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Doce

A ida --- A volta sobre o Doce Suas costelas secas As margens gordas demais mesmo fora de estação Os animais O levanta-menino vem-cá-ver O mar imenso dava medo A gente flutuando feito nave sobre o infinito , sem saber A água que restou segue o fluxo do rosto [caudalosa] A água, (Deus, a água!) não pode mais ser chamada pelo fio podre de rio escorrendo arredio abaixo da estrada A chuva, quando ousa é apenas para mover os bancos de areia daqui prali          dali pralá Ajeitando os rejeitos de Minas Sangue coagulado de minérios Dizimando a vida pouca entre poças de vermelha miséria Mesmando-se nos monturos Terra seca, urubus e restolhos Um auto do mais ermo desamparo Doce, meu imenso Doce Estertorando para desaguar na compaixão do mar A face que se dissolve fácil O corpo que solidifica amaro

O caniço pensante

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" O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza. Mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para esmagá-lo: um vapor, uma gota d' água, bastam para matá-lo. Mas, mesmo que o universo o esmagasse, o homem seria mais nobre do que quem o mata, porque sabe que morre e a vantagem que o universo tem sobre ele; o universo desconhece tudo isso" (Pascal) ----------- - O paradoxo de Pascal: a sabedoria          finitude como causa a ingenuidade          razão como remédio

Adonis

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quando a Terra invade as veias e a poesia torna-se o chão

Mal da poesia

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Sonhava, e foi sonhando que caí da cama um dia cismando e rasgando papéis em busca da poesia não sabia se era eu quem rabiscava seu universo ou era ela quem me versava quando me escrevia Surgida, assim sem mais explicação, pela necessidade de aprender a estar só comigo mesmo fora do mundo descobrir num segundo outras vidas ainda possíveis antes que as terríveis gárgulas acabassem com tudo Febre e calmaria, concreto e utopia, tesão e tédio nada mais neste mundo que me fosse remédio a própria vivência passou a valer só quando sabia que, passada a onda, a palavra permanecia De uma vida dividida entre o comum das dores o comum das alegrias, sem sua paleta de cores que mais haveria de honesto, senão declarar a quem pudesse suportar a imanência do verso Que o resto,  tudo o que não cabia no papel era na tibieza do inferno ou na ausência de céu uma outra palavra ou lugar e que as vivências mesmo arraigadas nas costas do mundo Evaporavam-se, num segundo, e não

Multiverso

contra o conceito de universo posto que a vida habita o mundo em múltiplas possibilidades e enquanto discutimos, cá em cima a chance maior de quem monopoliza a verdade há mundos, submundos, trasmundos seguindo sem nos saber pelas frestas de soalhos quinas de pedras janelas de ônibus olhos de loucos sons de passarinho não há como transpor a consciência para as coisas --posto que a maldição de si é fado apenas do humano -- mas há uma outra sintonia, além de empatia quando essa consciência se eleva e se torna algo além a gota d'água posta contra a luz num dia cinza a poeira que levita corpúsculos de matéria ao sol e vem mirando em jato na manhã do meu quarto meu cachorro quando conversa comigo a expressão da vendedora quando saiu o último cliente da loja uma tarde sob os sóis de Alfa Centauri ou à noite na beira do píer, em ameaças de neón

As horas

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Gira  no fio do ímã ginário                                                                            dispara o ponteiro  do arco                                                                            --ao contrário traslada o tempo pra longe da lida baila linda baila inda o corpo como alvo para a  flecha expendida

A única certeza além da morte

Viver é pequeno dolorido e sem jeito E não adiantam os esforços para parecer sábio tudo vai acabar quando estivermos aprendendo Um dente quebrado umas noites em febre um pãozinho quente com café bem cedo Ora grito ora cafuné lençóis com cheiro de mulher tentar não fumar muita água contra ressaca Ora sim ora não disposição para acolher o outro (porque há outros em mim que demandam muita energia) Caminhar todo dia uma outra conta vencendo lembrar de responder à mensagem da mãe O trânsito engarrafado papéis para despachar a percepção da crueza a fé que se busca na beleza No fim, tudo é apenas o pulso do mundo quando o mundo mesmo não está lá mas apenas aqui dentro Que mais importaria ao poeta além da própria arte? nada , a partir de algum momento já se pode dizer nada!

Anarquista

O homem do sindicato falava do alto do caminhão manejava seu megafone com calor e eloquência falando de um Estado pai-de-todos como o homem da batina, no púlpito aclamando a Deus, pai-de-todos O homem dos dinheiros, por sua vez mais cerebral e sagaz que ambos celebrava um outro pai-de-todos em contratos de sangue e falava na sua cátedra de vidro (sorrateira e silenciosamente) respingando em todo mundo com seu discurso pegajoso Nutria enorme respeito  pelo homem dos sindicatos Tinha muitas reservas quanto ao homem da batina Nascera com total desprezo pelo homem dos dinheiros O que vicejava nele buscava outras falas e não queria , ou antes, não sentia que as verdades daqueles homens fossem exatamente as suas --nenhum dos três Achava ingênua a história de que as coletividades utopizadas no Leviatã moderno pudessem trazer a qualquer indivíduo algo de valor maior em si algo que um alguém, em algum momento não tivesse tentado cavar primeiro só com sua coragem no me

Phosphorus

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no susto do como-é-possível mais rápido mais sutil que um estalar de dedos uma leve caixa oca de madeira com um desenho estranho na superfície dentro apenas aquelas finas alminhas enfileiradas cabeças tingidas tiras de fogo ao riscar do céu dois sólidos tornando-se em atrito uma terceira coisa ainda em estado indeterminado (nem sólido, nem líquido nem gasoso) transitando entre as formas da matéria passeando entre a vida e o além o sorriso na cara de quem descobriu o mundo uma leve caixa oca de madeira a reverberar neandertais meninos saltando ao redor de fogueiras em resguardadas cavernas ao primeiro descuido, o furto e a fuga pequeno Prometeu a roubar a honra dos deuses e testemunhar sozinho aquele milagre debaixo dos pés de manga rodeado pelos cerrados arbustos de pitanga -- a caverna particular -- um canivete sem corte um estilingue torto caixas grandes de papelão pequenos ícones de madeira e agora, mais essa conquista bota fogo em graveto mas nã

A outra orla

É só um tiroteio Não é futebol Não são fogos São os jogos do morro no domingo à noite Iluminando como meteoro a outra orla da cidade Lá onde não tem luz suficiente Não tem guarda suficiente Lá onde o Estado se conhece Pelo seu status ausente Sem qualquer piedade, pobre Piedade Nobre Piedade, Moscoso ou qualquer nome de morro Em Vitória, Rio ou Salvador Morros onde se morre à toa nesses jogos Vorazes Vidas fugazes Homens equipados, -- jovens em sua maioria Subindo novamente as escadarias Uns jamais descerão como os outros que eles deixarão para trás E a melodia que tinge de tiros a noite escura Enfeitando corpos de meninos mesmo fora do carnaval Amanhã vai colorir os sedentos jornais O Fla não ganhou hoje: a página de esportes não virá em imortal rubro-negro fazendo felicidades Mas a página policial estampará um outro rubro-negro mais triste e persistente: mortal retrato da noite de domingo na Piedade

Três listras

refresco nos intervalos de Tomb Raider legging cinza de três listras boné, top e rabo-de-cavalo todos marmanjos, só ela no meio chega um tanto tímida, os caras estranham holofotes ainda contidos nos postes essa Lara Croft monopolizando os olhos de quem passa crepúsculo quase encerrando a praia crianças, churros e velhinhos no calçadão areia , sal e ventania ela ainda no aquecimento, sorri e se enturma o rabo-de-cavalo fazendo coreografia bem arranjado dentro do boné cor-de-mar quando o mar se esquece de entardecer ela saca e corre pra defender ajeita no peito, cabeceia e dá bicicleta a bermuda se alisa sobre as coxas grossas gargalhada que empolga quando acerta espoleta quando erra, o riso fácil e doce vida quando cresce, sempre tudo tão grande instintivas estratégias para que o mundo a aceite vai surgindo, vai nascendo como o desejo nessa pele reluzente de chocolate-ao-leite

Imperfeito

Um dia disse EU e me dei o mundo de presente dei nome às coisas designei todas as cores dei destino  aos animais e às terras Súbito, no cume da vaidade percebi o silêncio como um tapa quando apenas minha fala ecoava nos vestígios das sucessivas eras O mundo não era mais ele próprio mas moldava-se ao  reflexo da minha voz sob seus relevos Às vezes uma voz terna, compassiva às vezes um urro primal a causar susto e fazer tremer antigas paredes Um dia disse EU na ingenuidade original de todo demiurgo e me dei o mundo de presente Mas não me dei conta de que o feitiço assim se quebrava e seu cacos nada mais eram do que o mais profundo desgosto O mundo imposto por mim ao novo espaço era muito pior que o outro

O bosque

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"Yo no lo creo en brujas, pero que las hay, las hay" ----------- Na tarde calma, calada, comum de costas, a cabeça mergulhada metade pra dentro metade pra fora d´água a lente espelhada da lâmina líquida miríade de cores que eu nunca vi deslizo as mãos pela porosidade das pedras leio em Braille, sem saltar parágrafos na parte baixa, o limo em sua barriga --as pedras, frias, frios, o verde pegajoso o que quer que elas tenham testemunhado se pega em mim e a vivência das eras se transcreve em meu pulso histórias de amor, guerras tragédias, campos em flor muito riso, muitas lágrimas doenças e nascimentos [todo sentimento um dia passa por um rio] sem som, a não ser o riacho ouvidos silentes para o mundo acolhidos pelo rumorejar de cachoeira em lençol de regato --acho que vi uma coisa, movendo-se contra o saibro azul do céu territude que me invade levanto a cabeça ainda sedento ainda cedo demais resina de pensamentos exsudando dos

As faces da selva

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I. Falar com os bichos em sua própria língua  tratar rio feito irmão  fruir da lua como quem incensa a memória de um antepassado Sorrir sol relevar o ouro deitar na chuva pelado colecionar besouros Dormir em árvore, brincar na lama avocar passarinhos até se tornar um Inventar cores num cocar de plumas vestir-se de plantas Dialogar com o corpo e descobrir seus traços Transcender o indivíduo Encontrar na floresta o divino abraço  Desentender a desgraça que veio a ter com os navios desentender as razões das muitas coisas que não se justificam II. Ansiar pela eterna noite repudiar o dia impor a própria marca a ferro no rosto das coisas ceifar alegrias Matar a vida pra não precisar ver juntar as tralhas pra não precisar ser viver de migalhas Trucidar as diferenças para produzir injetar o veneno comezinho no veio mais profundo Aniquilar o mundo e conhecer a própria sorte pelas tripas  Sombrear

Germinal

para Émile Da primeira vez, o nada Da segunda, o silêncio --água, luz e lua o quarto ermo e largo sementes túrgidas como grávidas prestes a parir A terceira noite veio com tudo eloquente e mordaz madrugada adentro o ensurdecedor da raiz rompendo o invólucro selado explorando o núcleo abstrato de algodão Como o feto que chuta para sair a ave que quebra a casca do ovo a cria da cobra, que nasce mordendo a face do abismo entre a vida e o limbo tremendo, rasgando, partindo Do ser a quem se dá a chance de brotar colhe-se muito mais do que se plantou dos tantos que são ceifados antes da hora pela trágica lida que impede a memória inocula-se a vida um veneno amargo e a um pesado encargo condena o devir Mas ainda  sorri, como o João, da Fábula o olhar incrédulo sob fragmentos de lua a desenhar contra a branca parede um galho, uma garra, uma verdade crua um tigre dentes-de-sabre os traços góticos de um pequeno milagre Aquela macega branca em nuvem úmida

Moeda

teco na borda orlada de ouro (prata no centro, ouro na beirada) assim embalada                             Real gira a moeda sobre o piso liso e  frio,                     irisando, quase boreal patinadora olímpica em solo de gelo nomeando a tudo o que seduz --ora prata, ora ouro-- ao diletante contato da luz gira a moeda dissolvendo frente e verso até extinguir seu objeto já não se sabe agora se gira ou para como a Terra, nosso solo ilusoriamente detida sob os pés a velocidade absurda da moeda como o Cosmos se expandindo a cada segundo silencioso em circunvoluções metafísica de olhos contaminados o ponto fora da curva em que nada se ouve mais ao redor - porque nada mais existe para fora do seu giro perfeito-- naquele silêncio que a física não explica em que nada se distingue entre os brilhos apenas uma única imagem silenciosa, equilibrada como se pertencesse desde sempre aos augúrios de vento real quando parada, sonho quando em movimento

A coisa

Desembalam o fogão, com cuidado um segura de um lado o outro puxa (tira o plástico grosso) e à grande caixa se afasta  para exibir o conteúdo cristalino Fogão grande e branco seis bocas e a alegria da família A alegria do menino Todos ao redor das novas trempes saboreando expectativas Reuniões animadas, brigas pra saber quem vai fazer o café cozinhar o feijão ou limpar o leite derramado Memórias das ceias do futuro O menino encantado mesmo é com a caixa Trasladada ligeiro a seu quarto --convidada de honra-- Ainda meio sem saber que coisa era aquela: se objeto, se amigo, se bicho de estimação Com o atavismo de um certo instinto a abraçar cavernas ele se enamorava da sua nova e perfeita construção, desenhava suas paredes com giz de cera Reforçava as dobras de cola e encanto, grampos e fibra de celulose Acalento contra  intempéries Aos poucos migrava para dentro de sua grande caixa E a bordo desse navio ganhava os mares Capitão de marinha mercante

Enterro

O passamento de nosso avô (que era bisavô mas nós o chamávamos assim, quando não o chamávamos simplesmente de padim) Não me deixavam ir, de pequeno Insisti, queria ver de perto a cara da morte O avô não parecia diferente, usava um terno azul claro deitado naquele féretro de rosas brancas mas seu rosto jovial permanecia igual, um certo sorriso meio matreiro em expressão de rala barba branca que até escamoteava um pouco a dureza dos últimos tempos Todo mundo suava, estava muito quente muitos com abanadores, leques, disputando sombras Mas o avô que era bisavô permanecia bem, sem suar a fronte, a tez pálida e elegante a expressão de quem guarda algum segredo e tem alguma coisa a dizer A dizer a verdade me decepcionei um pouco com a morte porque a esperava cheia de garatujas e ventanias pensava que surgiria ornada de barulhos a levantar os terreiros, dobrar os topos das árvores e nada! Espreitando bem os olhos ainda cautelosos via apenas umas senhoras com lenç

De volta à Terra do Nunca

Como toda criança sabida,  abandonando os pais antes que o mundo se tornasse pesado demais Minha mãe quando em sempre tão generosa o acolhimento desses pequenos  no seio da vida Meu pai e sua disciplina: o esforço de querer ser maior para compensar alguma fragilidade intransponível (o alheamento típico de quem está sempre em guerra) Eu ainda desejava os campos, aquela grama tão mais verde Os quintais de laranjas e seu sumo doce me dourando a cara Os milharais onde pela primeira vez pude contemplar a  metáfora pujante daqueles seus  cabelos de boneca O nascer e o por do sol do alto do morro, espreitando arco-íris depois que me beijavam as chuvas de verão em todo o seu poder Eu desejava os campos, mas meu espírito já era das cidades, por antecipação Abandonava de vez os passarinhos, irmãos a quem finalmente decidi livrar Abandonava a contemplação daqueles teus olhos de vôos rasantes A sensação de vida que me cavalgava em presença dos teus grossos lábios e a cor natural