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Mostrando postagens de julho, 2019

A roda

Os antigos eram levados pelos elementos -- os deuses--, na metáfora da Terra, do fogo a água e o ar As estações A observação ingênua de um motivo anímico O clássico matou o espírito desse mundo ao substituí-lo pelo humano Os deuses, ainda vivos mas acorrentados, tornaram-se  nada além da personificação humana Seus humores,  suas doenças e paixões Temendo a exacerbação projetou-se na arte a contenção pela beleza O belo como pacificação das tensões não sublimadas O moderno denunciou, aos gritos, como é próprio da sua aesthesis, o truque mal forjado que se imiscuía nessa sombra de perfeição das formas a justificar a vida A beleza tornava o desejo pela vida maior, mas para isso sufocava as contradições de seu próprio surgimento Não há paralelos entre a vida e a estética,  nesse olhar cáustico a revelar essências Muito menos a idéia de beleza subsiste Sob o martelo dos modernos, dissolveu-se a estética para revelar a fome, a miséria coletiva, os des

O MURO

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NO RIO DE JANEIRO HÁ MAIS DE OITOCENTAS FAVELAS HÁ MAIS DE OITOCENTAS FAVELAS NO RIO DE JANEIRO O RIO ABRIGA MAIS DE OITOCENTAS FAVELAS NA CIDADE PARA AS COMUNIDADES, O QUE É CENTRO, O QUE É PERIFERIA? AONDE O MONSTRO NASCE, PRA ONDE ELE SE IRRADIA? NO RIO DE JANEIRO HÁ MAIS DE OITOCENTAS FAVELAS HÁ MAIS DE OITOCENTAS FAVELAS NO RIO DE JANEIRO O RIO ABRIGA MAIS DE OITOCENTAS FAVELAS NA CIDADE PARA AS COMUNIDADES, O QUE É CENTRO, O QUE É PERIFERIA? COMO É QUE O MONSTRO CRESCE, QUEM É QUE FINANCIA? NO RIO DE JANEIRO HÁ MAIS DE OITOCENTAS FAVELAS HÁ MAIS DE OITOCENTAS FAVELAS NO RIO DE JANEIRO O RIO ABRIGA MAIS DE OITOCENTAS FAVELAS NA CIDADE PARA AS COMUNIDADES, O QUE É CENTRO, O QUE É PERIFERIA? QUANDO O MONSTRO DORME, POR QUE É QUE SILENCIA? NO RIO DE JANEIRO HÁ MAIS DE OITOCENTAS FAVELAS HÁ MAIS DE OITOCENTAS FAVELAS                                                                                   NO RIO DE JANEIRO... ----------- pub originalmente

O último replicante

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"Eu vi coisas que vocês não acreditariam. Ataque de navios em chamas no flanco de Orion. Eu assisti Armas de Césio brilharem na escuridão no Portal de Tannhäuser. Todos esses momentos serão perdidos no tempo como lágrimas na chuva. Hora de morrer".

Phosphorus

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no susto do como-é-possível mais rápido mais sutil que um estalar de dedos uma leve caixa oca de madeira o desenho estranho na superfície dentro apenas aquelas finas alminhas quarenta hastes enfileiradas as cabeças tingidas de tinta vermelha centelhas contidas em potência tiras de fogo inusitadas ao riscar do céu tardio dois corpos em atrito formando uma terceira coisa em estado indeterminado (nem sólido, nem líquido nem gasoso) zombando das formas da matéria passeando entre a vida e o além o sorriso na cara de quem a contém uma pequena e leve caixa oca de madeira a reverberar neandertais meninos saltando ao redor de fogueiras em resguardadas cavernas ancestrais o furto e a fuga, ao primeiro descuido pequeno Prometeu a roubar a honra dos deuses testemunhar sozinho aquele milagre debaixo dos pés de manga entre cerrados arbustos de pitanga -- a caverna particular -- e sua decoração temática: um canivete sem corte um estilingue torto bonecos de pl

Mãe-da-lua

Ítz, minín, sai da rúa e entra pradêndicása já! sereno caíno, Mãe da Lua já chamô trêis vêis Sá mãe tá chegâno iqué vê tômunjunto di bãe tomado Arre! Imcruiz. Minín tentado. Tá c'os ispríto? nos meu tempo a correia cumia no lombo! [Gilzim, o mais pequeno, o mais pretim de seis irmãos multicores de volta do seu artelívrio  -- profissão brincadeira -- na porta do quintal do sério palhaço Arrelia Sol se pôs na cacunda, a febre de ser moleque Se pudesse , Gilzim pelas noites ardia mas como não pode, queima mesmo de dia] Auscuta só, moleque, qui vô dizê só u'a vêiz si pegá ocê  di novo naquél árvi, leva de chinelão na orêia Íz, causo qui seu pai nuntáquí, qui sinão a surra era de correia Seu pai assumiu-se no mundidêus por dênd'úa garrádipinga i dexô sá mãe Sá Maria cás mininada todinha tomá conta Dicomê qui farta é nhá Rosa quem agarante no precisado Qui si nuéra os pessoár da vila nem num tinha ôtra saída ----- poema reeditado, postad

No caminho

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("O trabalho liberta", frase em alemão escrita na entrada do campo de concentração de Auschwitz) "(...) até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a  voz da garganta. E já não podemos dizer nada". ( Eduardo Alves da Costa, "No Caminho com Maiakóvski) ----------------- Tomei a dignidade do teu trabalho  atei correntes ao teu calcanhar Turvei tua melhor razão te dei um mito para adorar Concebi outro alfabeto e te obriguei a decorar Exterminei as diferenças pus uma imagem no seu lugar Atentei contra as mulheres botando a raiva pra funcionar Matei teu amigo negro mas não sem antes o humilhar Eliminei as outras bandeiras mas não sem antes caluniar Queimei todos os livros mas não sem antes me vangloriar Extingui as dissidências botando a força pra legislar Ceifei os filhotes índios plantando a praga em seu lugar Censurei tod

Expedições aos limites do mundo conhecido (Parte I)

Os tijolos velhos, antiga argamassa de argila hoje inexistente em sua espécie -- uma geração, talvez, do cozimento do barro até a construção da velha caixa d'água. No alto do pasto, separada dos bois apenas pela fina cerca. Remetia por pressão a água para todos o casario logo mais abaixo, através de grossos canos de metal. Dos lados, floresta imensa de samambaias, abancadas pela generosa umidade. Avencas, líquens em verde-claro contrastando o musgo mais grosso e escuro de painel. Todo tipo de sapos, os pequenos, os grandes, as criaturas que lhes serviam de alimento, larvas, bichos-verdes-sem-nome e muitas pernas. A caixa grande repousava sob a fronda larga das mangueiras grossas. Duas árvores para cada variedade. Coquinho, Espada, Coração-de-boi, Manga-Rosa. O chão alto de folhas de manga. Cobertores e esconderijos de sapos e cobras-cegas. Não sobe, que é muito alto. Não abre a tampa, que é fundo. Subia, porque era alto. Abria a tampa porque era fundo. Partia em direção ao morr

De costas pra cidade, de frente pro universo

Em silêncio, o garoto se posta de pé, em frente aos livros e para o mundo vira as costas Vai até seus livros, -- ainda poucos -- Abre um por um, desliza os dedos nas lombadas, -- umas coloridas outras mais sisudas -- Sente o cheiro do papel a anamnese da tinta Sua rinite não o desiste de seus propósitos e , na passagem diária no sebo da cidade Na caminhada pelas livrarias com os trocados contados Ele vai aos poucos montando sua morada Vai se aproximando desse outro lugar no tempo -- um outro conceito de tempo -- Seja em casa ou na biblioteca onde habita  aos poucos intermitente           persistente                      como rato Ama, desde pequeno aqueles espaços repletos de estantes estórias, momentos de outras vidas que chegaram até ali Foi lá que viu Macondo surgir assim feito os olhos de Diadorim Viu mujiques recordarem seus mortos dentre as taigas russas boreais Viu um homem qualquer subir a mágica montanha empenhando a própria alma à procura

Filosóficas III (Spinoza e a Alegria como potência)

Por uma espécie de equívoco dentre tantas coisas que existem mais marcante que uma prosa alegre é sempre o osso de um verso triste Descaminho de maior razão o homem se perdendo a esmo dentro dessa escuridão que é esquecer-se a si mesmo Olvida-se a  chance de poder vagar que, de tão distraída, nos trouxe à vida entre outras luzes,  a nossa foi escolhida no universo de infinitos dados pra jogar Refutar o sistema que nos diminui a potência abrigar a ciência,  quando ela nascer de Gaia ter arte nas veias, porque é o que nutre o olhar realinhar a vivência  se ela se põe a replicar A existência é um acidente cósmico Todo biológico, um caminho sem volta Dentre as partículas o orgânico destoa Pela raridade,  pela novidade sobretudo porque voa Deus, se ainda há, não se atordoa Para que não se quedasse o homem diante do silêncio sem nome deixou-o viver, sem revelar o mistério Revelo, então: para a morte não há remédio Para todo o resto, solução não há,  se abando

Absinto

A pinta é o ponto de fuga a trezentos mil quilômetros por segundo Vermeer de volta à vida A velocidade da luz no alcance da mão Como se fosse possível a um mortal não se embriagar nesses cálices de absinto Quando a fada verde viesse lhe contar histórias antes de dormir

Filosóficas II (Sartre, o Ser e o Nada)

No próprio vento construir escadas Garimpar o pensamento Recusar o que se apresenta como suposta essência do real Poesia sobre o nada? Mas se, volta e meia, é o que eu mais faço O nada como condição humana (Herberto Helder que o diga) O nada que nos habita Ser livre de assuntos livre de rimas Como a um vinho velho Deixar decantar qualquer motivo  respeitar somente o traço A vida é limitante Um constante impossível O real é um aberto e o trazemos assim tão perto (À falta de uma melhor leitura, não ver quimeras aonde não há) O fascínio  dos sons, em palavras talvez seja a mais nobre intenção Criaturas que desaguam em versos não  pedem permissão Se à pena solta lhe falta o tema já começou a ser poema Palavra que se curva à realidade deixou de lado a essência onírica e liberta e se põe a tagarelar procura, sob luzes tortas, achar uma outra resposta que o papel não tem pra dar

Filosóficas I (Kant e a coisa-em-si) Pequeno tratado de Antimetafísica

A contemplação: chave ancestral para o mecanismo de olhar Cansar de espiar mudar o ângulo, às  vezes pegar um pedaço da coisa nas mãos Uma folha, um galho, uma foto um cheiro, uma memória, um fato embeber-se do momento vivido seja o agora, seja o passado seja o mero delírio O mar revolto em dia de ressaca o vento forte no topo das árvores ou a paradeira do ar, sem nada pra assombrar As geométricas carreiras de formiga A fórmula matemática dos cupinzeiros A civilização escondida no reino das abelhas O ninho desabitado de passarinho que cai do pinheiro depois da tempestade Um topão do pé na ponta da pedra de fazer ranger os dentes A gritaria da criançada no parquinho como se lhes houvesse sido decretado o último dia A ingênua ilusão da mente ao se atribuir o poder de sugar das coisas sua quintessência Quando, na verdade, projeta-se sobre elas e vê apenas o que os olhos atribuem Sofremos a pulsão do mundo a centelha no estímulo da cor a pimenta e

Charutinho

A foto, já um pouco desbotada fruto de uma era analógica a reminiscência poderosa dos ciclos Apenas um charutinho de repolho entre fraldas e panos, os olhos piscando, ainda inseguros quanto à luz Tentando abraçar o relevo do que não via em volta A mãe aflita, ao longe vigiando a cria e eu ainda, naquela agonia sem saber o que fazer direito sem saber segurar nas mãos com medo de quebrar amassar, contaminar O estômago dava mil voltas não tinha comida que o preenchesse, nessa hora em que abrigava todo o frio do mundo

Sessão da meia-noite

Risos abafados sob lençóis quatro cabeças escondendo-se no escuro clarão súbito,  o estouro do raio -- silêncio -- o tremer das janelas salta um pra buscar a vela não vou. Nem eu. Também não. eu vou tempestade extinguindo as luzes da casa riboando pelas paredes, tremendo todo o chão o vácuo da cessação do som, após o trovão natureza em suspenso não se ouve um pio molha os ouvidos o rumorejo do rio no piso frio, pés descalços deslizam sorrateiros sobe-desce escada, achar fósforo e candeeiro sobre os veios das mãos o relevo da vela o cinema projeta sobre a tela um novo filme dinossauros, lobos e caretas surgem na parede essas criaturas que rugem e mordem a noite encantam pequenos seres na sala de projeção de vez em quando um pingo de cera quente picando a pele fina da mão narrativas de aluvião, castelos erigidos no ar deuses e guerreiros contra a luz da lamparina um lençol estendido de lado a lado vira cabine risadas abaf

O aprendiz

Meu pai trabalhava quando criança Ainda bem pequeno, acordava cedo Aprendiz de cutelaria, caía na água fria pra tirar o couro e esconder o medo do seu próprio pai, sempre enfurecido Semblante melancólico e hiperativo Franzino, de ar sempre medido Amargou tanto tempo a infância perdida Que vira e mexe, depois de crescido Criançava para retornar à vida Meu pai trabalhava duro todo dia ainda antes de sair pra escola. De pouco lhe valeu, a esmola que ganhava por isso era mais um  desperdício de alegria Levado no chicote da obediência Esquecido nos porões da  negligência "Educar os pequenos pelo trabalho" Os pés, as mãos, o rosto calejado Caminho de fogo agindo ao contrário Doutrina de dor pedindo esquecimento Soergueu-se ainda assim por engenharias lavrando o eito em elucubrações de utopia ao grau obtido em noite de formatura abandonando a vida dura pra nunca mais dedicou sua homenagem aos velhos pais Perguntado ainda hoje, sobre aquele tempo o pai,

Toy Story

Onde as cortinas se juntam os relevos se encerram extinguindo as formas Onde a luz se lança no fundo do olho e a escuridão sobre tudo incide Ali, nessa tela imensa é que as estórias vivem Boneco de massa querendo acolhida a fala do menino avivando seu caubói o amor da menina no chazinho de bonecas O pai com o filho no colo (que ainda não entende nada) Enthousiasmós e risadas À mãe vêm lágrimas furtivas as experiências de casinha as tardes com as amigas Brincar é doar um excesso de vida

Argamassa

Uma tarde qualquer de inverno Pessoas embaratadas Tique-taque  de metrópole O som ensurdecedor do trânsito Locutores ao microfone, pastores de rua sobre seus caixotes de maçã Os vendedores, a frequência tornada homogênea Um único som condensado Orquestra sem solista De uma hora pra outra percebo que o movimento desordenado do mundo é chato pra caralho fora dos livros Em algum lugar fora das páginas eu me perdi Daí, sinto que me soltaram súbito no meio desse concreto todo Um ser assim, feito de papel, garatujas e inconsequências dissolvendo-se na chuva de gente O homem na multidão E de repente, contra toda sofismação do verbo o sol da tarde, bruto (esse objeto que quase sempre se oferece quando eu não estou lá pra ver) vai ralando nas quinas dos prédios mais altos da metade pra cima Alaranja tudo com a língua e tudo aqui neste Centro de cidade cinza, caótico e detestável vira poesia Vou com celular na mão (Glauberiano indefectível) olhando pro alto A

Café

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(intenção de Cordel) Saga da Família Rodrigues na Vila do Café no desvelar do sec  XX) -------------- (Para Ariano Suassuna) I. Toca mais à frente, que nosso lugar ainda não é aqui -- ele disse -- e do Alto Calçado chegou: pouca herança, o braço forte pés pisando duro, peito cheio de esperança e um  sentido seguro para os negócios Vinha assim o velho, e subia a montanha com olhos de amanhã, nas mãos o menino baixando a meio caminho a  visão sobre o vale a saudade e o sumo do que deixou para trás´ "quero é mais: terra nova, vento frio batendo no rosto" "Verde, tudo verdim, rio não longe, mina d'agua eeeh, ôoooa boi! quase tudo a meu gosto!!" o altiplano bom para o cultivo da planta a junta de malhados ralando casco na pedra a mulher de lenço branco na cabeça Serenou-se feliz no território da Água Limpa --  um quadro em sépia na sala junto aos santos -- o espaldar dos filhos penteados e enfileirados como o olhar pedagógic

Raquel

Todo o resto igual A cara cinzenta do prédio velho constantemente repaginada para parecer mais novo O estacionamento mal ajambrado em frente, que nunca dá conta nesse caos que governa a urbe Os ambulantes tentando a vida no desespero claro em uma clara manhã de sol A correria ditando o ritmo dessa coisa indizível que é a cidade O ar-condicionado gelado além da conta como se não existissem as contas de luz pro povão pagar O elevador modorrento sempre com gente demais perto demais Mas hoje a moça da limpeza não está Raquel saiu, neste novo contrato junto com um monte de colegas Há outra pessoa em seu lugar O uniforme é outro a fisionomia também Assim como os salários reduzidos pelo impacto dos novos tempos Assim como o aspecto desses novos empregados A garota do elevador as duas meninas da copa e os vigilantes todos com semblante mais triste, mais sofrido desbotados ou dotados de uma alegria artificial no sorriso que alguns ainda exibem O sorriso ne

Sobre o prendedor de cabelos que esqueceste no banco do carona do meu carro

Trajeto tenso afinado em silêncios contra os gritos de ora há pouco Concerto fúnebre para público ausente na iminência de um vôo partido Ponte aérea pra Recife sentimentos que não arrefecem Navegamos em nosso par contido por painéis de vidros embaçados aparando um teto de cristal líquido sob a chuva rala e fria Um caminho curto que leva do nada ao lugar algum (Ir sem querer ir não é partir) Semáforos irritantes a turvar o trânsito Apostas nas perguntas -- recurso de respostas tortas -- A comida do destempero quando a melhor palavra escorrega por entre os dedos sem se pronunciar A natureza conspira o par,                                     sempre ora a seu favor ora contra Enquanto a  vida depõe contra qualquer permanência É apenas a humana ciência (o permanecer) que reluta em sua fragilidade estrutural E também sua tragédia seu antinatural quando ela se esquece Porque tudo fenece E é na ciência da perda possível que todo traço humano é medido

A brincadeira

Cubra Cobra Cabra-cega O pano cinza e opaco sobre o rosto Uma dose, duas talvez três O mundo sem amarras a girar outra vez Cada giro um outro universo Cada parada um outro lugar Por dentro um filme colorido exibido  contra a  tela As garotas rebentavam em riso Os meninos silenciavam pra não entregar O som dos passos no salão ressoando o eco dos ponteiros O cego certeiro seguia a enxergar

Bem-Bem

Lá vai o doido descendo a rua Bem-Bem na sua voz rasgada o juízo leve e as gargallhadas exageradas a denunciar a presença do menino de cinco ou seis anos que se encastelou na cachola e de lá nunca mais saiu Bole com os cachorros nos portões das casas -- Uns já o conhecem, lambem a mão, se animam na sua presença -- Outros, sem a menor paciência ameaçam pular no pescoço [cachorros por profissão] uma zoeira dos infernos e a rua já sabe A rua sempre sabe a hora que Bem-Bem sai pro passeio Já voltou da escola, já almoçou na casinha  baixa de portão branco do fim da rua onde sua mãe cuida de tudo Já fez a sesta, agora a festa Faz perguntas sobre tudo a todos que vai encontrando pelo caminho Não fosse o físico de aspecto sofrido de um homem calvo aí pelos quarenta e poucos O rosto enrugado, a boca de poucos dentes, Passava por uma criança qualquer descobrindo  o mundo Em sua exploração diária, vai até o começo da rua, na esquina da padaria Limite do seu mun

Largatixa

Calorzinho, manhã de inverno Lagartixa espichada sobre o muro No duro concreto que, sob suas patas , parece suave escada ou caminho As costas jurássicas em miniatura Largatixa, como dizia o pirralho Dinossauros residentes Depois de esfriar o primeiro vulcão Antes (muito antes) bem antes de qualquer humano, qualquer mamífero Estranho pensar a Terra sem o homem E no entanto essa é a criatura, nós mais extraterrestre que há Viemos de onde Seguiremos pra onde Nem não tem ninguém pra contar Nem não tem nada pra confortar A quem não se conforma Com a imensidão desse mar Sobre nossas cabeças A largatixa fecha os olhos no calor E abre um bocão Bocejo de réptil é a coisa mais inusitada em uma manhã de inverno O sangue frio bebendo o sol de canudinho A cabeça balança, vez em quando como afirmando que está tudo bem Os foles laterais bombeiam a respiração Ela aprecia os gordos cupins encastelados na quina do telhado De vez em quando pasta um matinho besta que cresce