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Mostrando postagens de abril, 2018

A Pescaria

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(Filme: "Peixe Grande", Tim Burton 2003) Contar e encantar: v iver por duas vezes Tudo que é humano se fundou ao som da própria voz Este homem tem quase três metros de altura  o rosto deformado e um tamanho inútil ao olho tosco do capitalismo E o trabalho da imaginação o faz um gigante imbatível, amável, poderoso fundador de reinos Este anão é apenas a vergonha dos seus e o mundo não lhe dá valor A estória o transporta a uma terra distante onde justo sua pequena estatura tornará possível adentrar a fechadura para um paraíso escondido que alberga tesouros Essa criança é pobre e franzina,  e tem dificuldades de fazer novos amigos na escola Uma boa história lhe dará asas comida e roupas novas e ela falará de igual para igual com multidões encantadas com seu canto dom que descobre quando se permite sonhar Esse homem deseja o mundo e torna-se infeliz ao saber que o tamanho do seu peito é igual a tudo aquilo que amo

Lunar

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Mil canivetes laminados                        navalhas    afiadas  fatiando meus olhos                                em lençóis                       de puro vidro Como ousas vir até mim sem permissão exibir teu brilho de gelo e sal? Curativo cáustico sobre o mar de  minhas feridas, teu sopro que nunca cicatriza Acalentas o  peito de um morto com novas mordidas? Tua pele de pura seda fulguração e ciclo em labaredas de profundo azul A face sul que sempre se mostra a mesma inverte a senda do que se esconde há um outro lado teu morando longe que revoluciona o sangue de qualquer sonho humano Ano após ano,          por  milênios                    e   bilhões... Lua, nua, lua que poder é esse que exerces sobre as multidões?

O preço da arte

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Belo filme. A árdua vida de Gauguin, como Frida, Van Gogh e tantos outros,  para nos lembrar que num mundo como este, que a todo tempo joga contra, o artista é um forte, pelo alto preço que paga para existir, com seu trabalho. É conta pra pagar, é doença, é pressão do sistema e o parto ainda vem. Sempre "apesar de..." E isso tantas vezes  só funciona porque a outra opção, ou não existe em vias práticas,  ou quando há, costuma ser bem pior. Expressar-se através do seu elemento é, para o artista, como o respirar, como o batimento cardíaco, como beber água Natural, essencial, cíclico O paradoxo da arte, que só compreende quem lida é que, para potencializar a criação através da vida não importa ao artista perdê-la desde que o fruto se realize

PARA UM AMIGO QUE SE VAI

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(em memória do poeta  e filósofo alegrense Marcos Silva Oliveira,  que completaria 60 anos neste mês de abril) Nasci para ser incompleto esta a minha sina mas a ansiedade me extermina e cego do meu destino vou me lançando vida afora esbarrando em tudo e todos procurando aquele um-o-quê que falta (e nessa vida tudo falta) com o mau jeito e a inconsciência que também foi a de meus antepassados Em que lugar me prometeram a eternidade? Aonde estava meu momento intocável de poder tudo? Minha história humana irreparável de ser o dono do mundo? Para onde foi meu dom de dizer a essência das coisas ministrando minha dor disfarçada de torpe verdade enquanto o mundo assustado pairava no ar por instantes no aguardo do olhar ensandecido do meu mais pesado espírito? Viver a verdade sempre dói no entanto, sou feliz ainda agora, amigo porque você existiu e foi bom estar em seus pensamentos como você sempre estará  nos meus quando paro, mesmo que por uns segundos para perce

Apenas um homem

Abri o casco e vi e tinha apenas um homem ali Não um deus não uma criatura perfeita ou divina (apesar de tanto esforço) Não um monstro (apesar da queda) Sequer uma máquina Apenas um homem em tudo que isso tem de grande em tudo que isso tem de pequeno E aquela criatura com as vísceras expostas só fazia absoluta questão de uma coisa: que não o iludissem outra vez com promessas que não possuíssem o tamanho da Terra Abri o casco e vi: apenas um homem estava ali em tudo que tem de grande nos dias bons em tudo que tem de tédio e tragédia nos outros dias...                      era apenas um homem                              mas como era bonito                                      em sua fragilidade,,,

Guernica Tropical

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Touros negros  ao  sol de janeiro jornal nacional [...é carnaval !!!] Nas costas de cavalos que já refugam arreio  é força  fevereiro Rio de onde vem o tiro O suspiro nos braços que persistem e  alimentam a comunidade dizimada, fragmentada Segue em sangue a cidade em poças de vidas ceifadas Quem dispara também  recebe a bala outros brazis torsos negros em pontas de fuzis  ao sol de janeiro (de onde veio o tiro?)  Reproduzindo-se em seus cantos por puro desencanto os mesmos navios negreiros janeiro a janeiro: a cidade

Minerais

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Colecionava pedras. de todos os tipos. havia um monte delas dentro de caixas de sapato guardadas no armário do quarto e embaixo da cama. pedras de todos os tamanhos e formatos, uma paixão particular por aquelas substâncias frias e brilhosas depois de algumas horas na lavada de tanque  com água sanitária e sabão em pó. elas saíam do banho brilhando ainda mais, seus fragmentos de minerais compostos reunidos artificialmente na amálgama de alguma lava derretida que por puro capricho prensou ali químicas diversas durante bilhões de anos. ele enfileirava suas pedras, prestando maior atenção às mais novas aquisições. o branco opaco inquestionável do cristal, a translucidez do quartzo  rosa, a semipreciosa ametista e seus roxos místicos que ganhara do avô paterno na última visita a Minas Gerais. o próprio avô, que ainda constava na lista do estado maior produtor de gemas, com o mérito de uma das maiores descobertas de água-marinha da história. avô pouco letrado e um tanto ingênuo, que deix

Duas Rosas

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Elas se beijam, lindas ao meu lado na outra fila do cinema A morena e a loirinha (ambas de cabelos curtos) numa cena inusitada Cinema de shopping Uma tia enfezada vira a cara Uma outra faz com que o marido vire as costas Uns novinhos, mais atrás na fila   também riem desaprovando com o olhar enquanto articulam baixo as palavrinhas odiosas de sempre Logo à frente, no enorme cartaz que alimenta a  outra fila Vejo a pose de vencedor do mocinho [um mocinho matador, é claro] com a arma na mão Um filme de franquia conhecida --extremamente violento -- na tela gigante Esses mesmos espectadores daqui a dez ou quinze minutos estarão rindo dos socos aplaudindo os tiros comemorando as bombas com suas pipocas no balde  sua big soda coke de litrão enquanto uma população de um canto qualquer do universo é inteiramente dizimada por lutas inglórias e políticas ruins Eu, mais suspeito que todos pra falar da situação p

A poeira dos ossos

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Ausente mesmo quando está  Presente sem querer mesmo sem qualquer vocação Pai A aridez que cultivou teu ser geração após geração (chegando a ti violenta desde menino) Replicando teus modos, repicando teu sino quão triste missão Lágrimas secas como o leito rachado de um rio efêmero que há muitos anos não vê chuva Se o âmago da questão nunca lhe tocou os instintos (Que insidiosa razão) Se as regras tornaram-se rédeas a consolidar um antigo poder nada mais que uma obrigação Melhor o não-ser do que se comprometer apenas o corpo seco sem restar nada ao coração Pai Apenas o perdão e a mente imaginativa que recria sua própria história (veja a vida como é viva) reinscreveria agora tua presença mais sólida, mais amorosa em imensa e figurativa memória

Laços de sangue

Ramos, galhos Caules rebentos Fotos para o álbum Bem guardado A mesa posta na festa A velinha que sobre o bolo Se apaga antes de qualquer sopro Irmãos que soam estranhos Mesmo habitando o mesmo sangue Avós tios primos, toda essa gente De que nem lembramos o nome Dinastias lineares Hereditárias correntes De longe muito longe Histórias amargas não narradas A inimizade velada que se traslada Segredos que não servem de alento Rangendo quase calmos sob os dentes A alegria das grandes famílias, quase sempre É a partilha viva dos tormentos

Coisas de família

Banquete a céu aberto de Natal vinho, pratos e conversa solta beijos, farpas e veleidades meus verdadeiros irmãos estão nas ruas e não nesta mesa Enquanto finjo um social mergulho sozinho em pensamentos sobre a felicidade e sua bipolar condição entre tristeza e alegria A alegria é volúvel e todos a têm Mas a tristeza não: é fiel esta dama tardia dela tenho ciúmes e sei que não me abandonará jamais Enquanto a alegria exerce suas efemeridades de contágio coletivo que serão extintas antes do sol se por A tristeza já prepara seu enxoval                                              individual porque ela é existencialista e também gosta de atuar perfuma-se, treina diante do espelho durante horas o seu melhor olhar Enquanto a alegria desfia o enfado tempera no caldo morno o tédio e beija a superfície das coisas que dormem A tristeza estufa o peito e do mundo toma posse quando vem forte o respiro da noite e tudo o mais se ajoelha a seus pés A alegria me di

Húmus

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As mãos na terra unhas sujas de barro chuvada boa de ontem mergulhando no meu jardim perfume de grama cortada curta Buganvílias, cravos e alecrim unhas sujas de húmus alma limpa e longe Enfio a mão na terra -- assim, mãos nuas porque não gosto de luvas-- penetro mais fundo pra sentir o verdadeiro gosto do chão a terra sente e se abre, quente e doce em suas espirais Minhocas assustadas pelo inusitado seus anéis girando pra digerir o barro retiro carinhosamente uma a uma  e as deposito noutro canto --alguma destas pode ser um primo já falecido quando criança pode ser Napoleão ou um rei antigo  de França-- (ou quem sabe apenas  mais um delírio qualquer alimentado pelos budistas) Me volto à Terra, ao cheiro fecho os olhos e aspiro forte o perfume ferroso de folhas fermentadas e mineral pego punhado de terra nas mãos sujando até os braços amasso, vejo-a se dissolvendo ainda úmida espalhando-se deliciosamente entre 

Orgasmo

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(Klimt - "Mulher deitada" ------------ Para o capitalismo , liberação Para os pagãos,  ritual sagrado Para o comunismo,   revolução Para os cristãos, primeiro pecado Para reprimidos, a perdição Para os Hindus, tantra prolongado Para os puristas, contemplação Para os amantes, idolatrado Para os condenados, revogação Para os poetas, puro delírio Para obsessivos, um pesadelo Para os bem resolvidos, o equilíbrio Para os paranoicos, um desmazelo Para os temperados, a justa medida Para os aficionados, falta mais um pouco Para os impotentes, a triste despedida Para os racionais, o que os deixa loucos Para os famintos, saciar os desejos Para apaixonados, a língua dos deuses

Physis

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A frágil fusão dessa desprotegida Eva ao seu elemento nascida antes do primeiro homem inaugurada  ao beijo do primeiro vento sem precisar roubar costelas Pintura clássica em raízes  plantando-se assim aos poucos na pele da Terra a seiva que nutre os seios em rios contínuos, tronco acima nadando contra a corrente Sugada ininterruptamente por sua ânsia irrigada num querer-flor A copa formada  em emaranhados de menina cachos e pelos despenteando  pesadelos Quanta vida veio ver o olhar que determina o sexo que faz súditos os frutos que amadurecem nessa pele que alucina

Corpo

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CORPO (para Drummond) A graça lírica de ter um a tragédia cotidiana de lutar por um a força destemida contra a opressão sobre o a verve literária de passear com seu a delicadeza táctil de se sentir um a fraqueza temporária de sofrer com um o prazer solitário de vibrar com um o delírio estético de observar um outro a sinestesia de se alimentar o seu próprio o acolhimento-criancinha-de-colo de se expor ao sol em um a surpreendente sensação de ver a força conjunta de um  a beleza introspectiva da chuva caindo sobre seu a realização pela conquista do desconhecido a calma clara das manhãs de caminhar com um o prazer de compartilhar com um ou mais o seu  o riso de romper as regras morais com seu  o poder dionisíaco de gozar com um  a gratidão por viver e poder ler essas palavras mágicas grato ao poeta por descobrir seu próprio e através dele inspirar a história possível do nosso

Quebra-mar

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Humano, o que mata e destrói  extermina, atraiçoa, polui, dissimula  constrói bombas, balas, venenos e armadilhas e transforma a própria casa num lugar inabitável  para as próximas gerações Humano, o que tudo pode mas sempre faz tão pouco quando o assunto é se empenhar pelo outro porque alega em sua defesa que  tem sempre alguém por ele em um outro plano extra-terreno Humano, essa metáfora de puro abismo que transita entre o tudo e o nada entre o quase e o talvez entre o medo e a sombra mas ainda assim surfa  destemido na crista da mais alta onda pelo simples amor ao perigo Ser humano é respirar uma contradição andante ao imaginar que nem tudo está perdido

Novos velhos

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Cada ruga é uma rua cada suspiro uma fuga nua rumo ao passado molhado em nostalgia Ou, se há um sorriso [na rara hipótese em que ele não se angustia] permanecer vivo pulsante motivado  é a única razão de alegria?

Equilíbrio

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A força da potência contida (pergunta ao corpo) até onde irias se não te enredasses voluntariamente em tantas amarras?

Bushido

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A vida como arte: liberdade não é ser o que se quer mas se tornar o que é preciso ser Disciplina honra busca desapego força contra toda hipocrisia toda falsa moral que enfraquece a vida e aprisiona o corpo A moral é o veneno dos fracos Somente um grande espírito para absorver o maior dos ensinamentos

Garras

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A força insondável: apta, terrível, impoluta desumana, anti-humama, inumana desprovida de conceitos morais Quando tudo se junta na mesma máquina perfeita, harmônica, precisa o desejo, a fome  em garras abissais

Raiz

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Antes que o tempo fosse nomeado eu também estava lá (de alguma forma) fosse pelos genes, em vontade em espírito Eu estava lá quando a humanidade se criou simples, assim debaixo de uma grande árvore pessoas reunidas Familias inteiras avós e avôs, pais e mães, tios amigos e um punhado de crianças de todas as idades Eu estava lá e bebi o sumo da terra amada provei da caça abençoada oferecida a todos os deuses de um imenso pavilhão Bebi do mesmo vinho oferecido, em cântaros a toda libação E nossa relação com as árvores, com a terra, com os animais que nos serviam de alimento Era algo entre irmãos Porque sabíamos que no ciclo contínuo de vida, morte, ressurreição não havia morte, na verdade, mas sim uma perpétua reconstrução hoje sou teu alimento, amanhã serás o meu Todos dentro da mesma energia abrigados em seus largos troncos contra as ventanias e os maiores medos que investem silenciosamente dentro da longa noite escura Eu estava lá, e test

Bunda

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A maldição de sermos tacanhos numa civilização colonizada por estranhos Seres artificiais que negativam o corpo vitaminam a razão e escravizam o gesto em nome de um "o-quê-que-há" sempre além O belo jamais pode ser dito porque é pecado (nos disseram os homens) Uma palavra, a essas tristes criaturas, uma oração de remissão, ainda em tempo: BUNDA assim, em maiúsculas, caixa alta com todo seu poder toda a fragilidade toda a beleza do nosso supra-sumo  animal Nossa estética primal (quando você olha alguma coisa, alguém ou um lugar e dá vontade de morder, pegar com a mão, dar um beliscão, um tapa, ver se é de verdade) o impulso incontido de ser sem vergonha e assumir nisso uma condição existencial essa capacidade grandiosa que nasce incorporada em qualquer criança e sofridamente vai mudando à medida em que nos adultizamos Bunda, palavra ritual onde até o som é gostoso fetiche, desejo, brinquedo a estética perfe

RILKE

PRIMEIRA ELEGIA Quem se eu gritasse, me ouviria pois entre as ordens Dos anjos? E dado mesmo que me tomasse Um deles de repente em seu coração, eu sucumbiria Ante sua existência mais forte. Pois o belo não é Senão o início do terrível, que já a custo suportamos, E o admiramos tanto porque ele tranqüilamente desdenha Destruir-nos. Cada anjo é terrível. E assim me contenho pois, e reprimo o apelo De obscuro soluço. Ah! A quem podemos Recorrer então? Nem aos anjos nem aos homens, E os animais sagazes logo percebem Que não estamos muito seguros No mundo interpretado. Resta-nos talvez Alguma árvore na encosta que diariamente Possamos rever. Resta-nos a rua de ontem E a mimada fidelidade de um hábito, Que se compraz conosco e assim fica e não nos abandona. Ó e a noite, a noite, quando o vento cheio dos espaços Do mundo desgasta-nos o rosto -, para quem ela não é /sempre a desejada, Levemente decepcionante, que para o solitário coração Se impõe penosamente. Ela é mais l

Essas linhas curvas

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A garota nasce inaugurando o sol em  curvas Iemanjá em movimento feita tranças em prancha deslizando sob o vento Cabelos longos contra o ruivo ruído seco da cidade sonolenta Reclamando ao mundo seu direito de herança sobre homens, bichos coisas e plantas

Toda poesia

Toda força, todo respirar todo suor, todo não falar todo sentido, todo almejar toda ferida, todo curar todo dizer não, todo afirmar toda fuga, todo retomar toda força, todo fraquejar todo se perder, todo amar todo exagerar, todo se conter todo não saber, todo acreditar Transformados assim em poesia tosca, bruta, pretensiosa como a presença humana no mundo Insuficiente, incompleta, mas ainda assim dotada de uma fagulha de beleza (não no sentido estético, literário, porque isso é conversa pra boi dormir) Toda beleza que é a intenção do gesto no que escapa ao destino previsível e se insere no pavilhão do insondado do impossível, do inusitado porque quer se tornar palavra e modestamente se imortalizar Doravante todas as forças sejam poesia

Cansaço

A palavra da época mais que o desejo mais que propriamente o medo ou o sentido histórico  de saber o que fazer Porque não sabemos o que fazer (essa talvez, com tamanha simplicidade pode ser uma inexorável verdade) é tanta informação bombardeada o tempo inteiro tantos fragmentos sem laço Que meu testemunho da época é esse, comum e singelo:  uma rendição pelo cansaço não há mérito algum  em meus próprios traços abstratos, coisa de formiga perdida que sabe de um pote de açúcar em algum lugar mas perdeu o caminho O meu sentido individual [que em algum momento deveria ser alguma bússola, um sentido possível] agacha-se e esconde-se do golpe terrível que é não  ter uma opinião num mundo que vomita opinões Cansado de ter opinião. Todo mundo tem. e não existem arranjos construtivos no intervalo entre bombardeios cansado de não ter o poder de mudar quando o que está lá fora precisa mais do que apenas mais uma voz  faz

Trilha (Leonardo Fróes)

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"Trilha", de Leonardo Fróes. A grandeza de um poeta que como um Thoreau brazuca meio índio, meio bicho partiu para fora do mundo conhecido para descobrir seu próprio mundo. Uma nova vida com a palavra ao lado, abaixo, dentro Floresta em silêncio denso Mato, bicho, chuva, o som da vida antes de ser tolhida. A beleza do respirar-terra, navegar-vento e almoçar rios A beleza de nascer horizonte boiar insetos e morrer ocaso A beleza de possuir a beleza em si para vê-la frutificar aonde os olhos se plantam A beleza...

Querosene

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“Lata d’água na cabeça, lá vai Maria, lá vai Maria”...                                               (Candeias Júnior) E foi mesmo por causa das antigas latas de querosene cheias d’água, na subida lenta e escaldante dos moradores sob o sol na lombada do gigante morro, que algumas décadas atrás nomeou-se a primeira favela da pequena cidade.  O “Morro do Querosene” era lugar mítico, apelido carregado de uma aura sinistra e temerária à simples pronúncia. Amedrontava crianças, deixava as polícias em alerta, ameaçava a aura moral, psicológica, religiosa e política de uma cidade pequena nesses rincões onde supostamente sequer deveria haver favela. Segundo os  jornais e à boca miúda, era de lá que vinham todos os bandidos pra botar medo na população da vila, na calada da noite. Mas contraditório como a própria vida, (e isso já observava eu mesmo, no olhar de menino) também era de lá que saíam  aqueles garotos criativos que eram os melhores caçadores de passarinho com seus

Cachoeira

Olhos sob o mato guardando no verde recato a sensualidade da cena por entre palhas e tenros caules, à espreita a menina linda no banho de espumas geladas botões de gerânio no bico dos seios a pele tão clara à sombra refratária um sol sedento mastigando em listras o poço contido no recanto Ser água em braços soltos sobre teus ombros feito cachoeira deslizar sobre as beiras do teu ventre no arrepio que concerne aos pelos eriçando as bordas da alma: Um corpo que se liquefaz como todo desejo

Frida

Livre, baila Frida como no teatro da vida A juventude em seus gestos o longo vestido de pés descalços sobre a calçada de pedras lisas Baila na brisa, Frida colo recortado de ombros florido Os longos cabelos em tranças na cabeça a eterna flor vermelha num dia de carnaval Mãos dadas com a menina o coração estival que ainda habita em ti nesta tarde em cores sobre a metrópole

ANSIEDADE (crônica, sem trocadilho)

"Ansiedade é o cara dar descarga antes de acabar de mijar". Ainda meio atordoado, eu releio em pensamento essa fala que apanhei perdida por aí, por tabela num texto da rede, sem memória neste instante sequer para homenagear o suposto autor. Depois dessa definição ao mesmo tempo conceitual-filosófica-existencial e poética tão devastadora, que denota não apenas uma enorme capacidade de síntese, aliada a um espírito de época jocoso e ao desejado oportunismo gaiato que caem bem nas mãos de qualquer cronista, eu fico pensando por que é que algumas gentes, como eu, ainda gastam tanto tempo em pesquisas metafísicas sobre pensamentos, falas, sons, livros, filmes, e ainda varam noites mirando estrelas e procurando onde-sei-lá-o-quê-ou-quem que tenha dito alguma coisa relevante, agora ou há cinco mil anos atrás, algo que tenha o toque-pérola de fazer valer o dia, a semana, a vida . Para contraditar essa enorme curiosidade e o incansável espírito da descoberta, que segundo Aristótel

O pequeno sol

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E o futuro pai desabafava com um amigo, desses que sempre têm o toque certo: "Mas o parto já é mês que vem e eu já li a porra toda de revistas  e ainda não aprendi nada sobre crianças". O cara ,do alto de sua garrafa de cerveja, responde, todo chinês: "Não se preocupe, ele  é que vem pra te ensinar. Você vai aprender com ele. Portanto, cabe ficar com a mente aberta e os ouvidos atentos". ------ thanks, my friend! Recentemente casados, não demorou três verões para que ela engravidasse. No início, susto e ansiedade pelo inusitado da coisa toda. Ambos muito novos, a vida ainda por fazer e a experiência cósmica e existencial apavorante de engendrar um terceiro ser humano pela frente.  Passados uns dias da notícia, como em tudo na vida, a consciência maior das grandes coisas foi se assentando e agregando a si as melhores expectativas ao preparar mentes e corpos para o importante papel a ser exercido. O fato é que, em pouco tempo,  aquela menina de 22 anos exib