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Das pequenas memórias de ser

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Dia desses mandei fazer um carimbo com meu nome gravado e a profissão de escritor Na minha imaginação, gosto sempre de sentir que sou, na verdade, um escritor que, ,como tantos, não consegue viver de livro e que preciso me valer de uma outra atividade para garantir a pena, e não o contrário como inúmeros o fizeram antes de mim É bom, isso. Admitir uma paixão como vida Acho que o mundo sempre dói menos porque tudo o mais parece coisa menor diante do pulso criador e a existência de um objetivo Essa coisa meio Flaubertiana, desde que o mundo é mundo, e a escrita não bastando ser a mais profunda e complexa arte entre as artes, sempre sendo das mais difíceis, não por critérios técnicos mas por razões da intangibilidade física do seu objeto O moço dos carimbos  estava quase jogando fora quando, três meses depois, fui lá buscar Ele me disse, na ocasião, me encarando de repente com um olhar curioso que em cinco anos de loja eu era o primeiro a pedir esse tipo

Íris

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À minha frente tuas íris ilesas Acesas como corais Navego pelos portais ver nascer da escuridão a radiação de um outro sol Até onde o limite sem se perder um marinheiro nesses caminhos só de ida? Buracos negros em pupilas absorvem as vias em vida  e as devolvem luz Fibrilas de metal verde-azul em sangrias de vermelho (Quase imperceptíveis) Espectros de violeta Céu líquido de estrelas a iluminar os planetas Mapa de um DNA perdido depois de tudo explodir Poeira preciosa de galáxias no descontínuo e infinito quando o tempo não existia e as eras se contavam por angústias primais Matemática de fractais Luminosas águas do Caribe Jorro de tintas numa tela perfeita em seus rajados e matizes de geometria  rarefeita Raios que perspectivam o olhar como encanto de estrela cadente (O bojo da vida por veias quentes) se explodem quando felizes e sua luz inunda a superfície Olhos que não fazem reféns Aliciam a vida a ser maior e incontida: Destemida Ino

Ciclos

Contrariando um pouco minha natureza ultimamente ando me apegando às coisas Botei no quarto minha bicicleta porque andava remoendo saudades dela Assim, meio esquecida há meses, no porão Dependurei na parede, como quadro-troféu de inconteste beleza Os guidons curvados na agressividade das velas (lembrando a genial tirada de Picasso e o touro) O formato leve e ágil, a cor roubada à escuridão Os câmbios embutidos, metal infenso à corrosão (como pode ser boa a tecnologia, quando não erra) Agora, todos os dias, estou indo e vindo da sala pra cozinha, do quarto pra copa da copa pro quintal, do quintal pra sala Nesses caminhos de andar que a gente faz quando está trancado dentro de casa E sempre dou aquela chegadinha mais perto, arrumo logo um paninho pra dar um brilho, um óleo admiro a arte, peça por peça, a trava firme da corrente o suporte perfeito dos freios, as pastilhas embutidas O câmbio silencioso e extremamente eficaz e rápid

Saberes

No início, era a ciência, desde novo A vontade de ser professor, como os pais O amor pelos bichos e plantas O encantamento nos olhos Acompanhando a visão mundofora A paixão pela professora de biologia O amor pela Química A vida como intensa magia Que se desenvolve sempre por meios inauditos E tudo aquilo que veio no caminho Um saber bonito como aumento de força Depois vieram   a política, a economia, a história Picado num delicado momento de transição por Outro grande mestre, um bardo ilustrado Cuja memória saudosa ainda hoje inspira A súbita e estranha vontade de adentrar O cerne da vida humana, como ela se rege Como surgem e funcionam suas leis Qual a justificativa do indivíduo? O que estrutura as coletividades, se era Possível escapar – ou não – das maldades Como fazer o conhecimento Intensificar o cisco de grandeza humana Sobre as vidas ao redor Por fim, veio a filosofia Muito tempo de camelo Suportando um fardo de dois mil ano

Equilibristas

O abandono, a doença O infeliz desfecho para o poeta que legou tanta vida em seus versos Vitimado por um mal que tem levado tantos moços e fortes mundo afora O aparato ao seu redor  Os caçadores de obituários  salivando, na imprensa Noticiário, ampla cobertura  A revelação de uma pegada tão desconhecida por mim que venho de outras praias O encanto imediato com seu trabalho Belos relatos, belos artigos  a exposição bonita dando conta da sua vida Da valiosa obra artística  que fica  E eu cá, comigo,  cismando sozinho à noite entre curioso e mudo pensando como é possível  que depois de tudo  Meu deus, que tempo miserável gera  artistas dessa magnitude  para deixá-los morrer sem dinheiro e abandonados sem ao menos um plano de saúde? Indo além,  quase ninguém (ninguém mesmo, nos dias de hoje) consegue manter o maldito plano E essa porra toda é uma máfia dos infernos contra a idéia benéfica da saúde pública E o

Inspiração

Que as pessoas que contam nessa vida despedaçada sigam sendo o que são Contra tudo e todos Alento         alimento                    inspiração E saibam sempre o quanto importam o quanto fazem diferença Na presença não alardeada no gesto simples na constância férrea e poética de suas lidas nem sempre reconhecidas quando os tempos [ e os espaços ]           são medíocres Pelo seu talento que transcende e um quê que elas têm a mais para oferecer, intensamente: a comoção de ser e patrocinar gente Que elas saibam que são notadas respeitadas e em silêncio suas atitudes tantas vezes seguidas Que saibam, por fim , mesmo sem anúncios de jornal espalhafatosos outdoors ou por mais uma explosão de mídia O quanto são queridas

Bemvindavida

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Como na celebração de Dioniso Um sonoro dizer sim ao acaso Um inconteste acolhimento à vida À incontida pulsão que não  se acomoda Inquieta, transborda e arrasta tudo no caminho Amor fati Valeria a pena ter nascido Assumir o risco de caminhar sozinho para, entretantos, ter lido um livro? Sim (!!!) eis um motivo... Que a beleza e transitoriedade de tudo que há sigam sempre a nos contagiar

Motivo, forma, conteúdo (grunhidos pretensiosos sobre a subjetividade em "Os Passos em volta", de Herberto Helder)

Senão uma das maiores justificativas do fazer artístico, sem dúvida a mais bonita é a certeza do olhar que é unico, insubstituível e confere a cada história particular o direito de ser contada Mesmo quando as experiências em tantos aspectos parecem iguais em espécie Sendo tão diferentes na forma de serem vividas O saber que cada voz tem seu tom O tema, recorrente pra mim, me cai novamente nas mãos depois de uma desafiadora leitura onde o autor, um dos maiores, teima em falar de coisas banais em sua rotina de alguns anos rodando por aqui e ali sem rumo Os lugares e situações, impossível ser mais lugar-comum de qualquer viajante em qualquer lugar Os objetos, as rotinas previsíveis mesmo diante da continua mudança de ares, de pessoas, de país,  de hotel ou dos quartos de pensão Mas a forma como ele falou disso tudo Intencional, premeditada, convidando à irritação do jogo e da construção não-obvia de outros espaços e olhares Isso jamais sairá da minha men

Led

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"Immigrant Song" pra exorcizar os dias cinzentos e resgatar as boas almas do fundo do inferno

covid season, may, 01. 2020

Quarenta e cinco dias do ano Covid-19, oficialmente sem eu botar os pés na rua. Sim, porque andar de carro não conta, e mesmo assim foram poucas as saídas em quatro rodas, sempre fechados dentro da célula mecânica, apenas fotografando o universo fragmentado ao redor. Vidros herméticos, ar-condicionado na posição círculo interno de ar, máscaras. Ver como a vida ia lá fora, longe da tv. Pra dizer a verdade, imaginei que o universo visual ao redor estaria mais dissolvido e fragmentado a essas alturas, imaginava ver alguma coisa entre a situação do Will Smith em "A Lenda" e do Mel Gibson no primeiro  "Mad Max". Pessoas brigando por água e gasolina, calangos disputando a sombra na seca depois do grande cogumelo de luz no céu, todos com armas e engenhocas  misturando a técnica com a pré-histórica luta pela sobrevivência, edifícios rachados e abandonados, plantas tomando as ruas, bichos felizes habitando um maior espaço e a erva pocando  calçadas para reaver o que na v

"Fenda e Vulcão " (Cora Made)

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"Estou farto do lirismo comedido..." (Bandeira) ----------- Me veio de Bandeira a primeira impressão ao ler esse livro lindo. Há duas vozes, aqui, nas duas partes distintas do livro, mas em minha leitura senti como se fossem uma só voz. A intenção estética dos dois momentos traz mais beleza na partição, mas como leitor julgo impossível dissociar  sentimentos, tentar classificà-los para que sejam "puros" ou "cristalinamente definidos",se tudo isso nasce é da mesma fonte, do mesmo ser, da mesma pulsão que vem como vai em vida no movimento das ondas nas pedras , arrebenta e arremansa-- um não-cessar que parte e reconstrói. E mesmo com o risco de soar descabido se o contexto, o tempo, a ordem do dia  por acaso não se configuram uma condição favorável em particular , o poema adianta-se ao desejo sem sequer perguntar, saber ou se importar se existe alguma permissão pra isso. O amor ainda assim é soberano e se põe em verso, fala, atitude e beleza

Saudade

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O quinto livro de Fernanda que me bate nas mãos, eu que, por uma razão idiota qualquer, não conhecia o seu trabalho literário, "apenas" a dramaturgia, até seu falecimento há menos de um ano. Dramaturgia que, por sinal, é uma das melhores coisas que já passaram aqui por estas tristes terras, fazendo com essa máquina chamada televisão pudesse ter garantido uns dias de glória com inteligência de sobra, charme e uma intensidade de mundo sem igual. Surpreendentemente ácido Surpreendentemente doce como a própria autora

O bom, o razoável, o medonho (Freud, 1a temporada Netflix)

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Ok, usando do rigor conceitual  cabivel a essas alturas: Uma bosta! Já tinha nada ou muito.pouco a ver com o nome Frustrando largamente  uma sobra possível  ao se imaginar um thriller qualquer  de livre adaptação  Com alguma inteligência e originalidade Nada! A coisa começa como novela das seis da Globo  as falas, os figurinos os contextos  Os galãs As mocinhas Depois, sem aviso  vira Dexter  versão séc XIX com momentos Walking Dead Para finalizar como Jack  O Estripador depois de ter  caminhado quase o tempo inteiro  como o filme que inaugurou  a franquia "O Exorcista' E pior: porque aqui o capeta ainda fala alemão  (Pobre Freud)

A paz possível

Pai, o mundo está sempre em guerra? (pergunta o curumim, enquanto tenta curvar o arco ) Lá fora,  sempre, meu filho Não para nunca Todos contra todos A única paz é a de dentro quando aprendemos que nem todas as mãos são arcos e nem todas  as flechas estão apontadas para o nosso peito

Poesia e filosofia

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"Pensar o mundo ou pensar sobre o mundo?" A Filosofia pode transitar pela estética sem ser poema? A Poesia pode aprofundar-se em conteúdos sem se aprisionar no conceito? Antônio Cícero, com sua sensibilidade monstra e uma notável erudição, trilhando  um caminho nada óbvio ao expor essa relação originária. A riqueza e urgência do gênero ensaio,  o link cada vez mais necessário entre Pathos e Logos, coisa inteiramente esquecida por estas tristes bandas. Irmãs no nascimento, nem sempre andaram juntas as duas formas de lidar com pensamentos, sentimentos  e palavras A rigor, não há óbice às interlocuções e descobertas mútuas, concessões e até invasões entre os dois campos que com o tempo criaram outras raízes Mas é fundamental a lembrança -- muito bem explorada pelo poeta-ensaísta sobre a vocação à busca da verdade conceitual, contida  nos pressupostos filosóficos, a eterna busca do universal, enquanto a poiesis, embora sem fórmula única entre formas e

Os passos em volta

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Quando você se depara com a pergunta "Que diabos é isso, afinal?" E não há qualquer resenha, chave ou hermético tratado sobre textos que possa esclarecer a dúvida Esse poeta gigante HH, e uma essencial dimensão dentro da escrita: Nem sempre a coisa que importa é "do que se fala" , mas sim "a forma como se fala" Bonita demais a prosa, esta única certeza Alguma coisa taciturna de "Notas do Subterrâneo", uns toques coloridos do surreal "Cadernos de Malte Laurids Brigge" exercício de giros e mais giros em torno de si mesmo Caleidoscópios do mundo janelando ao redor um diário do corpo enquanto se tranca num quarto para navegar sobre memórias de um espaço-tempo onde a idéia do vivido estende-se à pura transcendência sem jamais perder a carne É como se Proust tivesse escrito isso depois de tomar ácido

Só para maiores de cem anos

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Antologia (anti) poética Suspeito pra falar, porque entendo que nada escapa à poesia Daí que falar em anti-poesia como forma de fugir ao cânone, às formas clássicas ou entender que o destino melhor do verso é cuidar do detalhe do imediato, mais da percepção do que da elaboração isso tudo soa mais como capricho estético ou a defesa de um modo existencial A idéia de que o cotidiano  tudo aquilo que mais salta aos olhos deve ser o melhor objeto Ainda assim tudo isso é poesia Boa coletânea do autor

Um oriente nos ombros

Sustentando fácil um oriente nos ombros Pórticos jônicos tombados e belos Deliciosos arabescos se insinuam para o dia Contrastando os tons que conduzem o vivo Já não há mais sol e ainda assim o brilho cegante de uma  luz

O Albatroz

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Em memória do saudoso amigo Marcos Silva Oliveira -- filósofo e poeta -- que nasceu no mês de abril e em uma bela tarde daquelas tantas  me apresentou Baudelaire Transcrevo abaixo seu poema preferido  ----------- A quem é de asas, a altura que lhe pertence. "Às vezes, por prazer, os homens da equipagem Pegam um albatroz, imensa ave dos mares, Que acompanha, indolente parceiro de viagem, O navio a singrar por glaucos patamares. Tão logo o estendem sobre as tábuas do convés, O monarca do azul, canhestro e envergonhado, Deixa pender, qual par de remos junto aos pés, As asas em que fulge um branco imaculado. Antes tão belo, como é feio na desgraça Esse viajante agora flácido e acanhado! Um, com o cachimbo, lhe enche o bico de fumaça, Outro, a coxear, imita o enfermo outrora alado! O Poeta se compara ao principe da altura Que enfrenta os vendavais e ri da seta no ar; Exilado no chão, em meio à turba obscura, As asas de gigante imped