na verdade, nunca foram grande coisa mesmo) e arrematar tudo com vinho se eu aguentasse beber de verdade Suco de laranja, geléia, torradas e mais torradas Almoço com cheiro de churrasco mal passado (Carne, muita carne, carne vermelha mal passada e álcool) Com direito a muita sobremesa , de preferência Açúcar e gordura em doses cavalares Mousse de maracujá ou torta de limão Chocolate

A Pescaria

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(Filme: "Peixe Grande", Tim Burton 2003) Contar e encantar: v iver por duas vezes Tudo que é humano se fundou ao som da própria voz Este homem tem quase três metros de altura  o rosto deformado e um tamanho inútil ao olho tosco do capitalismo E o trabalho da imaginação o faz um gigante imbatível, amável, poderoso fundador de reinos Este anão é apenas a vergonha dos seus e o mundo não lhe dá valor A estória o transporta a uma terra distante onde justo sua pequena estatura tornará possível adentrar a fechadura para um paraíso escondido que alberga tesouros Essa criança é pobre e franzina,  e tem dificuldades de fazer novos amigos na escola Uma boa história lhe dará asas comida e roupas novas e ela falará de igual para igual com multidões encantadas com seu canto dom que descobre quando se permite sonhar Esse homem deseja o mundo e torna-se infeliz ao saber que o tamanho do seu peito é igual a tudo aquilo que amo

Lunar

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Mil canivetes laminados                        navalhas    afiadas  fatiando meus olhos                                em lençóis                       de puro vidro Como ousas vir até mim sem permissão exibir teu brilho de gelo e sal? Curativo cáustico sobre o mar de  minhas feridas, teu sopro que nunca cicatriza Acalentas o  peito de um morto com novas mordidas? Tua pele de pura seda fulguração e ciclo em labaredas de profundo azul A face sul que sempre se mostra a mesma inverte a senda do que se esconde há um outro lado teu morando longe que revoluciona o sangue de qualquer sonho humano Ano após ano,          por  milênios                    e   bilhões... Lua, nua, lua que poder é esse que exerces sobre as multidões?

O preço da arte

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Belo filme. A árdua vida de Gauguin, como Frida, Van Gogh e tantos outros,  para nos lembrar que num mundo como este, que a todo tempo joga contra, o artista é um forte, pelo alto preço que paga para existir, com seu trabalho. É conta pra pagar, é doença, é pressão do sistema e o parto ainda vem. Sempre "apesar de..." E isso tantas vezes  só funciona porque a outra opção, ou não existe em vias práticas,  ou quando há, costuma ser bem pior. Expressar-se através do seu elemento é, para o artista, como o respirar, como o batimento cardíaco, como beber água Natural, essencial, cíclico O paradoxo da arte, que só compreende quem lida é que, para potencializar a criação através da vida não importa ao artista perdê-la desde que o fruto se realize

PARA UM AMIGO QUE SE VAI

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(em memória do poeta  e filósofo alegrense Marcos Silva Oliveira,  que completaria 60 anos neste mês de abril) Nasci para ser incompleto esta a minha sina mas a ansiedade me extermina e cego do meu destino vou me lançando vida afora esbarrando em tudo e todos procurando aquele um-o-quê que falta (e nessa vida tudo falta) com o mau jeito e a inconsciência que também foi a de meus antepassados Em que lugar me prometeram a eternidade? Aonde estava meu momento intocável de poder tudo? Minha história humana irreparável de ser o dono do mundo? Para onde foi meu dom de dizer a essência das coisas ministrando minha dor disfarçada de torpe verdade enquanto o mundo assustado pairava no ar por instantes no aguardo do olhar ensandecido do meu mais pesado espírito? Viver a verdade sempre dói no entanto, sou feliz ainda agora, amigo porque você existiu e foi bom estar em seus pensamentos como você sempre estará  nos meus quando paro, mesmo que por uns segundos para perce

Apenas um homem

Abri o casco e vi e tinha apenas um homem ali Não um deus não uma criatura perfeita ou divina (apesar de tanto esforço) Não um monstro (apesar da queda) Sequer uma máquina Apenas um homem em tudo que isso tem de grande em tudo que isso tem de pequeno E aquela criatura com as vísceras expostas só fazia absoluta questão de uma coisa: que não o iludissem outra vez com promessas que não possuíssem o tamanho da Terra Abri o casco e vi: apenas um homem estava ali em tudo que tem de grande nos dias bons em tudo que tem de tédio e tragédia nos outros dias...                      era apenas um homem                              mas como era bonito                                      em sua fragilidade,,,

Guernica Tropical

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Touros negros  ao  sol de janeiro jornal nacional [...é carnaval !!!] Nas costas de cavalos que já refugam arreio  é força  fevereiro Rio de onde vem o tiro O suspiro nos braços que persistem e  alimentam a comunidade dizimada, fragmentada Segue em sangue a cidade em poças de vidas ceifadas Quem dispara também  recebe a bala outros brazis torsos negros em pontas de fuzis  ao sol de janeiro (de onde veio o tiro?)  Reproduzindo-se em seus cantos por puro desencanto os mesmos navios negreiros janeiro a janeiro: a cidade

Minerais

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Colecionava pedras. de todos os tipos. havia um monte delas dentro de caixas de sapato guardadas no armário do quarto e embaixo da cama. pedras de todos os tamanhos e formatos, uma paixão particular por aquelas substâncias frias e brilhosas depois de algumas horas na lavada de tanque  com água sanitária e sabão em pó. elas saíam do banho brilhando ainda mais, seus fragmentos de minerais compostos reunidos artificialmente na amálgama de alguma lava derretida que por puro capricho prensou ali químicas diversas durante bilhões de anos. ele enfileirava suas pedras, prestando maior atenção às mais novas aquisições. o branco opaco inquestionável do cristal, a translucidez do quartzo  rosa, a semipreciosa ametista e seus roxos místicos que ganhara do avô paterno na última visita a Minas Gerais. o próprio avô, que ainda constava na lista do estado maior produtor de gemas, com o mérito de uma das maiores descobertas de água-marinha da história. avô pouco letrado e um tanto ingênuo, que deix

Duas Rosas

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Elas se beijam, lindas ao meu lado na outra fila do cinema A morena e a loirinha (ambas de cabelos curtos) numa cena inusitada Cinema de shopping Uma tia enfezada vira a cara Uma outra faz com que o marido vire as costas Uns novinhos, mais atrás na fila   também riem desaprovando com o olhar enquanto articulam baixo as palavrinhas odiosas de sempre Logo à frente, no enorme cartaz que alimenta a  outra fila Vejo a pose de vencedor do mocinho [um mocinho matador, é claro] com a arma na mão Um filme de franquia conhecida --extremamente violento -- na tela gigante Esses mesmos espectadores daqui a dez ou quinze minutos estarão rindo dos socos aplaudindo os tiros comemorando as bombas com suas pipocas no balde  sua big soda coke de litrão enquanto uma população de um canto qualquer do universo é inteiramente dizimada por lutas inglórias e políticas ruins Eu, mais suspeito que todos pra falar da situação p

A poeira dos ossos

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Ausente mesmo quando está  Presente sem querer mesmo sem qualquer vocação Pai A aridez que cultivou teu ser geração após geração (chegando a ti violenta desde menino) Replicando teus modos, repicando teu sino quão triste missão Lágrimas secas como o leito rachado de um rio efêmero que há muitos anos não vê chuva Se o âmago da questão nunca lhe tocou os instintos (Que insidiosa razão) Se as regras tornaram-se rédeas a consolidar um antigo poder nada mais que uma obrigação Melhor o não-ser do que se comprometer apenas o corpo seco sem restar nada ao coração Pai Apenas o perdão e a mente imaginativa que recria sua própria história (veja a vida como é viva) reinscreveria agora tua presença mais sólida, mais amorosa em imensa e figurativa memória

Laços de sangue

Ramos, galhos Caules rebentos Fotos para o álbum Bem guardado A mesa posta na festa A velinha que sobre o bolo Se apaga antes de qualquer sopro Irmãos que soam estranhos Mesmo habitando o mesmo sangue Avós tios primos, toda essa gente De que nem lembramos o nome Dinastias lineares Hereditárias correntes De longe muito longe Histórias amargas não narradas A inimizade velada que se traslada Segredos que não servem de alento Rangendo quase calmos sob os dentes A alegria das grandes famílias, quase sempre É a partilha viva dos tormentos

Coisas de família

Banquete a céu aberto de Natal vinho, pratos e conversa solta beijos, farpas e veleidades meus verdadeiros irmãos estão nas ruas e não nesta mesa Enquanto finjo um social mergulho sozinho em pensamentos sobre a felicidade e sua bipolar condição entre tristeza e alegria A alegria é volúvel e todos a têm Mas a tristeza não: é fiel esta dama tardia dela tenho ciúmes e sei que não me abandonará jamais Enquanto a alegria exerce suas efemeridades de contágio coletivo que serão extintas antes do sol se por A tristeza já prepara seu enxoval                                              individual porque ela é existencialista e também gosta de atuar perfuma-se, treina diante do espelho durante horas o seu melhor olhar Enquanto a alegria desfia o enfado tempera no caldo morno o tédio e beija a superfície das coisas que dormem A tristeza estufa o peito e do mundo toma posse quando vem forte o respiro da noite e tudo o mais se ajoelha a seus pés A alegria me di

Húmus

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As mãos na terra unhas sujas de barro chuvada boa de ontem mergulhando no meu jardim perfume de grama cortada curta Buganvílias, cravos e alecrim unhas sujas de húmus alma limpa e longe Enfio a mão na terra -- assim, mãos nuas porque não gosto de luvas-- penetro mais fundo pra sentir o verdadeiro gosto do chão a terra sente e se abre, quente e doce em suas espirais Minhocas assustadas pelo inusitado seus anéis girando pra digerir o barro retiro carinhosamente uma a uma  e as deposito noutro canto --alguma destas pode ser um primo já falecido quando criança pode ser Napoleão ou um rei antigo  de França-- (ou quem sabe apenas  mais um delírio qualquer alimentado pelos budistas) Me volto à Terra, ao cheiro fecho os olhos e aspiro forte o perfume ferroso de folhas fermentadas e mineral pego punhado de terra nas mãos sujando até os braços amasso, vejo-a se dissolvendo ainda úmida espalhando-se deliciosamente entre 

Orgasmo

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(Klimt - "Mulher deitada" ------------ Para o capitalismo , liberação Para os pagãos,  ritual sagrado Para o comunismo,   revolução Para os cristãos, primeiro pecado Para reprimidos, a perdição Para os Hindus, tantra prolongado Para os puristas, contemplação Para os amantes, idolatrado Para os condenados, revogação Para os poetas, puro delírio Para obsessivos, um pesadelo Para os bem resolvidos, o equilíbrio Para os paranoicos, um desmazelo Para os temperados, a justa medida Para os aficionados, falta mais um pouco Para os impotentes, a triste despedida Para os racionais, o que os deixa loucos Para os famintos, saciar os desejos Para apaixonados, a língua dos deuses

Physis

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A frágil fusão dessa desprotegida Eva ao seu elemento nascida antes do primeiro homem inaugurada  ao beijo do primeiro vento sem precisar roubar costelas Pintura clássica em raízes  plantando-se assim aos poucos na pele da Terra a seiva que nutre os seios em rios contínuos, tronco acima nadando contra a corrente Sugada ininterruptamente por sua ânsia irrigada num querer-flor A copa formada  em emaranhados de menina cachos e pelos despenteando  pesadelos Quanta vida veio ver o olhar que determina o sexo que faz súditos os frutos que amadurecem nessa pele que alucina

Corpo

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CORPO (para Drummond) A graça lírica de ter um a tragédia cotidiana de lutar por um a força destemida contra a opressão sobre o a verve literária de passear com seu a delicadeza táctil de se sentir um a fraqueza temporária de sofrer com um o prazer solitário de vibrar com um o delírio estético de observar um outro a sinestesia de se alimentar o seu próprio o acolhimento-criancinha-de-colo de se expor ao sol em um a surpreendente sensação de ver a força conjunta de um  a beleza introspectiva da chuva caindo sobre seu a realização pela conquista do desconhecido a calma clara das manhãs de caminhar com um o prazer de compartilhar com um ou mais o seu  o riso de romper as regras morais com seu  o poder dionisíaco de gozar com um  a gratidão por viver e poder ler essas palavras mágicas grato ao poeta por descobrir seu próprio e através dele inspirar a história possível do nosso