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Três listras

refresco nos intervalos de Tomb Raider legging cinza de três listras boné, top e rabo-de-cavalo todos marmanjos, só ela no meio chega um tanto tímida, os caras estranham holofotes ainda contidos nos postes essa Lara Croft monopolizando os olhos de quem passa crepúsculo quase encerrando a praia crianças, churros e velhinhos no calçadão areia , sal e ventania ela ainda no aquecimento, sorri e se enturma o rabo-de-cavalo fazendo coreografia bem arranjado dentro do boné cor-de-mar quando o mar se esquece de entardecer ela saca e corre pra defender ajeita no peito, cabeceia e dá bicicleta a bermuda se alisa sobre as coxas grossas gargalhada que empolga quando acerta espoleta quando erra, o riso fácil e doce vida quando cresce, sempre tudo tão grande instintivas estratégias para que o mundo a aceite vai surgindo, vai nascendo como o desejo nessa pele reluzente de chocolate-ao-leite

Imperfeito

Um dia disse EU e me dei o mundo de presente dei nome às coisas designei todas as cores dei destino  aos animais e às terras Súbito, no cume da vaidade percebi o silêncio como um tapa quando apenas minha fala ecoava nos vestígios das sucessivas eras O mundo não era mais ele próprio mas moldava-se ao  reflexo da minha voz sob seus relevos Às vezes uma voz terna, compassiva às vezes um urro primal a causar susto e fazer tremer antigas paredes Um dia disse EU na ingenuidade original de todo demiurgo e me dei o mundo de presente Mas não me dei conta de que o feitiço assim se quebrava e seu cacos nada mais eram do que o mais profundo desgosto O mundo imposto por mim ao novo espaço era muito pior que o outro

O bosque

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"Yo no lo creo en brujas, pero que las hay, las hay" ----------- Na tarde calma, calada, comum de costas, a cabeça mergulhada metade pra dentro metade pra fora d´água a lente espelhada da lâmina líquida miríade de cores que eu nunca vi deslizo as mãos pela porosidade das pedras leio em Braille, sem saltar parágrafos na parte baixa, o limo em sua barriga --as pedras, frias, frios, o verde pegajoso o que quer que elas tenham testemunhado se pega em mim e a vivência das eras se transcreve em meu pulso histórias de amor, guerras tragédias, campos em flor muito riso, muitas lágrimas doenças e nascimentos [todo sentimento um dia passa por um rio] sem som, a não ser o riacho ouvidos silentes para o mundo acolhidos pelo rumorejar de cachoeira em lençol de regato --acho que vi uma coisa, movendo-se contra o saibro azul do céu territude que me invade levanto a cabeça ainda sedento ainda cedo demais resina de pensamentos exsudando dos

As faces da selva

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I. Falar com os bichos em sua própria língua  tratar rio feito irmão  fruir da lua como quem incensa a memória de um antepassado Sorrir sol relevar o ouro deitar na chuva pelado colecionar besouros Dormir em árvore, brincar na lama avocar passarinhos até se tornar um Inventar cores num cocar de plumas vestir-se de plantas Dialogar com o corpo e descobrir seus traços Transcender o indivíduo Encontrar na floresta o divino abraço  Desentender a desgraça que veio a ter com os navios desentender as razões das muitas coisas que não se justificam II. Ansiar pela eterna noite repudiar o dia impor a própria marca a ferro no rosto das coisas ceifar alegrias Matar a vida pra não precisar ver juntar as tralhas pra não precisar ser viver de migalhas Trucidar as diferenças para produzir injetar o veneno comezinho no veio mais profundo Aniquilar o mundo e conhecer a própria sorte pelas tripas  Sombrear

Germinal

para Émile Da primeira vez, o nada Da segunda, o silêncio --água, luz e lua o quarto ermo e largo sementes túrgidas como grávidas prestes a parir A terceira noite veio com tudo eloquente e mordaz madrugada adentro o ensurdecedor da raiz rompendo o invólucro selado explorando o núcleo abstrato de algodão Como o feto que chuta para sair a ave que quebra a casca do ovo a cria da cobra, que nasce mordendo a face do abismo entre a vida e o limbo tremendo, rasgando, partindo Do ser a quem se dá a chance de brotar colhe-se muito mais do que se plantou dos tantos que são ceifados antes da hora pela trágica lida que impede a memória inocula-se a vida um veneno amargo e a um pesado encargo condena o devir Mas ainda  sorri, como o João, da Fábula o olhar incrédulo sob fragmentos de lua a desenhar contra a branca parede um galho, uma garra, uma verdade crua um tigre dentes-de-sabre os traços góticos de um pequeno milagre Aquela macega branca em nuvem úmida

Moeda

teco na borda orlada de ouro (prata no centro, ouro na beirada) assim embalada                             Real gira a moeda sobre o piso liso e  frio,                     irisando, quase boreal patinadora olímpica em solo de gelo nomeando a tudo o que seduz --ora prata, ora ouro-- ao diletante contato da luz gira a moeda dissolvendo frente e verso até extinguir seu objeto já não se sabe agora se gira ou para como a Terra, nosso solo ilusoriamente detida sob os pés a velocidade absurda da moeda como o Cosmos se expandindo a cada segundo silencioso em circunvoluções metafísica de olhos contaminados o ponto fora da curva em que nada se ouve mais ao redor - porque nada mais existe para fora do seu giro perfeito-- naquele silêncio que a física não explica em que nada se distingue entre os brilhos apenas uma única imagem silenciosa, equilibrada como se pertencesse desde sempre aos augúrios de vento real quando parada, sonho quando em movimento

A coisa

Desembalam o fogão, com cuidado um segura de um lado o outro puxa (tira o plástico grosso) e à grande caixa se afasta  para exibir o conteúdo cristalino Fogão grande e branco seis bocas e a alegria da família A alegria do menino Todos ao redor das novas trempes saboreando expectativas Reuniões animadas, brigas pra saber quem vai fazer o café cozinhar o feijão ou limpar o leite derramado Memórias das ceias do futuro O menino encantado mesmo é com a caixa Trasladada ligeiro a seu quarto --convidada de honra-- Ainda meio sem saber que coisa era aquela: se objeto, se amigo, se bicho de estimação Com o atavismo de um certo instinto a abraçar cavernas ele se enamorava da sua nova e perfeita construção, desenhava suas paredes com giz de cera Reforçava as dobras de cola e encanto, grampos e fibra de celulose Acalento contra  intempéries Aos poucos migrava para dentro de sua grande caixa E a bordo desse navio ganhava os mares Capitão de marinha mercante

Enterro

O passamento de nosso avô (que era bisavô mas nós o chamávamos assim, quando não o chamávamos simplesmente de padim) Não me deixavam ir, de pequeno Insisti, queria ver de perto a cara da morte O avô não parecia diferente, usava um terno azul claro deitado naquele féretro de rosas brancas mas seu rosto jovial permanecia igual, um certo sorriso meio matreiro em expressão de rala barba branca que até escamoteava um pouco a dureza dos últimos tempos Todo mundo suava, estava muito quente muitos com abanadores, leques, disputando sombras Mas o avô que era bisavô permanecia bem, sem suar a fronte, a tez pálida e elegante a expressão de quem guarda algum segredo e tem alguma coisa a dizer A dizer a verdade me decepcionei um pouco com a morte porque a esperava cheia de garatujas e ventanias pensava que surgiria ornada de barulhos a levantar os terreiros, dobrar os topos das árvores e nada! Espreitando bem os olhos ainda cautelosos via apenas umas senhoras com lenç

De volta à Terra do Nunca

Como toda criança sabida,  abandonando os pais antes que o mundo se tornasse pesado demais Minha mãe quando em sempre tão generosa o acolhimento desses pequenos  no seio da vida Meu pai e sua disciplina: o esforço de querer ser maior para compensar alguma fragilidade intransponível (o alheamento típico de quem está sempre em guerra) Eu ainda desejava os campos, aquela grama tão mais verde Os quintais de laranjas e seu sumo doce me dourando a cara Os milharais onde pela primeira vez pude contemplar a  metáfora pujante daqueles seus  cabelos de boneca O nascer e o por do sol do alto do morro, espreitando arco-íris depois que me beijavam as chuvas de verão em todo o seu poder Eu desejava os campos, mas meu espírito já era das cidades, por antecipação Abandonava de vez os passarinhos, irmãos a quem finalmente decidi livrar Abandonava a contemplação daqueles teus olhos de vôos rasantes A sensação de vida que me cavalgava em presença dos teus grossos lábios e a cor natural

Poças

pairava em poças depois da chuva esperava a chuva ansiava  trovões administrava raios passada a chuva descobrir as poças pela cidade cachoeirinhas de correr o barco de papel correntezas bueiros adiante almirantes em ordens no convés como convém a uma vida breve a guerra de barro que deu forma ao homem chapinhar, absorver a água suja pelas seringas grossas sem agulha brincar guerra de pistola laser disparando na cara de todo mundo espraiar o gesto uma vez, ao menos nesse paiol de vidas tristes eles se lembrassem de se molhar toda vez que chove e o mundo se amilagrando em nuvens

Pipoca

ardendo ao milho no estalo do som --óleos que nada vêem porque o mundo não lhes toca quando poca entornando o caldo de dentro o sumo vestido de noiva num salto dissolvendo salgadinho no céu da boca

Advertência (80 tiros)

Atira atira Atira atira atira atira atira atira atira atira atira atira atira atira atira atira atiraatira atira Atira Atira Atira Atira Atira Atira

Sintomas

Sintoma de tempo é cinza de carne é  corpo de visão é riso de doce é ácido de noite é dia Não existem pecados sob as sombras da utopia Sintoma de poesia é o espírito desembestado a tomar posse do mundo agarrando-o pelos olhos pelos cabelos          pela pele               pelo cheiro                        pela vulva Torto, caótico, profundo alquebrado, injusto, trágico o mundo não me cai como uma luva segue mágico          segue sendo mundo (O único ) Sintoma de vida é  saber sentir a tal intensidade e assumir a  liberdade que me circunda sendo sincero e aberto comigo absorver essa energia que me molha sem imaginar que as coisas sempre giram em torno do meu próprio umbigo

Aluar

Adensando a madeira validando a colheita levantando as marés talhando o sangue orientando as formigas servindo a guia antecipando os partos enchendo os cabelos cevando  demônios incitando os lobos granulando a terra regendo a relva alimentando raízes tecendo o sumo torcendo os conceitos melhorando a saliva piorando o sono tresloucando o tato justificando os loucos possuindo a noite desobrigando lanternas incentivando fogueiras obsedando as estrelas maturando a seiva riscando a noite protelando o dia

Meu anjo franzino

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para Bernardo Boldrini (Be) Entre fotos e notícias depois de tanto tempo De início, nos burburinhos (todo mundo sabia, restava provar) Os rastros de uma infância abandonada algo por dentro apontava o mapa do destino mortal De pé, depositado na curta cova vertical que te destinaram em tua última viagem à beira de um comovido riacho Menino  franzino, com frio e sozinho como em tantos outros momentos do teu curto caminho por este vale de lágrimas O vale por onde seguidamente (e sem  saber a razão) estiveste mendigando afeto mendigando comida mendigando um teto aos próprios pais mesmo tendo nascido em berço de ouro Não adiantou a homenagem do dia das mães Não adiantou o teatrinho do dia dos pais Pois o monstro da ganância quando vige quer sempre mais, sempre mais A mãe de verdade,  tua única proteção também ceifada assim, de súbito entre tantas dúvidas Meu menino franzino essa tua incomensurável força interior espalhada por dezenas de fotos

Escrever

Como busca de beleza em um mundo cruel, que faz qualquer estética parecer fútil? Como realização diante de uma vida em geral tão restrita em que grumos de capital, ou da ausência dele grumos de saúde mental ou da ausência dela continuam fazendo de delírios a única realidade possível? Como protesto e revolta, energias tantas vezes vãs diante dos portais reiteradamente fortalecidos pelo sumário das crenças injustificadas e suas tolices pela estupidez involuntária e certeira a alvejar multidões? Como busca de saída em um mundo de cartas marcadas onde há tanto talento, mas tantas vezes os papéis de destaque são roubados pelos piores atores representando as mais pobres peças? Escrever como puro ato de desvario , tendo em vista a insurgência diante do mais empírico desnorteamento das instituições e do esgarçamento dos valores afirmativos da vida que depõe contra os próprios indivíduos? Para testemunhar a tolerância forçada com o terror que se instila progressivo sem que nada , nenhuma

Absurdo e Caos

para Albert Em meio a tantas tragédias ainda o erro herdado de admitir os primórdios como intocado paraíso que em algum momento ruiu O remédio, a ciência, as crenças tudo é um tipo de erro planejado para se forçar a fé na vida fazendo do sentido a única razão e da razão o único sentido O erro de se imaginar o passado como bem o devir como o mal cultura e herança em nossas mãos de ocidentais por conta da nostalgia de uma infância coletiva (que nunca houve, isso é bem verdade) no princípio dos tempos onde todos se amavam e se davam as mãos por todos os cantos do planeta até o momento da queda A  verdade é, não apenas Antropofágica [porque nada há no homem de tão especial a esse respeito] mas sim um contínuo fluxo de apropriação da vida, indistintamente, por nossa raça Fagocitamos tudo ao redor como amebas ensandecidas Temos a força e nunca sabemos o que fazer com ela seguimos por equívocas veredas O erro de ainda se iludir por conceber que a vida e

A invasão

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                     No começo, ninguém desconfiava de nada. Vieram assim, sorrateiras, esgueirando-se por pequenas frestas, povoando nichos de sofás, camas, forros de geladeiras e armários de roupas e sapatos. Com presenças mais discretas e silenciosas durante as estações mais frias, tornavam-se contudo explícitas e corajosas nos dias quentes, anunciando uma nova ordem de terror. Em algumas épocas, tudo silenciava, e inusitadamente passávamos alguns incríveis dias de paz. Mas no decorrer de dois ou três meses,  logo estavam novamente em toda parte, multiplicadas como se durante o suposto período de hibernação tivessem não apenas acumulado força e estratégia, mas também copulado compulsivamente e se reproduzido em batalhões à exaustão durante cada precioso segundo de tempo disponível, dada a quantidade assustadora que a cada ano  só aumentava. Minha mãe se estressava com aquelas criaturas mais do que com qualquer outro tipo de problema em casa. Não tinha questão com vizinhos, orç

A Carne

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A carne mais barata do mercado é a carne negra A carne mais barata do mercado é a carne negra A carne mais barata do mercado é a carne negra A carne mais barata do mercado é a carne negra A carne mais barata do mercado é a carne negra Que vai de graça pro presídio E para debaixo do plástico Que vai de graça pro subemprego E pros hospitais psiquiátricos A carne mais barata do mercado é a carne negra A carne mais barata do mercado é a carne negra A carne mais barata do mercado é a carne negra A carne mais barata do mercado é a carne negra A carne mais barata do mercado é a carne negra Que fez e faz história Segurando esse país no braço O cabra aqui não se sente revoltado Porque o revólver já está engatilhado E o vingador é lento Mas muito bem intencionado E esse país Vai deixando todo mundo preto E o cabelo esticado Mas mesmo assim Ainda guardo o direito De algum antepassado da cor Brigar sutilmente por respeito Brigar bravamente por respeito Brigar po